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Narrativas discursivas sobre o Centro Histórico de Salvador sob a ótica do IPHAN

SEGUNDA PARTE: Produção, difusão e consagração do patrimônio cultural brasileiro como bens simbólicos: a valorização do passado e a

4. A esfera da produção do patrimônio como bens simbólicos

4.3 Narrativas discursivas sobre o Centro Histórico de Salvador sob a ótica do IPHAN

Os anos 1930marcaram de forma significativa as ações do nascente movimento preservacionista brasileiro na busca de referências materiais representativas de uma identidade nacional ideologicamente construída e politicamente ratificada. Neste período, algumas cidades mineiras que floresceram no apogeu da mineração, principalmente Ouro Preto, assumiram este papel. A expressão da brasilidade se projetava por meio da arte colonial do barroco mineiro, com destaque para os seus elementos arquitetônicos mais imponentes expressos nos núcleos urbanos de cidades mineiras tombados no primeiro ano de funcionamento do SPHAN.

Apesar de a Bahia ter o reconhecimento de 50 bens inscritos na lista do patrimônio apenas no primeiro ano de funcionamento do SPHAN, estando apenas atrás do Rio de Janeiro, com 78 bens (RUBINO, 1996, p. 97), foi o patrimônio arquitetônico colonial das cidades mineiras de pequeno e médio porte que adquiriu o status de símbolos da identidade nacional, possuindo, portanto, um grau de representatividade mais significativo do que os conjuntos arquitetônicos setecentistas e oitocentistas das duas antigas capitais do Brasil, Rio de Janeiro e Salvador.

Naquele período, parte da intelectualidade brasileira considerava a Bahia como “berço da nação”, contrapondo-se ao discurso oficial dos intelectuais modernistas. Mattos (2014) analisa as obras de personalidades importantes da intelectualidade baiana que justificam a ideia da Bahia como ícone da brasilidade, com referências a Salvador enquanto seu principal símbolo. Segundo a autora, várias destas referências são encontradas nas publicações do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IHGB) e retratam as diversas representações sobre a Bahia e a baianidade como referenciais simbólicos constitutivos da nação. Um dos principais defensores desta ideia foi Godofredo Filho, poeta baiano que esteve por mais de quarenta anos na direção do segundo distrito do IPHAN (Bahia e Sergipe), atuando desde sua fundação, em 1937, na valorização e preservação do rico acervo patrimonial da Bahia.

Ao longo de sua trajetória à frente da instituição, esse poeta modernista era um dos maiores defensores da Bahia enquanto berço originário da nacionalidade brasileira.

Segundo Mattos (2014, p. 33), o autor buscou justificar sua ideia no artigo “Introdução ao Estudo da Casa Baiana”, tendo como foco a análise da arquitetura colonial baiana.

As representações sobre a Bahia e Salvador divulgadas em seus poemas e em seus estudos sobre os seus monumentos e conjuntos arquitetônicos não serviam apenas para demonstrar a riqueza material de Salvador, mas também a sua diversidade cultural. Dessa forma, Godofredo Filho procurava justificar a preservação do acervo arquitetônico da antiga capital do Brasil, reforçando a defesa de sua relevância nacional. Referindo-se a Salvador como “cidade museu”, por conter em suas formas traços significativos da antiga capital da Colônia, o autor procura ressaltar em seus monumentos, conjuntos arquitetônicos e nas demais expressões artísticas a estética do barroco.

Se o barroco mineiro era valorizado pelos arquitetos modernistas como uma expressão artística genuinamente nacional, as manifestações do barroco presentes no patrimônio material de Salvador mereceriam, segundo Godofredo Filho, igual destaque, sendo, portanto, dignas de reconhecimento do seu valor patrimonial pelo SPHAN. Santos (2006, p. 71-72) destaca um excerto do texto “O mundo trágico da talha baiana”, publicado no jornal Diário de Notícias de 7 de agosto de 1959, em que o poeta interpreta os significados do barroco nas expressões artísticas da cidade da Bahia, se referindo, principalmente, às obras arquitetônicas e de arte sacra.

Nenhum dos grandes documentos arquitetônicos entre nós, deixou, internamente, de perseguir a volúpia das curvas e de se inspirar na linha barroca, que, por seu movimento e calidez, esteve fadada a se perpetuar. [...] Venceria, entre nós, o barroco, porque foi emoção, a “desordem e a anarquia”, o delírio tão malsinado em outras terras, aqui foram naturais, como veículos da melhor expressão ou, quiçá, como reflexo da eterna luta que todas as almas cristãs conhecem, dessa “agonia” perene que é a prova ineludível de que nossa vida terrena aspira a uma eternidade que desconhece, mas acredita e sabe real63.

É interessante evidenciar que o próprio perfil de Godofredo Filho, enquanto escritor, poeta e diretor do SPHAN, fez com que as suas representações sobre Salvador tratassem, de forma integrada, do patrimônio arquitetônico, do seu legado histórico e da sua tradição cultural. Suas próprias considerações sobre as expressões do barroco em Salvador explicitam tal correlação, como pode ser evidenciado no excerto a seguir, extraído de sua publicação “Introdução ao estudo da casa baiana”64

: “Como há dois, ou três, ou quatro séculos

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FILHO, GODOFREDO. O mundo trágico da talha baiana. A Tarde, Salvador, 07 de ago. 1959.

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idos, a Bahia ainda é gorda; barroca na essência e nos pormenores de sua arte; barroca no seu modo de vida e nas soluções que tem encontrado para vários de seus problemas” (GODOFREDO FILHO, 1959 apud SANTOS, 2006, p. 74).

Tal como Godofredo Filho, foram inúmeros os intelectuais ligados a esfera artística e literária que se envolveram no movimento preservacionista em seus primórdios de atuação. Como conhecedores da história e das expressões culturais de suas cidades e estados de origem, acabaram por produzir obras literárias que contemplaram a produção de narrativas discursivas sobre as produções materiais e imateriais da cultura que refletem a identidade de tais lugares e o apego que possuem à sua terra natal. Esta relação simbólica entre tais escritores e seu território de referência resulta na produção de obras literárias que buscam demonstrar a relevância de tais lugares para a história e para a cultura nacional.

Como um dos maiores entusiastas em defesa da preservação do patrimônio baiano, Godofredo Filho não mediu esforços em efetuar uma produção literária divulgada, em muitos casos, na imprensa local, que buscava despertar o interesse da população sobre a relevância histórica e cultural de Salvador. A sua atuação mais direta no movimento preservacionista fez com que se empenhasse na produção de pesquisas e inventários sobre os edifícios e conjuntos arquitetônicos da Bahia e Sergipe dignos de tombamento federal. Seguindo as diretrizes do próprio SPHAN nas suas três primeiras décadas de funcionamento, Godofredo Filho buscou identificar a estética do barroco presente nas edificações e conjuntos arquitetônicos remanescentes do período colonial, servindo como um dos principais elementos relevantes para assegurar o tombamento de tais bens. O seu trabalho à frente da instituição, envolvendo o levantamento e a caracterização dos exemplares da arquitetura religiosa, civil e militar que mereciam ser tombados na Bahia, principalmente em Salvador, foi muito bem avaliado por Rodrigo Melo Franco de Andrade contribuindo para que este reconhecesse a cidade como detentora do “acervo mais rico do barroco brasileiro65

(SANTOS, 2006, p. 43).

Mesmo diante da expressividade do patrimônio arquitetônico baiano, concentrado principalmente em Salvador, e das manifestações significativas do barroco em seu patrimônio material, reconhecido pelos intelectuais do SPHAN engajados no movimento preservacionista, as cidades coloniais mineiras continuavam mantendo o papel preponderante de símbolos representativos da identidade nacional.

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Esta afirmação foi extraída de uma correspondência de Rodrigo Melo Franco de Andrade endereçada a Godofredo Filho. Esta e outras correspondências foram analisadas por Santos (2006) em sua pesquisa sobre as representações da Bahia efetuadas por Godofredo Filho.

Para os intelectuais modernistas, o barroco mineiro possuía certas características particulares que tornavam suas obras singulares e genuinamente brasileiras. Já no caso de Salvador, a arquitetura colonial se assemelhava ou imitava os traços da arquitetura portuguesa. Tal análise foi efetuada pelo historiador da arte americano Robert Smith66 que esteve no Brasil em 1937 para efetuar pesquisas e contribuir para a divulgação do conhecimento sobre a arte brasileira. Em seu artigo intitulado “Arquitetura civil do período colonial”, o autor faz uma análise das semelhanças existentes entre a arquitetura civil portuguesa e brasileira, analisando as edificações em diversas cidades.

Sobre Salvador, Smith (1969, p. 88) faz o seguinte comentário: “Salvador, a velha capital, ao findar do século XVII, ia-se tornando a ‘nobre e opulenta cidade’, réplica modesta mas autêntica no Nôvo Mundo, da grandeza e do pitoresco de Lisboa”. Apesar de Robert Smith deixar claro em outras publicações que o teor de imitação da arquitetura colonial brasileira67 em relação à produção arquitetônica portuguesa ocorria em diversas cidades e também nas áreas rurais, o historiador da arte defende a tese de que na Bahia este processo se deu com maior intensidade, como retrata no excerto a seguir: “Em quase 215 anos, de 1549 a 1763, durante os quais gozou do privilégio de ser a primeira metrópole lusitana no novo mundo, tornou-se a Bahia uma réplica fidelíssima de Lisboa e do Porto, as duas melhores cidades de Portugal” (SMITH, 1954, p. 11-13 apud MATTOS, 2014, p. 32). As pesquisas realizadas por Robert Smith contribuíram para reforçar a visão dos intelectuais ligados ao SPHAN de considerar as cidades coloniais mineiras como detentoras dos exemplares mais expressivos de uma produção artística genuinamente nacional. Porém, outros quesitos fizeram com que o patrimônio arquitetônico de Salvador não adquirisse igual representatividade simbólica se comparado às cidades da mineração.

Ao sintetizar os critérios de constituição do patrimônio pelo SPHAN dos anos 1930 aos 1970, Fonseca (2009, p. 116) especifica que a autoridade dos técnicos era o principal instrumento de legitimação da seleção dos bens a serem tombados. Nesse sentido, levando em consideração o peso político dos intelectuais mineiros à frente da instituição neste período, conclui-se que a influência destes na atribuição de um status diferencial ao patrimônio colonial mineiro foi deveras significativa. A pesquisadora também atesta que a

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Segundo Ribeiro (2014), Robert Smith e outros historiadores da arte travaram um diálogo significativo com os técnicos do SPHAN. Muitas de suas pesquisas sobre a arte brasileira foram publicadas na revista do SPHAN e contribuíram para embasar os trabalhos técnicos dos profissionais da instituição e legitimar o tombamento de edifícios e conjuntos arquitetônicos de relevância nacional.

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Esta análise é efetuada por Robert Smith na obra “Arquitetura civil do Período Colonial”, publicada na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 17, 1969, ppp. 27-126.

seleção dos bens ou conjuntos arquitetônicos a serem tombados era feita a partir de uma “apreciação de caráter estético” (FONSECA, 2009, p. 116). Este critério dificultava o reconhecimento do valor patrimonial do conjunto arquitetônico colonial de Salvador, concentrado, principalmente, na área central da cidade, devido à falta de homogeneidade estilística do conjunto arquitetônico e do estado acentuado de degradação e descaracterização de parte dos edifícios existentes.

Apesar de acreditar que a Cidade da Bahia poderia ser representativa da identidade nacional, Godofredo Filho não contestou a seleção das cidades barrocas de Minas e centrou esforços para efetuar o tombamento de inúmeras edificações e conjuntos arquitetônicos da cidade com o intuito de protegê-los diante das transformações urbanas ocorridas ao longo do século XX. A sua dedicação à causa patrimonial resultou no tombamento de 79 monumentos arquitetônicos na capital soteropolitana até 195968, ano em que ocorreu o tombamento do centro histórico de Salvador. Parte considerável destes monumentos se encontra no Largo do Pelourinho e em suas imediações, que, atualmente, fazem parte do centro antigo da cidade. Pese o maior enfoque à arquitetura religiosa como alvo de tombamento, também foram tombados edifícios arquitetônicos de caráter monumental da arquitetura civil e militar, edificados, em sua maioria, durante o período colonial.

Apesar da incontestável relevância histórica, arquitetônica e cultural do centro histórico de Salvador, o tombamento de parte do seu centro histórico ocorreu apenas no ano de 1959 mediante o alerta de Godofredo Filho sobre o processo de acelerada descaracterização do seu conjunto arquitetônico, como retrata em ofício endereçado a Rodrigo Melo Franco de Andrade, anexado ao processo de tombamento do centro histórico de Salvador.

A propósito do recorte do “Diário de Notícias” de 14/04/1959 volto a encarecer a urgência que requer o tombamento em conjunto de certos trechos da nossa capital, o Pelourinho, em particular. (...) Também, no Pelourinho estão nos ameaçando com reformas de fachadas que porão tudo a perder. Rogo-lhe, pois, o seu mais vivo e constante empenho para que não demore a medida salvadora69.

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Esta informação foi extraída de um artigo de José Valladares, publicado no jornal A Tarde, de 13 de janeiro de 1959. O autor foi um intelectual baiano, especialista na área de museologia e artes plásticas, sendo um dos principais responsáveis pela divulgação das expressões culturais da Bahia. O intelectual foi um colaborador assíduo do SPHAN e atuou como um dos principais interlocutores da instituição em prol da defesa e preservação do patrimônio material do estado e da cidade de Salvador. Maiores informações sobre a influência de José Valladares no SPHAN podem ser consultadas na pesquisa de SOUZA & CERAVOLO (2015).

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Ofício escrito por Godofredo Filho endereçado a Rodrigo Melo Franco de Andrade em 16 de abril de 1959. Arquivo Central do IPHAN/ Seção Rio de Janeiro Processo n. 464-T - 52, volume I. Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Salvador.

Cabe referendar que as discussões e ações sobre o tombamento de centros históricos eram bastante inovadoras para a época. No movimento preservacionista internacional, este tema passa a ser alvo de análise, principalmente, a partir de 1964, com a publicação da Carta de Veneza sobre a conservação e restauração de monumentos e sítios. Entre os seus principais postulados, destaca-se a necessidade de compreender e preservar os monumentos arquitetônicos em relação ao sítio urbano em que se encontram, possibilitando a compreensão dos acontecimentos históricos que ali ocorreram.

Enquadram-se entre os propósitos da Carta de Veneza assegurar a proteção de sítios urbanos em cidades em que o crescimento urbano acelerado e, em muitos casos, desordenado, colocaria em risco a manutenção dos conjuntos urbanos de valor histórico e cultural. Este processo já se consubstanciava nas cidades de grande e médio porte nos anos cinquenta. Segundo Telles (1984, p. 31), até as próprias cidades coloniais mineiras, como Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, entre outras, já estavam sofrendo transformações em sua malha urbana decorrentes do crescimento demográfico, da intensificação da atividade industrial e turística e da expansão da rede de rodovias, implicando em efeitos danosos ao seu patrimônio edificado tombado. Se este efeito já se fazia sentir em tais cidades, nos grandes centros urbanos como Salvador, o impacto decorrente desta série de fatores em seu conjunto arquitetônico era gradativamente mais intenso, mesmo porque apenas alguns monumentos isolados e não o conjunto arquitetônico de suas áreas centrais tinham sido alvos de tombamento. É neste contexto em que o crescimento urbano acelerado colocava em risco a preservação patrimonial que Godofredo Filho, junto com sua equipe técnica, procurou agilizar a análise sobre o processo de tombamento de parte do Centro Histórico de Salvador e de outras áreas de relevância arquitetônica e histórica da cidade que passavam por uma intensa precarização do seu quadro físico e social.

Inúmeras são as representações desta parte da cidade que retratam justamente este período dos anos 1940 e 150, época em que se intensifica o processo de degradação e a descaracterização do seu conjunto arquitetônico e das suas edificações mais imponentes e acentua-se a precariedade com que vivem seus habitantes. No campo da literatura, as obras de Jorge Amado se tornam referências importantes para a compreensão das referências culturais, dos modos de vida e da situação social dos habitantes do centro histórico de Salvador, como retratado no excerto a seguir extraído da obra “Bahia de Todos os Santos”, publicada em 1944 e atualizada pelo autor em 1960. Neste guia literário de Salvador, Jorge Amado descreve a triste situação social do Pelourinho na época:

No Pelourinho mora gente de toda espécie e de todas as raças. É impossível calcular o número incrível de pessoas que cada um destes abjetos cortiços aloja nos quartos subdivididos, nas salas transformadas em moradias de duas e três famílias. (...) A higiene é uma palavra desconhecida. (...) Uma única latrina em cada andar serve a oitenta ou cem pessoas, homens e mulheres, e como não houve ainda alguma descarga que funcionasse, o odor insuportável domina os prédios. Insuportável? Não há outro jeito senão suportá-los e com êle se acostumar já que é característico de todos esses míseros cortiços com a fachada de velhos palácios. (...) Mendigos pelas portas à noite. Baianas que vendem mingau. Pelas escadas namorados que bolinam ante os olhares cínicos dos vizinhos. Quem vai se importar? Aqui é o fim do mundo. Em pleno centro da cidade, em pleno coração da Bahia. (AMADO, 1944, p. 104)

Neste excerto, o autor deixa claro que o Pelourinho, considerado em tempos de outrora como uma das áreas mais nobres de Salvador, havia se transformado em um grande cortiço densamente povoado e insalubre, habitando, predominantemente, por uma população de baixa renda que transformou o perfil socioeconômico daquela localidade, cada vez mais incompatível com a manutenção da integridade física do conjunto arquitetônico localizado no “coração da Bahia”, como refere Jorge Amado. O escritor também deixa claro o desinteresse na reversão deste quadro físico e social do Pelourinho quando se refere a esta parcela do centro histórico como “fim do mundo”, pois seu estado de degradação era tão grande que passou a ser cada vez menos frequentado pelos soteropolitanos e desamparado pelas políticas públicas, agravando ainda mais o seu quadro físico e social. A citação a seguir enfatiza ainda mais o estado de miserabilidade em que viviam seus habitantes em uma das áreas mais nobres da “Cidade da Bahia” nos tempos da colônia e do império.

(...) Essa ladeira está cheia de dor, de um sofrimento que se prolonga até hoje nos modernos escravos dos cortiços. Em cada sobrado uma multidão. Subalimentada, doente, penetrando pelo vão escuro da porta pesada para onde correm os ratos. Para as moradias mais infames do mundo. Assim é a Ladeira do Pelourinho (JORGE AMADO, 1944, p. 104).

Ao comparar os moradores do Pelourinho a “escravos modernos”, Jorge Amado deixa explícita a gravidade da situação social daquele bairro que já foi um dos principais focos de aglomeração dos escravos urbanos. Os casarões insalubres e a aglomeração de pessoas que lá viviam dificultava aos seus habitantes sobreviverem em condições mínimas de dignidade. Os imóveis se degradavam junto com aqueles que neles viviam.

Milton Santos, em sua tese de doutorado sobre o centro da cidade de Salvador, publicada em 1959, também realiza uma análise da organização socioespacial do centro e

retrata o processo de transformação do Pelourinho em um amontoado de cortiços, como retrata o excerto a seguir:

Os cortiços são o resultado da degradação progressiva desses velhos casarões e sobrados, construídos no centro da cidade quando essa era parte residencial rica. Como essa forma de ocupação dos imóveis é, de maneira quase geral, de rentabilidade fraca para os proprietários, estes não veem qualquer vantagem em cuidá-los. Não realizam trabalhos de reconstrução, nem mesmo de reparação, e as casas se tornam cada vez mais sórdidas (SANTOS, 2008, p. 162-163)

Tanto partes da obra literária de Jorge Amado quanto da análise científica de Milton Santos retratam uma imagem negativa do Pelourinho, porém, real, que ocultava parte de sua riqueza histórica e cultural. Foram estas as representações de um Pelourinho esquecido e malcuidado, na época, hegemônicas, que Godofredo Filho procurou apagar ao defender junto ao IPHAN o tombamento do centro histórico de Salvador.

Em um ofício enviado por Godofredo Filho ao diretor do IPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade, encontra-se a seguinte justificativa para o reconhecimento do valor patrimonial do seu conjunto arquitetônico em nível federal70:

Por sua vinculação a fatos históricos memoráveis, relativos à vida da cidade e do próprio país, de que ela foi, por mais de dois séculos a capital de incontrastável prestígio e, sobretudo pelo excepcional valor arquitetônico e paisagístico com que se integram no aglomerado urbano71 (...)

No texto apresentado, observa-se um maior destaque ao valor histórico da cidade, cuja área central é um retrato mais representativo da relevância de Salvador enquanto capital