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PARTE II ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

CAPÍTULO 5 TRABALHO, PROFISSÃO E JORNALISMO

5.3 Sociologia da imprensa

As relações de poder na imprensa e no exercício profissional de jornalistas são alguns dos pontos abordados por Max Weber (2005), em 1910, no artigo Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa. Uma das questões salientadas é a mudança radical que a imprensa passava a ter, no início do século XX, com o campo político, ganhando mais incidência sobre os jogos de poder nas sociedades.

Se há 150 anos o Parlamento inglês obrigava os jornalistas a pedir perdão de joelhos diante dele pelo breach of privilege, quando informavam sobre as sessões, e se hoje em dia a imprensa, com a mera ameaça de não imprimir os discursos dos deputados põe de joelhos o Parlamento; então, evidentemente, algo mudou, tanto na concepção do parlamentarismo como na posição da imprensa (WEBER, 2005, p. 14).

Para além das mudanças incidentes fora das Redações, naquele período Weber já identificava um campo fértil de pesquisa também sobre as relações endógenas da imprensa e do jornalismo. Na mirada entre os perfis de jornalistas na Alemanha, na França e na Inglaterra, Weber reconhecia figuras singulares a depender do contexto social, do espaço social particular e da maneira como os profissionais realizavam o trabalho jornalístico. Conforme Weber, a imprensa francesa distinguia-se pelo fato de o “jornalista eventual” ser uma “figura comum, assim como na Inglaterra” (WEBER, 2005, p. 18). Acerca do que viria a ser chamado identidade profissional de jornalistas, Weber (2005) percebe trajetórias diferenciadas de jornalistas, as quais demandariam estudos sobre a sociologia da imprensa.

Há jornalistas que chegaram a ser ministros na França, e em quantidade. Na Alemanha, pelo contrário, isso constituiria uma exceção bastante rara. E, deixando de lado essas circunstâncias especiais, teremos que nos interrogar sobre como mudou, nos últimos tempos, a situação

145 dos jornalistas profissionais nos diferentes países (WEBER, 2005, p. 18, grifo nosso).

As relações sociais inatas ao jornalismo como profissão pontuadas por Weber (2005) na interrelação com o objeto desta tese – as dimensões de raça e gênero no jornalismo como profissão no Brasil – inscrevem-se não somente na contemporaneidade, mas na demolição do lugar invisibilizado a que jornalistas negras e negros são alçados no jornalismo brasileiro, como condição de ser de jornalistas brancas e brancos. Estudos mais recentes têm articulado a identidade profissional de jornalistas, contudo, a meu ver, de maneira limitada e até mesmo comprometedora por não incorporarem tais dimensões – face à historiografia do país e aos fatores históricos, culturais, políticos e econômicos – a que tais grupos são reiteradamente tolhidos, sendo lançados à margem dos debates acadêmicos e profissionais sobre a profissão no país. Mesmo estudos sobre as mulheres jornalistas exploram timidamente tais trajetórias na perspectiva de gênero.

Há mais de um século, Weber (2005), ao discorrer sobre a sociologia da imprensa e situar os profissionais de imprensa – jornalistas – num programa de pesquisa, alertava para trajetórias singulares de origem, formação, atributos e credenciais para o exercício da profissão, assim como perspectivas diferenciadas decorrentes de identidades.

Qual é a procedência, a formação e quais são os requisitos que o jornalista moderno deve cumprir do ponto de vista profissional? E quais são as perspectivas, dentro da profissão, para os jornalistas alemães em comparação com os jornalistas estrangeiros? Quais são, em resumo, suas perspectivas de vida na atualidade, dentro e fora de nosso país, incluídas as extra-profissionais? (WEBER, 2005, p. 19, grifo nosso).

Em observância ao trabalho de jornalistas alemães, Weber (2005) clamava, em 1910, por uma sociologia da imprensa que levasse em consideração não somente os produtos jornalísticos, mas abarcasse a atenção a jornalistas e às suas condições singulares para a realização do trabalho.

Não podemos, portanto, nos contentar com a contemplação do produto como tal, mas sim temos que prestar atenção ao produtor e perguntar pela sorte e pela situação do estamento jornalístico. A sorte, por

146 exemplo, do jornalista alemão é completamente distinta da do jornalista estrangeiro. (WEBER, 2005, p.19).

A depender do pacote de vantagens ou desvantagens deflagradas pelo racismo e pelo sexismo, no caso brasileiro, as trajetórias de jornalistas também se diferenciariam pela correspondência de pertença racial e de gênero.

Autor da primeira tese de doutorado em Jornalismo no Brasil, defendida na Universidade de São Paulo (USP), José Marques de Melo (1973) registrou a pesquisa no livro Sociologia da imprensa brasileira: a implantação. Sob incisiva influência de teóricos da Sociologia brasileira, dentre eles os disseminadores da ideologia do branqueamento e da ideologia do mito da democracia racial, Melo (1973) reitera equívocos históricos de ordem racista ao elencar fatores socioculturais que teriam gerado um “retardamento” da implantação da imprensa no Brasil, entre eles: o “atraso das populações indígenas” (MELO, 1973). Invisibiliza por completo grupos sociais ativos na imprensa brasileira, como jornalistas negros, proeminentes no período da implantação, seja como escritores e donos de tipografia, como Franco de Paula Brito66, precursor da imprensa negra brasileira, cuja regularidade é registrada com O Homem de Cor, em 1833, no Rio de Janeiro (CAMARGO, 1987; SILVEIRA, 2005; PINTO, 2006), e ao apregoar um suposto atraso à implantação da imprensa brasileira aos povos indígenas, expostos como ethos depreciativo (SODRÉ, 1999).

Do ponto de vista das relações raciais, Melo (1973) culpabiliza os grupos em condição de dominação, ao passo que isenta os detentores de poder das mazelas nacionais derivadas do escravismo colonial e de um patrimonialismo nacional de ordem racista (SODRÉ, 1999). Ao reconstituir as três fases que teriam propiciado a implantação da imprensa no Brasil, entre 1808 e 1852, baseadas na cronologia de Carlos Rizzini, Melo

66 Paula Brito (1809-1861) tinha origem humilde. Filho de pai carpinteiro, aprendeu a ler com a irmã. Foi

ajudante de farmácia e aprendiz de tipógrafo. Trabalhou no Jornal do Commércio, exercendo as funções de diretor de prensas, redator, tradutor e contista. Em 1831, comprou um pequeno estabelecimento, onde funcionava livraria, oficina de encadernação e venda de chá e onde reunia, na Sociedade Petalógica, algumas personalidades, como o jovem Machado de Assis, nos seus 16 anos. Em 1833, Paula Brito possuía a Typographia Fluminense e a Typographia Imparcial, nas quais foram impressos livros de grandes nomes da literatura brasileira. Foi o primeiro editor de Machado de Assis e de suas tipografias foram impressas obras de outros expoentes da literatura brasileira.

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(1973) postula o sufocamento das tentativas de início da atividade de imprensa no Brasil devido aos interesses de Portugal de impedir a independência da colônia.

Essa situação se modificaria com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, após a invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas. Em 13 de maio daquele ano, era conferida autorização para a instalação de prelos por determinação de Dom João VI. O começo da imprensa no Brasil seguia tardiamente (SILVA, 1988) os passos dados pelo México, em 1539; pelo Peru, em 1585; e pelos Estados Unidos, em 1638 (SILVA, 1988). Em junho de 1808, na Inglaterra, o brasileiro Hipólito José da Costa lançou a primeira edição do Correio Braziliense, sendo o segundo título circulante no Brasil a Gazeta do Rio de Janeiro (SEABRA, 2002; RIBEIRO, 2004), publicada em setembro daquele ano. Embora Costa fosse crítico da Coroa portuguesa, apoiava a lenta transição da abolição da escravatura para o trabalho livre por meio da política de imigração europeia (LUSTOSA, 2004). Havia, assim, parcialidade discursiva sobre o fim da escravatura no Brasil, o que levaria, 25 depois, em 1833, à criação da imprensa negra. Com a limitação dos espaços discursivos, negros e negras instaurariam áreas de enunciação própria e de acordo com as suas doxas.

Desde 1833, os jornais negros frisavam os direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros para ilustrar o grau de exclusão e discriminação que atingia os descendentes de africanos. Os jornais da imprensa negra do século XIX foram a expressão real de que “os afro-brasileiros conseguiram formular uma fala própria e torná-la pública. Ainda que não tenham alcançado simultaneamente todo o território nacional, esses impressos são parte do esforço coletivo de controlar os códigos da dominação e subvertê-los” (PINTO, 2006, p.70). Estavam inseridos, por conseguinte, na luta contra o racismo, a discriminação e o preconceito racial no Brasil. Nesse sentido, o conceito de imprensa negra está relacionado ao que Sartre (1968, p.101) denomina “curtos- circuitos da linguagem”, porque “não é, pois, só o propósito de negro no sentido de se pintar a si mesmo, mas sua maneira peculiar de utilizar os meios de expressão de que dispõe”. A despeito do contador inicial da imprensa brasileira, em 1808, registros históricos documentaram modesta atividade jornalística, em 1706, no Recife, e em outras localidades, as quais foram duramente sufocadas pela Ordem Régia (COSTELA, 1970). É de 1798 a circulação das primeiras folhas volantes, cartazes e boletins, em Salvador, os quais correspondem aos primórdios da imprensa negra no Brasil (CAMARGO, 1987; SILVEIRA, 2005; PINTO, 2006). (...) Essa posição editorial ideológica fez com que os negros criassem outra via de produção jornalística, isto é, um sistema comunicativo em que essas questões pudessem ser

148 abordadas, para desconstrução do “racismo mediatizado” praticado pela imprensa. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia política de interferir na esfera pública na busca pelo poder de influência e emissão de opinião própria, no sentido de participação política, e de travar uma luta ideológica através da imprensa negra (ROSA, 2014, p.3)

Em Jornal, história e técnica, Juarez Bahia (1972) reporta a 1828 o surgimento da imprensa especializada. Cinco anos depois, em 1833, O Homem de Cor, de Paula Brito, surgia como primeiro título da imprensa negra (CAMARGO, 1987; SILVEIRA, 2005; PINTO, 2006), desencadeando série de publicações análogas no Nordeste, Sudeste e Sul (BASTIDE, 1951; FERRARA, 1981).

No Sul do Brasil, a imprensa negra teve como representante inicial o jornal O Exemplo, que circulou com interrupções no período de 1892 e 1930. É caracterizado por Silveira (2005, p.115) como “iniciativa e organização de negros. Antecipa-se à importante imprensa negra paulista e paulistana: O Baluarte, Campinas em 1903, A Pérola, São Paulo, 1911, O Menelick, a seguir, O Clarim da Alvorada, mais adiante”. Entre os títulos relacionados por Silveira (2005) na imprensa negra gaúcha do século XIX estão: A Cruzada (Pelotas,1905), A Alvorada (Pelotas, 1907), A Revolta (Bagé, 1925), A Navalha (Santana do Livramento, 1931). (ROSA, 2014, p. 559).

Conforme Melo (1973, p.91), a atividade de imprensa teria limites de produção até 1821, pois “a dinamização da imprensa em terras brasileiras só vai ocorrer depois da abolição da censura prévida no Reino” num processo que “levaria cerca de 30 anos (a partir da emancipação política) para se completar, abrangendo todas as unidades estaduais”.

Muniz Sodré (1999, p.242) considera: “a importância de uma imprensa negra acentua-se quando se leva em consideração que os discursos sociais desempenham um papel central tanto na produção quanto na reprodução do preconceito e do racismo”. Sodré (1999, p. 240) aponta que o “protesto racial” contra o racismo, a discriminação e o preconceito racial eram parte de um “horizonte político integracionista” e que o negro aspirava “tão-só à igualdade econômica e política, acompanhada do respeito racial”.

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Atuava em campo específico devido à restrição de espaço nos jornais tradicionais, com exceção dos jornalistas negros Luiz Gama, José do Patrocínio67, entre outros.

Arena de debate político, a primeira fase da imprensa no Brasil foi marcada pela criação de inúmeros títulos dedicados à circulação de opiniões e de posicionamentos sobre o País e contra o discurso oficial ou de grupos majoritários nas relações de poder da época. A imprensa dinamizou a esfera pública pelo jornalismo político (RIBEIRO, 2004), também chamado jornalismo de opinião (ADGHIRNI, 2012).

Na historicização da imprensa negra paulista, no período de 1915 a 1963, a antropóloga Miriam Nicolau Ferrara considera que a imigração europeia e a rejeição da população negra para um estrato abaixo dos imigrantes foram alguns fatores impulsionadores para o surgimento dos jornais negros – ponto que a revisão histórica remete para 1833, com o jornal O Homem de Cor –, e a sua “concentração no Sul do Brasil, especialmente no Estado de São Paulo” (FERRARA, 1981, p.198). A partir de sua dissertação de mestrado A imprensa negra em São Paulo, Miriam Ferrara chega a classificar 56 jornais estudados (ROSA, 2014, p. 557).

Nessa primeira fase, a imprensa das mulheres teve como pioneiro o Jornal das Senhoras, fundado em 1852, pela argentina Juana Paula Manso de Noronha, radicada no Rio de Janeiro, e chamada em seu país de “la Loca”. No artigo Uma espiada na imprensa das mulheres no século XIX, Zahidé Muzart (2003) identificou que o gênero era produzido por muitas mulheres que “habitavam diversas regiões no Brasil, pertenceram a mais de uma classe social, da mais alta à bem pobre, foram brancas arianas ou negras africanas” (MUZART, 2003, p. 225), abrindo margem para diversas publicações “dirigidas por mulheres e escritas por mulheres para mulheres” (MUZART, 2003, p.231).

Sucintamente, remontei os pilares do jornalismo brasileiro, com atenção à imprensa negra e à imprensa de mulheres, tão dissociadas da historiografia e da sociologia da imprensa nacional por questões políticas e ideológicas que desencadeiam efeitos negativos na pesquisa de comunicação e nos estudos de jornalismo, em particular, em que a história de negros e mulheres tem tido pouca abordagem teórica.

67 Em Jornalismo político, Franklin Martins (2005) traça o perfil do jornalista Patrocínio, chamado Zé do

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No que tange ao objeto de estudo desta pesquisa, imprensa, raça e gênero tiveram relação estreita com o desenvolvimento do jornalismo no Brasil. Na primeira fase, como exposto, negros e mulheres tiveram de investir em espaços próprios de enunciação para ampliar o discurso jornalístico a partir das suas perspectivas (doxas). Contemporaneamente, eles ocupam espaços diferenciados na dita grande imprensa, os quais estão relacionados à historicidade aqui resgatada, além de atuação na imprensa negra e na imprensa feminista/de mulheres68.

Desde o início do jornalismo no Brasil, negros e mulheres tiveram de forjar espaços para trabalhar na imprensa. Ampliaram o espectro de produção de enunciação jornalística não somente como força de trabalho, mas, sobretudo, como enunciadores de temas afetos às suas identidades e às trajetórias de vida de seus grupos: antirracismo, racismo, relações raciais, mulheres e direitos. Disputaram poder, na sua maioria, com homens brancos até então à frente de tribunas e gazetas em momentos de intenso debate sobre a vida política nacional pré-abolicionista e pré-republicana. Entravam, assim, no confronto para a produção e a difusão das suas realidades, instalando práticas e regularidades discursivas (FOUCAULT, 1972), conquistando parcela modesta, porém relevante, do poder discursivo no jornalismo concentrado em homens brancos. Entre eles, escritores, padres, ex-militares, personagens políticos e revolucionários vinculados aos movimentos sociais.