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Ideologia, cultura política e posições programáticas:

as preferências dos filiados

Introdução

A literatura considera tradicionalmente que a fase inicial da vida dos partidos representa o momento crucial para a definição da própria ideo- logia. Com a criação dos partidos, há a necessidade de criar identidades coletivas não apenas para mobilizar as bases de apoio e aumentar a par- ticipação, mas também para assegurar a integração interna através da dis- tribuição de incentivos coletivos (Panebianco 1988). É nesta fase inicial que as lideranças concentram a sua atenção na cultura institucional e nas identidades ideológicas, que permitem distinguir os vários partidos e de- finir as dinâmicas interpartidárias. Deste ponto de vista, a matriz ideoló- gica – e as políticas substantivas que lhe estão associadas – tendem a pre- ceder as escolhas estratégicas que orientam a competição eleitoral.

O caso português, e mais em geral o das novas democracias, é interes- sante porque desafia esta trajetória, com consequências relevantes para a cultura política e a definição das identidades ideológicas. A análise das bases eleitorais e das orientações programáticas dos partidos portugueses tem evidenciado a flexibilidade e o carácter pouco definido da ideologia, sobretudo para os partidos mais eleitoralistas (Jalali 2007, 113-127; Lisi 2015, 136-142). O contexto da democratização condicionou de forma crucial a formação das identidades partidárias das novas forças políticas. Com a parcial exceção do PCP, os novos partidos deram prioridade a questões estratégicas em relação a uma clara definição ideológica e à apre- sentação de programas claramente alternativos. Por um lado, houve o constrangimento da intervenção dos militares e da tendência «esquerdi- zante» do novo regime, que se refletiu, por exemplo, na extensa lista de direitos sociais consagrados na Constituição de 1976 (Vieira e Carreira

da Silva 2013). Como enfatiza Magalhães (2013, 438-441), a prova mais evidente será talvez o facto de todos os partidos contemplarem nos seus projetos de Constituição a criação de um sistema nacional de segurança social, de saúde, o direito à habitação e um sistema nacional gratuito de educação básica. Por outro lado, havia uma pressão eleitoral e um cenário altamente competitivo entre os principais partidos, com uma elevada fragmentação. Neste sentido, a necessidade de reforçar a legitimidade eleitoral levou os principais partidos moderados a dar prioridade à com- petição eleitoral. Esta pressão foi evidente no caso do PS, o qual denotou uma incongruência entre a teoria – isto é, as plataformas eleitorais – e a prática da governação (Canas 2005, 6), e do PSD que, na opinião de Jalali (2006, 365), adotou bem cedo a filosofia «não há ideologia, apenas boa ou má gestão». Apesar de os dois partidos apresentarem formalmente diferenças substanciais do ponto de vista programático – com os socia- listas a defender uma maior intervenção do Estado na economia e o os sociais-democratas mais propensos a aderir à ortodoxia neoliberal (Gue- des 2012) –, as diferenças na ação governamental dos dois partidos têm sido menos claras, pelo menos até ao começo da crise económica de 2007-2008.

Este capítulo oferece um contributo inovador sobre o tópico através da análise do posicionamento ideológico e programático dos filiados par- tidários. Deste ponto de vista, o objetivo principal deste estudo consiste em examinar os principais traços da cultura política e a posição dos mem- bros partidários sobre alguns assuntos fundamentais da competição inter- partidária. A partir dos dados baseados nos inquéritos realizados através da internet a filiados e delegados dos partidos portugueses (Espírito Santo e Lisi 2014), é possível examinar quais as diferenças entre os partidos, qual o grau de coesão interna dos mesmos e quais os fatores que influen- ciam o posicionamento ideológico. Neste sentido, este estudo contribui não apenas para analisar as dimensões da competição interpartidária, mas também quais os pontos de força e as tensões internas dos partidos, assim como os traços de pertença e de identidade política. Finalmente, a análise da cultura política contribui também para identificar os códigos de co- municação interna e as marcas identitárias que estão por trás da mobili- zação e do recrutamento partidário.

Simultaneamente, a análise ideológica e programática ganha particular relevância no caso português pelo contexto em que a recolha de dados teve lugar. Um dos efeitos da crise económica tem sido a maior polari- zação ideológica entre as forças políticas (Belchior 2015; Freire, Tsatsanis, e Lima 2015), assim como uma redefinição das identidades ideológicas

(Tsatsanis, Freire e Tsirbas 2014; Freire, Lisi e Leite Viegas 2015). Em acréscimo, no caso do PS e do BE o período que sucede às eleições le- gislativas de 2011 corresponde a uma mudança de liderança e à procura de uma nova estratégia dentro de um contexto ainda incerto e fluido. Deste ponto de vista, a análise ideológica e programática permite-nos compreender melhor as dinâmicas e os processos de transformação dos partidos, bem como os dilemas estratégicos experimentados durante a crise económica.

Em termos de posições programáticas, a experiência da intervenção externa e as políticas de austeridade colocaram desafios importantes para a identidade dos partidos, em particular para os partidos de esquerda (March e Rommerskirchen 2015). Não se trata apenas da crise na relação entre eleitores e o sistema político, fenómeno já evidente no período an- terior (Torcal 2014). Em muitos países emergiram novos problemas e uma nova visão dos desafios que afetam as democracias contemporâneas, assim como uma tentativa de repensar o futuro da sociedade, que tiveram impacto sobre o sistema de crenças e os valores da grande maioria dos cidadãos. Este «espírito» de mudança tem incentivado em alguns casos uma transformação radical dos sistemas partidários, com a emergência de novos atores políticos e novos alinhamentos eleitorais, sobretudo nos países mais afetados pela crise económica (Grécia, Espanha, Itália).

No contexto português surgiram também novas forças políticas depois das eleições legislativas de 2011, todavia não conseguindo alterar as lógi- cas de competição nem penetrar a arena parlamentar. Os dados recolhi- dos no âmbito do projeto «Filiados e Delegados dos Partidos. Portugal em Perspetiva Comparada» permitem examinar em mais detalhe um exemplo deste fenómeno através da análise do LIVRE, um dos partidos incluídos nos inquéritos realizados aos filiados. Esta força política surgiu por iniciativa de ex-deputado europeu Rui Tavares, e tinha como objetivo incentivar a cooperação entre os partidos de esquerda. Em particular, procurou representar o «meio da esquerda» e demonstrou-se disponível para participar em soluções governativas, constituindo uma ponte entre o PS e outros partidos da esquerda radical. A questão estratégica foi fun- damental para tentar adquirir um espaço relevante no sistema partidário, já que o partido partilhava muitas afinidades programáticas com os ou- tros partidos de esquerda – em particular relativamente ao BE1–, quer

1De facto vários dissidentes do BE acabaram por formar uma coligação com o LIVRE

nas eleições legislativas de 2015 através do movimento Tempo de Avançar (Lisi e Fer- nandes 2015).

do ponto de vista dos temas socioeconómicos, quer a nível dos temas culturais.

Este capítulo está articulado em cinco secções. A segunda secção es- clarece os principais conceitos analisados e examina os resultados empí- ricos disponíveis sobre o caso português, à luz da literatura existente. Na terceira secção apresenta-se o posicionamento ideológico dos filiados par- tidários nos cinco partidos considerados neste estudo, nomeadamente, BE, CDS-PP, LIVRE, PS e PSD. A quarta secção examina a opinião dos filiados relativamente a temas substantivos da dimensão socioeconómica e cultural, seguindo-se uma quinta secção onde se apresentam os resul- tados referentes aos fatores determinantes do posicionamento na escala esquerda-direita. A última secção resume as principais conclusões e dis- cute algumas implicações no que toca à vida interna dos partidos e às di- nâmicas interpartidárias.

Identidades ideológicas e posições