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1.5 IDENTIFICAÇÃO E QUANTIFICAÇÃO DE ALGUNS INTERESSES PROTEGIDOS

1.5.5 INTEGRIDADE PSÍQUICA

Como corolário do direito à uma vida plena (art. 5º, caput, CF/88) e à saúde (art. 196, CF/88) vem o direito à inviolabilidade da integridade psíquica do ser humano, compreendido como o direito de não sofrer, por ato de outrem, diminuição de seu bem-estar e equilíbrio mental, manifestado por uma alteração anormal dos padrões de humor, estresse, aborrecimentos, enfurecimentos, descontentamentos, frustrações, irritações, agonias, sossego e paz por ato de outrem e não por infortúnios e contingências da vida, anormalidade essa que transcenda a proporção dos dissabores do cotidiano. Ademais, uma visão integral do ser humano implica necessariamente em compreender que não basta a proteção da integridade física, mas também a da integridade da mente, como explica Pietro Perlingieri:

A saúde refere-se também àquela psíquica, já que a pessoa é uma indissolúvel unidade psicofísica (...). Seja o perfil físico, seja aquele psíquico, ambos constituem componentes indivisíveis da estrutura humana. A tutela de um desses perfis traduz-se naquela da pessoa em seu todo (1997, p. 159).

Cabe destacar que embora não exista na CF/88 expressamente a palavra integridade psíquica, é possível vislumbrar tal pretensão não apenas do direito à vida e à saúde, mas de outras leis que protegem a higidez e incolumidade mental da pessoa humana, como por exemplo: art. 128, II, do decreto-lei n. 2848/1940 (Código Penal): não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante; art. 7º, I, da lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha): são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; art. 7º, da lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente): a criança e o adolescente têm direito à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência; art. 71, da lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), na parte das infrações penais: utilizar, na cobrança de dívidas,

de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer; art. 2º, da lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso): o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

Logo, uma vez que por ato de outrem o ser humano seja colocado em situação que em condições normais da vida em sociedade acarretem um agigantamento desmedido de estresse, aborrecimentos, enfurecimentos, descontentamentos, frustrações, irritações, agonias e falta de paz, mesmo que inexista violação à integridade física, estar-se-á diante de um menoscabo de cunho psíquico, que ocasiona danos à pessoa humana passíveis de compensação por danos morais. Dentre elementos importantes para aferir o valor indenizatório destaca-se a intensidade e duração do dano; a magnitude do desequilíbrio psíquico no caso concreto; a afetação do dano na vida pessoal, profissional ou lúdica da vítima; se a vítima se encontrava em situação de vulnerabilidade; a perda de tempo que o dano ocasionou ao ofendido, dentre outros.

No que toca o aspecto técnico da psicologia ou psiquiatria para a apuração do dano psíquico, o presente trabalho entende ser prescindível na maior parte dos casos porque o dano psíquico não ocorre apenas quando o ato de alguém causa deterioração, debilidade ou distúrbio permanente, duradouro ou incurável nas condições mentais de outrem (no sentido patológico e que, portanto, necessita de tratamento e/ou medicamentos com auxílio de profissionais da saúde). Portanto, o dano psíquico para o direito tem harmonia com o conceito de Mariano Castex (1997, p. 65): “desenvolvimento psico-gênico ou psico-orgânico que, afetando suas esferas afetiva e/ou volitiva, limita sua capacidade de gozo individual, familiar, laboral social e ou recreativa”.

Por esse motivo, a maior parte dos danos psíquicos que geram direito à indenização por dano moral são danos que não deixam marcas permanentes e nem seriam evidenciados por laudos técnicos, sendo este um grande desafio para o juiz, que deve julgar demandas que envolvam danos psíquicos sem que o perito tivesse algo a acrescentar, isto é, sem sinais patológicos. Este desafio é atenuado pela existência da regra do art. 375 do CPC, segundo o qual “o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (...)”. Sendo

assim, a partir das vivências e observâncias da sociedade que o circunda, o magistrado pode se utilizar desse arcabouço prático para presumir situações danosas que quebram a incolumidade mental. É tautológico dizer, mas o magistrado, como alguém que constrói laços, desempenha outros papeis e vive na pele as arguras da vida dos demais membros da sociedade, tem condições de utilizar a técnica da presunção do dano (in re ipsa) através das suas experiências, presumindo que houve dano psíquico, ou seja, um desequilíbrio anormal do humor, aborrecimento, frustração, agonias, por exemplo, nas hipóteses a seguir descritas como exemplos de danos psíquicos.

Como exemplos de situações ensejadoras de dano moral por violação à integridade psíquica, segue: a) espera por mais de quatro horas em fila de banco; b) falha no serviço que demandou diversas idas do consumidor ao fornecedor para resolver o vício; c) dezenas de ligações para obter cancelamento de serviço ou informação; d) festas corriqueiras com música alta da casa do vizinho17; e) constantes ameaças de colega de trabalho, empregador ou namorado (a); f) ofensas

cotidianas perpetradas pelos colegas de turma do colégio ou da faculdade em face de um dos alunos; g) atraso de voo sem a consequente assistência da companhia aérea em fornecer hotel e transporte a uma família; h) extravio de bagagem em aeroporto; i) recebimento de inúmeras mensagens de texto pela operadora de telefonia18; j) recebimento de ligações reiteradas realizadas

por bando no intuito de cobrar dívidas inexistentes19; k) atraso demasiado em voo, de

aproximadamente 30 horas20; l) a neurose ou medo ao sinistro, a demência pós-traumática, o stress

ou esgotamento do trabalho (LORENZETTI; FRADERA, 1998, p. 456).

Nesta lista acima, dois exemplos merecem relevo. O primeiro diz respeito a constrangimentos vivenciados pelo empregado no bojo de uma relação de emprego, como ser objeto de agressões verbais ou físicas pelo empregador, de humilhações e xingamentos, de exigências de metas inalcançáveis, de constantes ameaças, de proibições ilegais como de ir ao banheiro, tomar água, etc. Nestes casos, muitos chamam esse dano de assédio moral, contudo, trata- se na verdade de dano moral por ofensa a diversos bens jurídicos, que podem variar entre honra,

17 Nesse sentido decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação n. 992050163832, de Relatoria

do Desembargador Emanuel Oliveira, com acórdão publicado dia 08/04/2010.

18 Assim já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação n. 71007031032, de

Relatoria da Desembargadora Glaucia Dipp Dreher, com acórdão publicado dia 15/09/2017.

19 Nessa linha decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação n. 71007069073, de

Relatoria do Desembargador Roberto Carvalho Fraga, com acórdão publicado dia 08/09/2017.

20 Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo no Recurso

imagem, integridade física e psíquica. O Tribunal Superior do Trabalho (de agora em diante TST), no julgamento do Agravo de Instrumento em Recurso de Revista n. 1.712/2005, de Relatoria do Ministro Renato de Lacerda Paiva, com acórdão publicado dia 10/10/2007, reconheceu que o assédio moral é um misto de ofensa a diversos bens jurídicos, fincando algumas características principais:

a) a intensidade da violência psicológica. É necessário que ela seja grave na concepção objetiva de uma pessoa normal;

b) o prolongamento no tempo, pois episódio esporádico não o caracteriza, mister o caráter permanente dos atos capazes de produzir o objetivo;

c) outro elemento do assédio moral é que tenha por fim ocasionar um dano para marginalizá-lo no seu ambiente de trabalho;

d) que se produzam efetivamente os danos psíquicos, permanente ou transitório.

O segundo exemplo que merece uma atenção maior se refere a perda de tempo em longas filas em bancos, aeroportos ou em atendimento telefônico, uma vez que parte da doutrina21 tem

discutido a existência de dano moral indenizável pela simples usurpação do tempo útil de forma indevida por outra pessoa, bem jurídico esse que pode decorrer tanto do princípio maior da integridade psíquica, como do princípio da liberdade, como será visto em tópico próprio.

21 Para aprofundar o tema, ver: DESSAUNE, Marcos. Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo

desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011; GUGLINSKI, Vitor Vilela. O dano temporal e sua reparabilidade: aspectos doutrinários e visão dos tribunais. Revista de Direito do Consumidor, v. 24, n. 99, p. 125-156, maio/jun. 2015.