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PRIMEIRA PARTE: Cultura e mercado nos territórios patrimonializados

2. Identidades territoriais e ideologias espaciais: o processo de patrimonialização em evidência

2.1. Ideologia espacial e patrimonialização

A concepção de ideologia reside, em termos gerais, na elaboração e na difusão de um aparato discursivo argumentativo destinado a ratificar um sistema de ideias, representações, crenças, e teorias a respeito da realidade social, concebidas por agentes ligados aos aparatos de poder.

Difundida e popularizada pela teoria marxista, a ideologia, segundo este viés, tem por finalidade difundir as ideias das classes dominantes como se fossem as de todas as classes sociais, tornando-se dominantes para o restante da sociedade (CHAUÍ, 1994). Portanto,

constata-se que o discurso ideológico não é neutro, pois se presta a responder aos interesses e às intencionalidades de determinado grupo social com o sentido de legitimar as estruturas de poder vigentes em determinado período histórico. Sua dimensão política torna-se nítida ao influenciar a formação das concepções de mundo e as práticas sociais dos sujeitos, relacionadas aos propósitos daqueles que a conceberam.

De acordo com tal concepção, é possível analisar a ideologia não apenas como um simples sistema de ideias e representações, mas também a partir de sua existência material, que se dá por meio das “práticas, rituais e instituições ideológicas” (ZIZEK, 2007, p. 18) que lhe dão substância.

Tais instituições são responsáveis, no tempo e no espaço, por um conjunto de normas, intervenções urbanas e práticas culturais que influenciam o processo de produção e de valorização do território, tanto em termos econômicos como culturais. A produção de todo um sistema de objetos, como edificações públicas e privadas, monumentos, um sistema de infraestrutura, atrelado ou não às ações de planejamento urbano, e a sua própria localização e disposição no território refletem direta ou indiretamente, a ideologia e os propósitos dos seus criadores e executores.

O reforço desse conteúdo ideológico pode ser percebido também no processo de representação do espaço e do tempo, e de valorização simbólica de determinados objetos materiais e das expressões imateriais da cultura, como os bens patrimonializados, a partir das estratégias de manipulação simbólica dos valores e significados a eles atribuídos. Nesse sentido, é válido afirmar que a ideologia, tanto no seu sentido material quanto representacional, encontra-se de forma implícita e explícita no território, pois influencia no seu processo de produção, valorização e apropriação.

O aprofundamento da análise geográfica da ideologia explicitado por Moraes (2005), Berdoulay (1985), Di Méo e Buléon (2005) e Paes (2009) subsidiam a compreensão do processo de valorização cultural e econômica dos territórios e paisagens a partir da sua materialidade e da sua dimensão simbólica, fornecendo subsídios para o aprofundamento da análise geográfica das formas de uso e apropriação dos territórios patrimonializados.

Moraes (2005) refere-se ao termo ideologia geográfica para analisar a influência do saber geográfico à prática política, vinculada, principalmente, “(...) às representações coletivas acerca dos lugares, que impulsionam sua transformação ou o acomodamento nele. Exprimem, enfim, localizações e identidades, matérias-primas da ação política”. (MORAES, 2005, p. 44). Certas narrativas históricas e determinados elementos geográficos são exaltados

pelo Estado para selecionar, valorizar e diferenciar certas porções do território para finalidades políticas e, atualmente, cada vez mais econômicas. Os territórios patrimonializados associam-se a esses dois interesses, pois, em termos políticos, têm o papel de representarem a expressão concreta da história e da identidade nacional e, em termos econômicos, se prestam à geração de renda proveniente do uso do patrimônio para fins mercadológicos.

No Brasil, o processo de formação da identidade nacional pautou-se na exaltação e na valorização das referências históricas e culturais do período colonial, atendo-se, principalmente, aos grandes feitos e obras dos colonizadores e às expressões artísticas e culturais da elite branca e católica.

Até a década de 1970, não havia praticamente referências à valorização estatal das expressões artísticas e culturais dos negros e índios. Segundo Fonseca (2009), desse período em diante, as políticas preservacionistas passaram a valorizar as múltiplas identidades do povo brasileiro em busca do reconhecimento das referências culturais das minorias étnicas e das classes populares, deixando, portanto, de ter um caráter essencialmente elitista. Também passaram a considerar os bens imateriais como objetos de patrimonialização. Essa mudança de orientação política e ideológica dos órgãos de preservação culminou na ampliação do conceito de patrimônio que, a partir da Constituição de 1988, passou da denominação de Patrimônio Histórico e Artístico para a de Patrimônio Cultural. O artigo 216 da Constituição conceitua Patrimônio Cultural como os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira22”.

Apesar dos avanços ocorridos no campo da preservação e do aumento das categorias de bens culturais dignos de reconhecimento patrimonial, atualmente, o número de bens intangíveis ainda é pouco expressivo diante da diversidade de expressões imateriais da cultura existentes no território brasileiro.

Também ainda há poucos bens tombados que exprimem as referências culturais dos afrodescendentes e das comunidades indígenas, bem como dos imigrantes nos centros históricos reconhecidos como patrimônios culturais, já que essa parcela da população brasileira contribuiu de forma significativa para o enriquecimento da diversidade cultural

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A definição de Patrimônio cultural encontra-se no site do IPHAN. Em relação aos bens de natureza material e imaterial que podem ser considerados patrimônio enquadram-se “as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218, acessado em 25/09/2015.

brasileira, diversidade essa que, atualmente, é mundialmente reconhecida. Portanto, pode-se considerar que as cidades e centros antigos patrimonializados são lugares de uma memória seletiva impregnada de um conteúdo ideológico voltado para legitimar uma narrativa histórica que procura ocultar, em grande parte, o processo conflitivo e contraditório de formação do território brasileiro, pautado na exploração colonial, na escravidão e na dizimação dos povos autóctones (MORAES, 2005).

Legitima-se, dessa forma, como referencial concreto da história, das artes e da cultura brasileira, um conjunto de edificações, objetos e monumentos que omitem a própria história e o reconhecimento daqueles que contribuíram para a sua construção e valorização. Para exemplificar esta questão, basta citar que grande parte do acervo artístico e arquitetônico das cidades históricas mineiras e do centro antigo de Salvador, Recife, Olinda e outros, foi edificada com o auxílio da mão de obra escravizada, fato que nos remete à célebre reflexão de Walter Benjamin, que “todo documento de cultura é também, de alguma forma, um documento de barbárie”23.

A partir dos exemplos de como as narrativas históricas e certas características geográficas do território podem ser utilizadas como elementos constitutivos da identidade nacional, observa-se como o Estado e seus aparelhos ideológicos contribuem para a “fabricação de identidades (...) influenciadas por determinações ideológicas e políticas que emanam dos centros de controle (...)” (DI MÉO& BULÉON, 2005, p. 44-45).

Na análise da ideologia enquanto fenômeno geográfico, Berdoulay (1985) reforça que o discurso ideológico, ao ser responsável pela produção de representações e de criação de sentidos, influencia as ações sobre os territórios e a legitimação de certas práticas sociais para atingir determinados fins. Portanto, a ideologia adquire uma dimensão concreta ao influenciar o processo de patrimonialização dos territórios e a refuncionalização das formas herdadas. O autor ressalta, porém, que a ideologia opera em um campo conflitual, já que pode ser criada e manipulada por agentes sociais com interesses diversos. Em sua interpretação, as ideologias, portanto não emanam apenas dos grupos dominantes. Dessa forma, para além da produção e difusão de discursos ideológicos efetuados pelo Estado, a ideologia pode emanar de atores sociais diversos, como dos agentes de mercado, responsáveis pela criação de discursos voltados à produção de um sentido coletivo destinado a estimular o consumo.

A utilização da mídia e dos meios publicitários para a circulação de discursos ideológicos promovidos pelos agentes de mercado em consonância, muitas, vezes, com o

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próprio poder público, amplia o universo de representações acerca dos territórios, tornando-os mais atraentes para o consumo de seus objetos e paisagens. Cabe, portanto, aos gestores urbanos, “ordenar as representações eleitas como hegemônicas (...) visando tomar as identidades territoriais como uma marca na venda das cidades (...)” (PAES, 2009, p. 173 – grifo da autora). O patrimônio cultural preservado assume cada vez mais este papel na contemporaneidade.

A dimensão ideológica da cultura e do consumo produz uma indissociabilidade entre a esfera da produção material e simbólica, subsidiando os trâmites que levam ao processo de reconhecimento e legitimação do valor histórico e cultural dos bens materiais e imateriais patrimonializados e a sua mercantilização. Em ambos os processos, os quesitos de identidade, memória, autenticidade e excepcionalidade são amplamente utilizados pelos órgãos preservacionistas nacionais e mesmo pela UNESCO, responsável pela atribuição da chancela de Patrimônio Mundial, para legitimar escolhas, definir critérios de valorização e preservação e criar pseudoconsensos sobre a relevância destes lugares de memória para a sociedade.

Ao tecer reflexões sobre a economia política dos signos, Baudrillard (1981), referindo-se aos objetos-signo, atesta que não é o seu valor de uso que atrai o consumidor a adquiri-lo, mas é o que ele representa e o que o distingue dos demais objetos que estimula a sua aquisição. Ao transpor essa análise para a escala dos territórios, pode-se considerar que o poder de atração exercido pelo lugar tem muita relação com a representação que se tem a seu respeito, pautada, principalmente nos atributos que o diferenciem dos demais, atribuindo-lhes status e prestígio. Aplicando essa teoria aos territórios patrimonializados, constata-se que, ao terem o intuito de representar o resgate da memória na era do esquecimento e da autenticidade na era da reprodução em massa, tendem a gerar um poder de atração e sedução significativo entre muitos de seus habitantes e frequentadores.

A dimensão ideológica que envolve o domínio das representações atua na produção de simulações a respeito dos objetos e lugares. Segundo Baudrillard (1991, p. 9), “simular é fingir ter o que não se tem”. Portanto, de acordo com o próprio autor, a simulação pode ser considerada como uma falsa representação.

No âmbito dos objetos e territórios patrimonializados, cabe ressaltar que em parte dos casos as referências à sua autenticidade, à memória e à identidade nacional não passam de uma simulação na tentativa de recriar uma ideia de passado e de identidade nacional que nunca chegou a existir. Para explicitar melhor a questão convém aprofundar a análise no

critério da autenticidade que possui grande relevância nos debates sobre a questão patrimonial e nas diretrizes das políticas oficiais de preservação desde os seus primórdios até os dias atuais, em âmbito nacional e internacional.