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O papel das ideologias espaciais na consagração internacional das cidades brasileiras reconhecidas como Patrimônio Mundiais

SEGUNDA PARTE: Produção, difusão e consagração do patrimônio cultural brasileiro como bens simbólicos: a valorização do passado e a

5. O papel das ideologias espaciais na consagração internacional das cidades brasileiras reconhecidas como Patrimônio Mundiais

No campo do patrimônio cultural, várias são as instâncias de poder que atuam na identificação, reconhecimento e valorização dos bens patrimoniais. Enquanto os Estados- Nação ainda exercem um poder soberano neste processo de legitimação do valor patrimonial dos bens culturais e na gestão destes, atualmente é também necessário considerar a relevância de ordem política, econômica, ideológica e cultural da UNESCO, enquanto instância de produção simbólica.

Considerada como a principal organização supranacional da ONU no âmbito da cultura, a UNESCO é responsável pela atribuição da chancela de Patrimônio Mundial a um conjunto cada vez mais abrangente de monumentos, conjuntos arquitetônicos, territórios, paisagens e, mais recentemente, de expressões da cultura imaterial reconhecidos de acordo com critérios pré-estabelecidos nas Convenções do Patrimônio Mundial, um evento de suma importância que legitima a inserção de novos bens à lista do Patrimônio Mundial, classificados em cultural, natural, misto ou imaterial.

Por mais que o intuito norteador da UNESCO em sua trajetória histórica de reconhecimento dos Patrimônios Mundiais esteja voltado para a promoção de políticas de cooperação internacional visando a sua salvaguarda, torna-se plausível compreender o sistema ideológico que embasa os critérios de valorização e reconhecimento de um conjunto seleto de bens e territórios de relevância mundial, já que estes, de forma cada vez mais significativa, norteiam as estratégias de marketing territorial e a promoção turística dos lugares em que se encontram.

No caso do Brasil, que possui, até o ano de 2014, 19 bens e lugares inscritos na lista do Patrimônio Mundial, cabe, nesta pesquisa, considerar o papel da UNESCO na produção de um sistema de representações sociais sobre Ouro Preto e o Centro Histórico de Salvador e a influência da instituição para o desenvolvimento turístico de ambas as cidades. A pesquisa se baseia na análise dos pareceres dos consultores da UNESCO que viajaram pelo Brasil entre as décadas de 1960 e 1970 com o intuito de analisar a relevância do patrimônio cultural brasileiro já tombado pelo IPHAN com o intuito de endossar os critérios de valorização destes em nível internacional e de desenvolver estratégias para a sua preservação, destacando o desenvolvimento do turismo como parte deste processo.

Estes relatórios contribuem para a fundamentação da justificativa de candidatura de monumentos, centros históricos e cidades brasileiras a Patrimônio Mundial, bem como os pareceres finais da UNESCO que validam o reconhecimento de sua chancela. A análise das representações sociais e o conteúdo ideológico presente em tais documentos, pois possibilita a compreensão da trajetória de reconhecimento do valor universal e excepcional de Ouro Preto e do centro histórico de Salvador e evidenciam o papel da UNESCO na fundamentação da relevância do turismo para a preservação patrimonial. Também auxiliam a compreender a influência do título de Patrimônio Mundial nas estratégias de marketing urbano e na promoção turística das cidades estudadas.

Em novembro de 1972, ocorreu na cidade de Paris a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, durante a Conferência Geral da UNESCO. Este evento pode ser considerado o principal marco de referência que legitima o papel desta organização no reconhecimento, valorização e proteção de um conjunto heterogêneo de bens de natureza cultural e natural que passam a ser inscritos na lista do Patrimônio Mundial. Porém, pode-se considerar que o debate e as recomendações sobre o reconhecimento do valor universal de bens de natureza cultural e natural se intensificam, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial e decorrem das ameaças de destruição destes devido a possíveis conflitos armados e do processo de desenvolvimento urbano-industrial.

Segundo Bo (2003, p. 17), desde a sua fundação, em 1946, a UNESCO, por meio de reuniões periódicas, instiga o debate de ideias a respeito da noção de patrimônio, envolvendo a participação de acadêmicos, juristas, representantes dos Estados-membros e de entidades não- governamentais. Tais medidas visavam fomentar “(...) os meios e ações de proteção ao patrimônio cultural e natural de todas as nações” (BO, 2003, p. 9).

A concretização destes esforços se deu em 1959 com a atuação da UNESCO e da comunidade internacional na arrecadação de verbas visando impedir a destruição dos templos de Abu Simbel e Philae, considerados como monumentos de primeira grandeza da antiga civilização egípcia, ameaçados pelas as inundações decorrentes da construção da Represa de Assuan, no Egito (LEAL, 2010, p. 48). Tais esforços resultaram na arrecadação de fundos utilizados na realização de pesquisas arqueológicas para assegurar a remoção de tais templos das áreas que seriam inundadas para sua posterior montagem, pedra por pedra, em outro local. No período da Guerra Fria, a possibilidade evidente de conflitos armados de grandes proporções poderia culminar na destruição de inúmeros bens patrimoniais de relevância mundial. Como forma de evitar uma nova onda de destruição do rico acervo

arquitetônico representativo de períodos históricos, povos e culturas diversas, procurou-se estabelecer diretrizes normativas destinadas à proteção de tais bens no caso de eclosão de tais conflitos. Tal debate resultou na Conferência de Haia de 1954 sobre a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado. Segundo Silva (2003, p. 42) esta Conferência “(...) foi a primeira a introduzir no Direito Internacional Positivo a expressão “patrimônio cultural de toda a humanidade”, como se observa na disposição a seguir:

Convencidos de que os atentados perpetrados contra os bens culturais, qualquer que seja o povo a quem eles pertençam, constituem atentados contra o patrimônio cultural de toda a humanidade, sendo certo que cada povo dá a sua contribuição para a cultura mundial. Considerando que a convenção do patrimônio cultural apresenta uma grande importância para todos os povos do mundo e que importa assegurar a este patrimônio uma proteção internacional (CONFERÊNCIA DE HAIA, 1954)80.

A atuação significativa da UNESCO para a efetivação deste acordo demonstra o papel relevante da organização na proteção do patrimônio de relevância mundial em tempos de paz ou de guerra. No entanto, cabe considerar que, tanto no plano teórico quanto na definição das diretrizes norteadoras dos critérios de seleção, classificação e proteção do patrimônio mundial, o papel das Cartas Patrimoniais foi deveras significativo, pois estas se configuram como documentos que instituem o caráter universal do debate e das ações em prol da manutenção da integridade física do patrimônio. Segundo Alho e Cabrita (1988, p. 131 apud PEIXOTO, 2000a), é na primeira Conferência Internacional para a Conservação dos Monumentos Históricos, realizada em Atenas, em 1931, “(...) que surge pela primeira vez a ideia de um património internacional, estipulando-se as bases de uma solidariedade internacional nos planos jurídico e científico”, referindo-se, principalmente, ao patrimônio artístico e arqueológico, conforme explicitado em um excerto do documento:

A Conferência, convencida de que a conservação do patrimônio artístico e arqueológico da humanidade interessa à comunidade dos Estados, guardiã da civilização, deseja que os Estados, agindo no espírito do Pacto da Sociedade das Nações, colaborem entre si, cada vez mais concretamente para favorecer a conservação dos monumentos de arte e de história (CURY, 2004, p. 16)

A Segunda Guerra Mundial recrudesceu as relações diplomáticas entre os países envolvidos no conflito e suas consequências foram desastrosas para o campo do patrimônio, levando à destruição de inúmeras obras monumentais e conjuntos arquitetônicos localizados,

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Excerto extraído da Conferência de Haia de 1954, disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-%C3%A0- Cultura-e-a-Liberdade-de-Associa%C3%A7%C3%A3o-de-Informa%C3%A7%C3%A3o/convencao-para-a-protecao-dos-bens-culturais-em- caso-de-conflito-armado-convencao-de-haia.html. Acesso em 30 de maio de 2014.

principalmente, nos países europeus. Anos após o fim do conflito, em 1964, foi divulgada a Carta de Veneza, detentora de proposições a respeito da conservação e restauração de monumentos e sítios e que, segundo Leal (2010, p. 49), apresenta considerações relevantes na criação da noção de patrimônio mundial. Neste documento se encontra uma clara menção à noção de “patrimônio comum” e o dever de instauração de medidas internacionais de proteção visando preservá-los para as gerações futuras.

5.1. O papel da UNESCO na consagração do Patrimônio Mundial: dimensão normativa e ideológica

Na segunda metade do século XX, os debates e as ações de proteção patrimonial se universalizaram e passaram a envolver a atuação conjunta dos Estados nacionais e de organizações internacionais ligadas à esfera cultural no desenvolvimento de princípios teóricos e conhecimentos técnicos destinados a reforçar as diretrizes normativas e a nortear as estratégias de intervenção visando a preservação de um patrimônio de relevância mundial. Este papel foi assumido, de forma mais incisiva, pela UNESCO a partir da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, considerada um dos mais importantes eventos relacionados à questão patrimonial de relevância mundial destinado a criar diretrizes internacionais de proteção de um patrimônio de tipologias diversas, representativo de povos e culturas distintas.

Durante a 17ª Conferência Geral da UNESCO, realizada em 1972, instaurou-se a Convenção para a proteção do Patrimônio Mundial. Esta consiste em um “(...) documento jurídico de caráter internacional (...) e tem como principal objetivo tentar proteger da destruição bens naturais e culturais que apresentem valor excepcional para a comunidade mundial” (WIDMER, 2008, p. 4). Desenvolvidos por especialistas de diversas nacionalidades ligados aos campos do saber relacionado ao patrimônio, os trinta e oito artigos que fundamentam sua composição tratam da definição do patrimônio cultural e natural, das suas formas de proteção nacional e internacional, do papel das organizações internacionais na seleção, avaliação e assistência internacional e dos fundos internacionais para a proteção do patrimônio cultural e natural (UNESCO, 1972)81.

Apesar de ter sido aprovada pelos Estados-parte durante a Conferência de 1972, a sua implementação ocorreu apenas em 1978, devido aos ajustes necessários à viabilização e

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UNESCO. Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, 1972. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=244, acesso em 15 de julho de 2014.

concretização de tais propósitos. A amplitude dos bens materiais e de territórios passíveis de reconhecimento como Patrimônios Mundiais evidenciou, desde o princípio dos trabalhos da UNESCO, dificuldades de definição de seus critérios de classificação e de atuação das organizações competentes para colocar em prática seus propósitos. O artigo primeiro da Convenção define o patrimônio cultural como:

Os monumentos. – Obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; Os conjuntos. – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

Os locais de interesse. – Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico (UNESCO, 1972)82.

A justificativa explicitada pela Convenção de proteção destas referências materiais da cultura se deu em função dos riscos eminentes de perda destas em função de fatores naturais e da própria dinâmica social e econômica dos povos. Além disso, tal iniciativa procurou evidenciar um trabalho conjunto entre os Estados nacionais em prol do reconhecimento da diversidade cultural, a partir da atribuição de um valor universal e excepcional a bens e territórios representativos de culturas diversas.

Em termos ideológicos, para o patrimônio cultural, enquadrava-se entre as prerrogativas da UNESCO valorizar esta diversidade como um patrimônio comum a fim de combater as distinções hierárquicas entre povos e culturas distintas e de contribuir para a “(...) criação de uma identidade coletiva que unisse a todos, independentemente, de suas diversas configurações identitárias (SANTOS & PEIXOTO, 2013, p. 51). Isso se daria a partir de ações conjuntas entre os representantes dos Estados nacionais visando assegurar a sua “proteção coletiva”, conforme Leal (2010).

Porém, constatou-se que este ideário ficou mais restrito ao âmbito do discurso do que da prática, já que desde os primeiros anos de atuação da UNESCO houve um claro predomínio dos valores da cultura ocidental nas ações de seleção e valorização dos

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UNESCO. Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, 1972. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=244, p. 3. Acesso em 15 de julho de 2014.

patrimônios mundiais e, consequentemente, de um número expressivamente maior de bens e lugares inscritos na lista da UNESCO localizados nos países europeus.

Halevy (2004) e Lazarotti (2000) afirmam que a concepção de um patrimônio monumental e de uma estética europeia norteou o processo de seleção deste patrimônio, legitimando a hegemonia dos países europeus em tais ações. Estes preceitos ideológicos foram legitimados por indefinições teóricas e imprecisões conceituais dos critérios norteadores da seleção e valorização patrimonial, tais como o de “valor universal excepcional” e o de “autenticidade” que ainda hoje suscitam muitos debates em torno de sua aplicação. Por mais que o termo “valor universal excepcional” esteja presente em diversos trechos da Convenção de 1972, ele carece de definições precisas que legitimem os processos de escolhas dos bens e lugares contemplados com o título de patrimônio mundial.

Devido às dificuldades de operacionalização das diretrizes da Convenção, as primeiras medidas destinadas à concretização de seus princípios se deu em 1976, com a eleição do Comitê do Patrimônio Mundial e com a instituição do Fundo do Patrimônio, e em 1977, com a publicação das diretrizes operacionais para a implementação da Convenção do Patrimônio Mundial, a qual apresenta os critérios que procuram justificar o “valor universal excepcional” dos sítios. Ao longo da trajetória de atuação da UNESCO no reconhecimento dos patrimônios mundiais, tais critérios sofreram pequenas alterações em seu conteúdo visando validar, de forma mais precisa, os atributos que balizam a seleção e os valores atribuídos ao patrimônio mundialmente relevante. São eles:83

(i) - representar uma obra-prima do gênio criativo humano; ou

(ii) - mostrar um intercâmbio importante de valores humanos, durante um determinado tempo ou em uma área cultural do mundo, no desenvolvimento da arquitetura ou tecnologia, das artes monumentais, do planejamento urbano ou do desenho de paisagem; ou

(iii) - mostrar um testemunho único, ou ao menos excepcional, de uma tradição cultural ou de uma civilização que está viva ou que tenha desaparecido; ou

(iv) - ser um exemplo de um tipo de edifício ou conjunto arquitetônico, tecnológico ou de paisagem, que ilustre significativos estágios da história humana; ou

(v) - ser um exemplo destacado de um estabelecimento humano tradicional ou do uso da terra, que seja representativo de uma cultura

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Evidenciam-se nesta pesquisa apenas os critérios de seleção do patrimônio cultural. Além destes seis há mais quatro para a seleção dos sítios do patrimônio natural, totalizando dez critérios. Desde 2004 as diretrizes operacionais para a inscrição dos patrimônios da humanidade foram reformuladas agrupando em um único conjunto os critérios de seleção do patrimônio cultural e natural. Segundo Jokilehto (2008, p. 11), os critérios culturais foram modificados várias vezes ao longo do tempo, como em 1983, 1984, 1988, 1992, 1994, 1996, 1997 e em 2005” (tradução da autora).