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1.5 IDENTIFICAÇÃO E QUANTIFICAÇÃO DE ALGUNS INTERESSES PROTEGIDOS

1.5.8 IMAGEM

Cada ser humano tem uma aparência física, de voz e de trejeitos distinta da dos restantes. Ao contrário do que sucede com outros animais, onde se torna possível encontrar indivíduos idênticos, entre os seres humanos prevalece sempre a variabilidade de genes e a unicidade, de modo que a imagem materializada de uma pessoa é um bem personalíssimo fortemente objetivado pois o destino que se dê à imagem é, de certo modo, um tratamento dado à própria pessoa que acaba surgindo no palco dos bens de personalidade (CORDEIRO, 2004, p. 193).

Todas as pessoas possuem o espaço protegido para dispor de sua aparência física, social ou sonora (voz) autorizando a captura, reprodução ou difusão dos mesmos. O direito à compensação por danos morais pelo uso indevido da imagem está estampado no art. 5º, X, da CF/88: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação", bem jurídico este também esculpido nos artigos 20 e 21 do CC/2002. Ambos os diplomas visam a proteção da forma plástica da pessoa e de todos os seus “respectivos componentes identificadores (rosto, olhos, perfil, busto, voz, características fisionômicas, etc.) que a individualizam na coletividade” (CHAVES; BRAGA NETTO; ROSENVALD, 2015, p. 398).

A imagem é um bem jurídico que diz respeito àquilo que nos diferencia e nos particulariza em relação aos outros, pois “a imagem está sempre vinculada a qualquer tipo de representação gráfica da figura humana, em que a própria pessoa se reconhece e é reconhecida por outras pessoas” (SANTOS, 2015, p. 382). A esse respeito, alude-se a uma tridimensionalidade do direito de imagem, formado por imagem-retrato, imagem-atributo e imagem-voz (CHAVES, BRAGA NETTO, ROSENVALD, 2015, p. 398), no sentido de que estão sob o campo de proteção da imagem as características fisionômicas atreladas à pessoa – como o perfil, o rosto e o corpo – as características pessoais que estão vinculadas à pessoa - como o jeito de dançar, de falar, de utilizar jargões, hábitos – assim como o próprio timbre sonoro peculiar de cada ser humano sob à luz do sol.

Salienta-se que a violação do bem jurídico da imagem não necessita da utilização da imagem do ofendido para ser consumada, bastando que se utilize uma representação gráfica, como o desenho de alguém muito parecido com o Zeca Pagodinho com uma cerveja na mão a fim de

vender mais produtos, ou, como a utilização de um artista muito parecido com o cantor Roberto Carlos, o jogador Pelé ou o apresentador Faustão. Nestes casos, embora não se esteja diante da utilização de uma imagem fidedigna à pessoa, sabe-se que o ofensor está obtendo proveito indevido das características que distinguem aquela pessoa famosa. Destarte, “o retratado pode até ser uma pessoa desconhecida do público, em geral. Mas, se houver o reconhecimento no meio social em que vive, arranhada estará a sua imagem” (SANTOS, 2015, p. 382).

Nesse ponto, vale sublinhar que a violação do direito de imagem gera dano moral indenizável independentemente de ter como consequência o gravame à honra ou à intimidade, gozando o interesse da imagem de autonomia: “a imagem obtida sem consentimento do retratado, mesmo que não atente contra a honra e a intimidade, é passível de proteção” (SANTOS, 2015, p. 385). No mesmo sentido: “pode configurar-se um fato antijurídico, ainda que não exista atentado à honra, ou à identidade dinâmica, ou à privacidade, mas em forma autônoma não autorizada da imagem” (LORENZETTI; FRADERA, 1998, p. 488).

Como vive-se sob a égide de um sistema jurídico que balanceia interesses contrapostos, nada mais salutar do que o direito à integridade da imagem sofrer limitações. Assim é que “es libre la publicación del retrato cuando se relacione con fines científicos, didácticos y em general culturales, o con hechos o acontecimientos de interés público o que se hubieran desarrollado en público” (PIZARRO, 1996, p. 505). Na mesma linha, o consentimento tácito ou expresso também afasta qualquer violação do direito de imagem.

Uma limitação clara também se manifesta quando arrima a difusão da imagem o interesse didático, científico ou público relativo à informação de artista, esportista, político ou pessoa famosa de relevância para toda a sociedade. Também existem limitações quando se está em espaço ou evento público.

Questão difícil se referiu à possibilidade de escritor desenvolver obra sobre a vida de alguém sem a autorização do mesmo, a chamada biografia não autorizada. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4815, de Relatoria da Ministra Carmem Lúcia, com acórdão publicado dia 01/02/2016, privilegiou a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença de pessoa biografada, asseverando que não é proibindo, recolhendo obras ou impedindo sua circulação, calando-se a palavra e amordaçando a história que se consegue cumprir a

Constituição. Destacou, é claro, que os direitos do biografado não ficarão desprotegidos: qualquer sanção pelo uso abusivo da liberdade de expressão deverá dar preferência aos mecanismos de reparação a posteriori, como a retificação, o direito de resposta, a indenização e até mesmo, em último caso, a responsabilização penal.

Na referida ação, ajuizada pela Associação Nacional dos Editores de Livros, se buscava a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto dos artigos 20 e 21 do CC/2002, os quais, em uma leitura literal sem consonância com demais valores constitucionais expressam que a utilização da imagem de outrem necessita de autorização, sendo bem jurídico inviolável. Denotam, assim, o privilégio do direito do biografado em detrimento do direito do escritor de publicar obras sobre a vida daquele, conforme abaixo transcrito:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

O advogado que subscreveu a petição inicial da referida ação27 foi Gustavo Binenbojm, o

qual argumentou que as pessoas cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita, inferindo que exigir a prévia autorização do biografado importa consagrar uma verdadeira censura privada à liberdade de expressão. Continuou afirmando que a extensão dos artigos 20 e 21 do Código Civil, ao não preverem qualquer exceção que contemple as obras biográficas, acabam por violar as liberdades de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (CF, art. 5º, IV e IX), além do direito difuso da cidadania à informação (art. 5º, XIV), requerendo ao final a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, mediante interpretação conforme a Constituição, fosse afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do

27 Ver petição inicial em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/paginador.pdf. Acesso em:

consentimento da pessoa biografada para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais (BINENBOJM, 2012, p. 1/17).

Logo, não configuram dano moral a veiculação de imagem nos seguintes casos: a) desportista que acaba de vencer um campeonato; b) político que realiza discurso; c) discussões em uma praia, na rua ou no congresso nacional; d) retratar vida de pessoa pública em livro ou filme; e) artista em performance no show; f) torcedor no meio da arquibancada. É claro que em todos esses casos não pode haver abusos a ponto de explorar a imagem comercialmente, veiculá-la de forma descontextualizada e/ou enfatizar situações vexatórias e humilhantes, posto que tais circunstâncias afrontam claramente a proteção constitucional da pessoa humana.

A mensuração do quantum deve relevar se houve gravame à honra, a ponto de prejudicar reputação que a pessoa tem perante a sociedade em nível profano ou profissional; se violou a intimidade ou privacidade, adentrando em esfera que o ofendido dedicou para o seu espaço particular; a duração e intensidade da utilização da imagem, que vai desde uma simples publicação em jornal, até constantes usos para fins lucrativos; o grau de prestígio que a vítima goza no meio em que a imagem foi difundida, de modo que utilizar a imagem do Ronaldinho Gaúcho para incrementar a venda de material esportivo é mais danoso do que utilizar a imagem de um estudante para o mesmo fim.

Como exemplos: a) reprodução da imagem original ou de similar de modo a se apropriar daquela para fins artísticos, comerciais ou fotográficos sem autorização da vítima; b) uso de imagem verdadeira com autorização, mas deturpando ou modificando a imagem do ofendido; c) uso da imagem para além do permitido em contrato; d) pintura representando o rosto de alguém em estampa de blusa sem autorização; e) utilização da voz da pessoa em comerciais ou filmes; f) abordar em filme, programa de televisão ou comercial trejeitos que remetem a alguém famoso, como o jeito de falar, se vestir, se portar; g) construção de busto de alguém para enfeitar uma loja, sem a devida autorização; h) divulgar fotografia de pessoa famosa em local público que mostre os seios ou outras partes íntimas28; i) divulgação de imagem de menor envolvido em ato infracional,

28 Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “No tocante às pessoas notórias, apesar de o grau de resguardo e

de tutela da imagem não ter a mesma extensão daquela conferida aos particulares, já que comprometidos com a publicidade, restará configurado o abuso do direito de uso da imagem quando se constatar a vulneração da intimidade, da vida privada ou de qualquer contexto minimamente tolerável” (julgamento do Recurso Especial 1594865/RJ, de Relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, com acórdão publicado dia 18/08/2017).

mesmo que com provas cabais29; j) a simples reprodução da pessoa, pela pintura, pela fotografia

ou pelo filme, é suficiente para configurar a violação do direito à imagem (CORDEIRO, 2004, p. 193).