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Ouro Preto e Pelourinho (Salvador) como Patrimônios Nacionais: identidades territoriais e representações hegemônicas

SEGUNDA PARTE: Produção, difusão e consagração do patrimônio cultural brasileiro como bens simbólicos: a valorização do passado e a

4. A esfera da produção do patrimônio como bens simbólicos

4.1 Ouro Preto e Pelourinho (Salvador) como Patrimônios Nacionais: identidades territoriais e representações hegemônicas

O projeto de construção da identidade nacional foi uma das principais prerrogativas norteadoras do processo de patrimonialização das referências materiais da cultura, durante as quatro primeiras décadas de atuação do IPHAN. Em tal período, pode-se considerar que determinadas parcelas do território nacional constituíram as principais fontes do processo de formação dos vínculos identitários da nação em construção, prerrogativa esta que fazia parte de um projeto estatal fundamentado no fortalecimento do nacionalismo. Neste sentido, as formas simbólicas constituídas por edifícios isolados e conjuntos arquitetônicos setecentistas e oitocentistas passaram a adquirir uma relevância simbólica significativa e institucionalmente reforçada, ao serem patrimonializadas, buscando reforçar os vínculos entre pessoas e territórios dotados de um sistema de objetos representativos de tempos regressos.

Segundo Haesbaert (1999, p. 180), “a (re)construção imaginária da identidade envolve portanto uma escolha, entre múltiplos eventos e lugares do passado, daqueles capazes de fazer sentido na atualidade”. Portanto, a construção da identidade nacional está na base do processo de diferenciação simbólica e material dos territórios a partir do momento em que o valor patrimonial é atribuído às suas referências materiais constitutivas. Além da definição de uma base territorial, o processo de construção da identidade se pauta na valorização de narrativas temporais selecionadas como corpus constitutivo da “(...) história enquanto

representação do passado (...) que constitui a mais forte de nossas tradições coletivas; nosso meio de memória, por excelência” (NORA, 1993, p. 10).

Considerando o processo de patrimonialização como um dos principais meios de produção dos referenciais identitários da nação, e o IPHAN como o Aparelho ideológico do Estado responsável pela seleção destes recortes temporais e espaciais valorizados de forma diferencial, cabe analisar as motivações que levam à seleção de certas partes do território nacional e das suas formas simbólicas mais representativas a serem eleitas como objeto de patrimonialização, bem como de que forma o Estado, por meio do IPHAN, atua na criação de um sistema de representações que legitima o processo de patrimonialização e as ações de valorização cultural e econômica das cidades e centros antigos consagrados como patrimônios nacionais.

Analisar o conteúdo ideológico contido nas narrativas discursivas que embasam o processo de legitimação do estatuto patrimonial das referências culturais de duas cidades brasileiras detentoras de um rico acervo patrimonial tombado pelo IPHAN, como Ouro Preto e o Pelourinho, em Salvador, consiste em uma das formas de compreensão das intencionalidades inerentes à sua patrimonialização. As fontes de pesquisa documental congregadas em seus processos de tombamento e inventário, endossadas pelas publicações científicas que reiteram a sua relevância histórica e cultural, viabiliza a análise do sistema de representações produzido e difundido sobre tais cidades pelo Estado a partir da manipulação da esfera dos valores e significados institucionalmente atribuídos a tais bens.

A compreensão da base constitutiva de tais representações implica em desvendar se tal estratégia de valorização cultural do patrimônio contribuiu para a formação de uma identidade territorial distintiva de tais cidades atreladas ao seu acervo patrimonial, e se tal viés identitário serve, atualmente, como referencial significativo para o processo de constituição de imagens-síntese respectivas a tais núcleos urbanos que contribuam para inserir o seu acervo patrimonial no circuito turístico nacional e mundial.

Enveredar-se pelas trilhas interpretativas da análise documental referente ao patrimônio citadino de Ouro Preto e do Pelourinho requer compreender a relevância histórica, política e econômica que ambas tiveram em períodos históricos precedentes, principalmente, no período colonial, resultando na produção de suas formas simbólicas mais proeminentes. Portanto, pretende-se compreender a relevância histórica e analisar as características da produção artística e cultural de ambos os sítios a partir das referências documentais existentes no seu processo de tombamento e inventário, endossadas por pesquisas científicas que

possibilitam a compreensão das motivações elencadas pelos especialistas em produção simbólica, como os técnicos e especialistas vinculados ao IPHAN e seus colaboradores, na atribuição do valor histórico, artístico e cultural de seus territórios e do seu acervo cultural correspondente.

Os critérios de seleção de ambas as cidades como objetos de uma pesquisa teórica e empírica mais acurada se pautaram na sua relevância histórica, artística e cultural, resultando na produção um rico acervo patrimonial, e também pela importância que tiveram no movimento de preservação patrimonial brasileiro ao se destacarem, primeiramente, por serem cidades que estão na vanguarda do movimento preservacionista nacional. Em função da relevância patrimonial adquirida por ambas, ao longo do século XX, tanto em nível nacional quanto internacional, pretende-se compreender o sistema de representações sobre tais cidades associadas às intencionalidades que permeiam este processo durante as distintas fases de atuação do IPHAN.

Sobre tais fases, adota-se a periodização efetuada por Motta (2000), que divide o movimento preservacionista brasileiro em três períodos distintos: o inicial, de 1937 a 1970, quando o viés preservacionista se pautava na preservação de uma unidade estética e estilística dos sítios urbanos; o intermediário, que vai de 1970 ao início dos anos noventa, quando o patrimônio passa a ser compreendido como documento; e o modelo globalizado, em que o patrimônio, transformado em mercadoria, passa a estar atrelado a finalidades comerciais e de consumo, principalmente, com o advento do turismo. Cabe, porém, ressaltar que a análise documental do IPHAN se concentra, principalmente, ao longo dos dois primeiros períodos de atuação do órgão, já que o acervo documental contido nos documentos analisados se restringe à década de 1980.

Como a chancela de Patrimônio Mundial foi atribuída a tais cidades nesta mesma década, a análise documental de ambas as cidades que justificou a atribuição da chancela pela UNESCO também é alvo de averiguação, viabilizando a compreensão do sistema de ideias e representações criadas pela instituição a respeito destas.

Por fim, o último período será contemplado a partir da análise de outras fontes de pesquisa atreladas à exploração mercadológica do patrimônio por meio do turismo, de modo a demonstrar de que forma o seu acervo patrimonial é, atualmente, utilizado nas estratégias de marketing urbano para a promoção de uma imagem distintiva de tais cidades, visando aumentar o fluxo de turistas que a visitam.

Num primeiro momento, o referencial discursivo explicitado nos documentos contemplados no processo de tombamento e no inventário de Ouro Preto e do Centro Histórico de Salvador, pelo IPHAN, visa fornecer as bases para a análise do conteúdo ideológico contido nos critérios de seleção, valorização e das formas de representação do seu acervo patrimonial. O discurso, em suas diferentes modalidades, passa a constituir-se na principal referência de análise da ideologia explícita nos documentos textuais. Tal perspectiva atrela o processo de produção de sentido resultante da interpretação do discurso às intencionalidades dos sujeitos que o produziram e às condições socio-históricas de sua produção. Segundo Orlandi (2004, p. 31):

Redefinindo, assim, a ideologia discursivamente, podemos dizer que não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. A ideologia, por sua vez, é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários.

Em termos gerais, os documentos institucionais explicitam por meio de suas referências textuais a posição do Estado frente à determinada temática por meio de discursos divulgados em documentos institucionais. No âmbito do patrimônio, em nível federal, o IPHAN é a principal instância representativa dos interesses estatais. Enquanto Aparelho Ideológico do Estado, o órgão preservacionista promove a legitimação de ideias e consensos intencionalmente produzidos com a finalidade de reforçar certos sentidos e eliminar ou atenuar outros, resultando na criação de uma realidade ilusória em que se pretende exaltar. Segundo Foucault (1974 apud Brandão, 2004, p. 37),

o discurso é o espaço em que saber e poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa por verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional), é gerador de poder.

Neste sentido, a análise do discurso não presume a transmissão de informações, pura e simplesmente, mas envolve o processo de produção de um sentido que não é imanente à língua e sim, objeto de manipulação ideológica. Portanto, um dos fundamentos deste tipo de análise é desvendar os agentes responsáveis pela produção discursiva, bem como as instituições em que se vinculam e as condições históricas de sua produção. Tal viés metodológico amplia as possibilidades de compreensão do papel desempenhado pelas narrativas discursivas constitutivas do acervo documental que justifica a atribuição de um valor patrimonial a objetos, paisagens e territórios, da mesma forma em que possibilita compreender os aspectos idiossincráticos e os interesses conflitantes em sua constituição, os quais nem sempre se evidenciam de forma explícita.

4.2. O olhar do IPHAN sobre Ouro Preto: a construção da imagem de uma cidade