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O papel das representações sociais na produção imaterial do turismo

PRIMEIRA PARTE: Cultura e mercado nos territórios patrimonializados

3. A relevância das imagens e discursos na mercantilização do passado e na comercialização da tradição nas cidades-patrimônio

3.1. O papel das representações sociais na produção imaterial do turismo

O processo de produção de uma imagem forte e atraente para a dinamização do turismo e para a atração de investimentos implica, não apenas a criação de um referencial normativo e de um aparato discursivo destinado a enfatizar a valorização diferencial das cidades e centros antigos patrimonializados, nem tampouco se traduz na realização de intervenções urbanas destinadas a destacar a relevância estética, histórica artística e cultural dos marcos simbólicos, sejam eles objetos ou paisagens. É na interface entre a produção e o consumo cultural, que se criam estratégias e meios de divulgação de discursos competentes e imagens convincentes destinados à comercialização dos destinos turísticos tratados como protótipos idealizados do passado, como o lócus de reencontro das tradições, como destinos detentores de paisagens singulares que reforçam os vínculos entre o espaço e o tempo por meio de suas formas, do estímulo a experiências únicas e enaltecedoras e das diversas possibilidades de lazer, cultura e consumo que oferecem. Com isso, o conteúdo das mensagens visuais e escritas procura construir e difundir um conceito a respeito de tais cidades que reforcem os seus aspectos qualitativos mais expressivos, objetivando criar subsídios para que os seus intérpretes estabeleçam uma seleção prévia dos possíveis lugares a serem visitados.

A produção e divulgação de imagens fotográficas e discursos enaltecedores das suas peculiaridades materiais e simbólicas nos materiais de divulgação turística, como guias turísticos e revistas especializadas, folders e panfletos utilizados por agências, operadoras de turismo e pelo próprio poder público, cartões postais e pelos próprios sites da internet estimulam o imaginário e atuam como elementos motivadores das escolhas sobre os destinos turísticos e as possíveis opções de roteiros efetuados. Neste sentido, as estratégias de comunicação que partem da inter-relação entre a imagem fotográfica e os discursos a elas atrelados são muito utilizadas para aguçar o estímulo visual e o teor comunicativo que a mensagem procura transmitir.

A seleção vocabular com o uso da adjetivação hiperbólica constitui, segundo Ferrara (2002b, p. 71), uma estratégia muito utilizada nos meios de comunicação para elevar os efeitos visuais e os estímulos transmitidos pelas mensagens. Nos guias turísticos, nas

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propagandas e nos materiais de divulgação turística, são comumente encontrados textos concisos em que o uso de termos hiperbólicos, como “o maior”, “o melhor”, “o mais autêntico”, “o mais antigo”, “o excepcional”, “o verdadeiro”, entre outros, influenciam o receptor da mensagem a destacar o teor valorativo dos atrativos turísticos e das localidades onde se encontram. No caso das estratégias de divulgação turística das cidades de relevância histórica e cultural e dos centros antigos, tais termos são empregados para exaltar a monumentalidade das edificações, o seu valor patrimonial e a sua relevância histórica, mesmo que vigorem como recursos retóricos destinados à apresentação de uma falsa realidade. É como se tais narrativas discursivas apresentassem à experiência os traços de um passado imutável e de uma tradição depurada e imanente ao lugar.

Parte destas terminologias, como autenticidade e excepcionalidade embasam o discurso legitimador do valor patrimonial de um bem cultural. Portanto, tais termos são comumente encontrados tanto nos documentos institucionais que legitimam o valor patrimonial dos bens culturais, quanto nos materiais de divulgação turística das cidades e centros antigos patrimonializados. Segundo Ferrara (2002b, p. 71), o verbal cria e sustenta o apelo visual da imagem e de tal sorte que o registro gráfico, e quase sempre fotográfico, constitui expansão ou ilustração daquilo que é sugerido pela seleção vocabular.

As imagens fotográficas retratadas nesses mesmos materiais de divulgação representam, principalmente, os marcos simbólicos historicamente e culturalmente mais significativos e imponentes das cidades e dos centros antigos e os ângulos esteticamente mais relevantes da paisagem urbana. A fotografia oferece uma miríade de imagens das cidades, retratando desde os detalhes mais pitorescos das formas arquitetônicas e do patrimônio estetizado até imagens panorâmicas que transmitem não apenas as características da dimensão formal da paisagem, mas também dão a noção de dimensão, de proporção e de conjunto e evidenciam seus contrastes característicos que denotam as diferentes temporalidades constitutivas da paisagem urbana das cidades e centros antigos patrimonializados. As imagens fotográficas podem também evidenciar a vida os traços da vida social e cultural das cidades e de seus habitantes, bem como demonstrar o seu potencial de consumo por meio da exibição de seus produtos “típicos” e dos locais de compra que dispõem. Porém, constata-se que a arquitetura é retratada na maior parte das imagens fotográficas, por ser considerada como um importante referencial de comunicação das cidades.

A ênfase em um ou outro aspecto retratado pelas lentes fotográficas, associadas ao aparato discursivo destinado a exaltar o se estímulo visual e a transmitir a mensagem que se

pretende evidenciar, têm como intuito estimular o imaginário e reforçar as expectativas do consumidor. Para tanto, é importante evidenciar que este repertório imagético e discursivo é fruto de uma seleção prévia e da manipulação de seus signos para destinado à criação de um sistema de representações que estimule a criação de imagens-síntese das cidades retratadas. O processo de construção e circulação das imagens é um dos fundamentos do capitalismo na pós-modernidade, já que manipula os desejos e estimula o consumo das mercadorias. Portanto, segundo Harvey (1992, p. 260), “a imagem se torna importantíssima na concorrência, não somente em torno do reconhecimento da marca, como em termos de diversas associações com esta – “respeitabilidade”, “qualidade”, “prestígio”, “confiabilidade” e “inovação”.

A produção e a divulgação de uma imagem sólida e forte a respeito de uma cidade e de seu patrimônio constituem-se num elemento fundamental para que se torne mais atrativa para o turismo. Por isso, tanto o poder público quanto os agentes de mercado atuam, de forma cada vez mais contundente, no processo de seleção de signos e mensagens destinadas à venda da própria cidade e de seu patrimônio como mercadoria cultural. Tal intencionalidade fica evidente com a análise das mensagens publicitárias que, segundo Joly (2005, p. 124), devem ser claras e enfáticas, de forma a evitar uma multiplicidade de interpretações.

Tal estratégia acarreta no processo denominado por Silveira (2001) de produção imaterial do turismo, que influencia nas próprias formas de uso, organização e valorização dos territórios apropriados pelo turismo. Para a autora, este processo está relacionado com a relação intrínseca entre o conteúdo informacional e ideológico capitalisticamente comercializado a respeito das localidades retratadas e a própria produção dos lugares turísticos (SILVEIRA, 2001, p. 36-37). Essa produção imaterial do turismo está relacionada a todo um sistema de representações a respeito de tais localidades que influencia na dinâmica territorial da atividade. Para compreendê-la é importante analisar todo o circuito que envolve a produção, comercialização e consumo das imagens das cidades, contemplando seus principais focos de atração.

É válido ressaltar que o processo de construção e consolidação da imagem das cidades e centros antigos patrimonializados perpassa, primeiramente, pelos órgãos preservacionistas, a partir do próprio processo de reconhecimento e legitimação do seu valor patrimonial. O sistema de representações criados a partir deste processo revela, num primeiro momento, interesses políticos e ideológicos destinados à constituição de um ideário de nação. “Eles dependem, de agora em diante, de uma intencionalidade social e política; eles são

ideológicos, instrumentais e se materializam facilmente nos emblemas, nos símbolos ou nos estereótipos”42 (DEBARBIEUX, 1997, p. 203 – tradução da autora).

O reconhecimento internacional de seu valor patrimonial universal pela UNESCO também contribui no processo de criação e difusão de uma imagem sólida e consistente das cidades, centros antigos, paisagens culturais e bens materiais e imateriais reconhecido como Patrimônio da Humanidade. Com o vínculo cada vez mais evidente entre cultura e mercado e com a consequente transformação do patrimônio numa mercadoria cultural de grande relevância cultural e econômica, cabe evidenciar como os agentes de mercado se apropriam, reforçam e divulgam as imagens destes bens culturais, territórios e paisagens para o consumo turístico nas cidades-patrimônio.

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“Elles relèvent désormais d’une intentionnalité sociale et politique; elles sont idéologiques, instrumentales et se matérialisent volontiers dans des emblèmes, des symboles ou des stéréotypes”.

SEGUNDA PARTE: Produção, difusão e consagração do patrimônio