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1.5 IDENTIFICAÇÃO E QUANTIFICAÇÃO DE ALGUNS INTERESSES PROTEGIDOS

1.5.4 INTEGRIDADE FÍSICA

O interesse de ter a saúde (normal funcionamento do corpo) ou integridade corporal (composição anatômica do corpo) invioláveis por ato de outrem (PIZARRO, 1996, p. 490), normalmente chamado de dano estético pelos tribunais brasileiros, se caracteriza como alteração ou diminuição da integridade física da pessoa de forma permanente ou duradoura (BITTAR, 2015, p. 271), possuindo como sustentáculo o art. 5º, caput (direito à vida) e o art. 196 (direito à saúde), ambos da CF/88.

Cabe salientar que o dano moral decorrente da violação do interesse relacionado a saúde ou integridade corporal pode se manifestar tanto quando ocorre transmissão de doenças e negligência médica que agrava o estado do paciente quanto quando a vítima perde alguma parte interna ou externa de seu corpo por ocasião de acidente, agressões ou falha de profissionais da saúde. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o conceito social e jurídico do direito à saúde é “o completo bem-estar psíquico, mental e social (...) problematizando tal conceito indaga-se ‘qual foi a última vez que você sentiu-se assim?’, assinalando que esse completo bem-estar é difícil em nossa forma de vida” (LORENZETTI; FRADERA, 1998, p. 474). Por esse motivo, o dano físico faz referência ao que era habitual na pessoa prejudicada, e que provavelmente o seguirá sendo no futuro (LORENZETTI; FRADERA, 1998, p. 475).

A quantificação do dano moral para estes casos deve levar em conta a duração ou intensidade da dor/sofrimento; a extensão da sequela ou da piora da saúde; o enfeamento externo; a inviabilidade de prosseguir com determinada profissão; o prejuízo de atividades sexuais ou

atividades cotidianas; necessidade de cirurgias ou de acompanhamento profissional e medicamentos após a lesão; a extensão temporal da lesão ou do estado ruim de saúde; a perda do prazer de realizar determinadas atividades, “su implicancia en la vida de relación, y en el proyecto de vida del prejudicado, la reducción de las expectativas de vida que genera, la forma y modo en que se produjo el hecho lesivo” (PIZARRO, 1996, p. 492).

É salutar conceder uma atenção maior quanto ao parâmetro da perda do prazer e da relação, ambos de um certo modo entrelaçados, pois muitas vezes o vilipendio da saúde ou da anatomia do corpo ocasiona o desestímulo de a vítima realizar atividades que lhe proporcionavam satisfação/prazer/descontração, como por exemplo estar impossibilitado de tocar um instrumento, “praticar esportes, não poder dançar, não poder se locomover e realizar uma viagem de passeio, perda do olfato/gosto/visão que retiram o prazer de sentir o cheiro agradável de certos perfumes e da comida” (SANTOS, 2015, p. 69).

Como se não bastasse, danos morais de tal natureza também podem afetar os laços sociais construídos pela vítima. Portanto, sabe-se que para que as pessoas alcancem seus propósitos, é imprescindível que construam pontes de relacionamentos onde possa trocar experiências e conhecimento, relações estas que vão desde a família e a vizinhança até o clube, o trabalho e a roda de bar. Estas relações são constituídas ao longo da vida tendo como razões o amor, a política, religião, trabalho, estudo, arte, dentre outras. Como o ser humano é naturalmente inclinado à convivência e à sociabilidade, essa perda de relação com os outros fulmina uma das grandes dimensões de realização do ser humano, devendo ser devidamente considerada para fins de quantificação do dano moral, não apenas em face da violação do interesse à saúde/anatomia, mas também no caso de ofensa à honra, imagem ou qualquer outro bem jurídico que afete os laços já construídos, em construção ou potencialmente edificados no futuro, como destaca Antônio Jeová Santos, dando como exemplo a perda de relação por ofensa a honra de alguém:

Quantas pessoas já não se viram impedidas de sair de casa, de manter sua regular e normal atividade cotidiana, porque o jornal e a televisão emitiram notícia de que aquela pessoa é acusada de algum crime hediondo ou grave. Vizinhos não mais cumprimentam a vítima que, envergonhada, deixa de frequentar os lugares em que ia antes da infundada notícia. Nem sequer pode ir à escola e tem de gozar férias do trabalho, obrigatórias, para evitar o mal-estar que acompanha os colegas. É o puro e simples dano à vida de relação. Deve ser computada e reparada, com dinheiro, toda lesão sofrida e que atinja também as faculdades culturais, desportivas, artísticas, religiosas, comunitárias, sexuais, etc. (SANTOS, 2015, p. 70/73).

Além da perda de relação e do prazer de realizar determinadas atividades, o dano estético também pode afetar um projeto de vida, que tem seu sustentáculo maior no próprio interesse jurídico da liberdade ou vida, posto que todos os seres humanos possuem o direito à inviolabilidade injustificada dos caminhos, sonhos e planejamentos traçados. Assim, um menoscabo anatômico ou relacionado à saúde pode gerar alteração injusta do curso da vida de alguém, como no caso de um estudante de direito que faz parte de grupos de pesquisa de direito criminal e sonha em ser um grande advogado de júri, mas vem a perder a voz por ato injusto de outrem, o que fulmina a realização de uma vocação e aspiração. Desta feita, levando o dano moral à sério, para fins de quantificação não só a perda da voz (poderia ser de um membro, da audição, do olfato, etc.) deve ser levada em conta, como também a dor, os procedimentos cirúrgicos, a vergonha em se portar em público, os medicamentos e acompanhamentos médicos que agora se impõem, a perda de relação, do prazer de realizar atividades e, finalmente, o projeto de vida, a mudança de curso abrupta de uma vida com um plano racional esboçado.

Em que pese a súmula 387 do Superior Tribunal de Justiça estabelecer que são cumuláveis o dano moral e o dano estético, com todo respeito, este autor discorda de tal orientação, visto que o interesse na integridade física externa ou interna, ligada à anatomia ou à saúde, é apenas mais um dos inúmeros interesses existenciais juridicamente protegidos que possibilitam o recebimento de indenização de cunho compensatório. Assim, tendo em vista que o dano estético possui outros desdobramentos danosos, para este trabalho, o dano estético pode ser compensado sob a alcunha de moral por que é uma espécie do gênero dano moral, como explica Antônio Jeová Santos:

Em mais de 25 anos de exercício da magistratura, o autor deste trabalho jamais conseguiu estremar as causas do dano moral e do estético, nem viu em algum caso sob julgamento ser possível a apuração dessas causas de forma autônoma. Pense-se em caso grave, qual seja, a amputação de ambas as pernas. Para efeitos de indenização, o dano é moral e material tão somente. Basta que o juiz aumente o valor da indenização, dada a gravidade da lesão, e fixe o montante indenizatório em valor alto, a título de dano moral, para a questão ser solucionada, sem que seja necessária a indesejada repetição (2015, p. 363).

Se, por exemplo, a vítima de um acidente de trânsito perde sua perna direita, deve ser relevado para fins de quantificação do dano moral a privação do membro em si (de parte do corpo); a vergonha que afligirá a vítima em suas relações sociais; a dor e o sofrimento que o ofendido

sentiu no momento do acidente e posteriormente; as complicações de medicamentos e cirurgias advindas do evento danos, dentre outros. Ou seja, a questão puramente estética/anatômica/saúde, em si mesma, é talvez o mais importante parâmetro para quantificar a indenização nestes casos, mas que se soma a outros fatores para uma quantificação justa. Além do mais, do ponto de vista teórico nenhuma diferença conceitual existe entre os outros interesses extrapatrimoniais e o direito à integridade física. Todos, neste ínterim, são bens existenciais que uma vez violados fazem surgir o direito de indenização por dano moral.

Logo, são exemplos de violações a esse interesse: a) lesões físicas experimentadas por empregados no ambiente de trabalho, como perda de dedos, audição, olfato ou visão; b) perda de membro ou fixação de cicatriz em acidente de consumo, causada por explosões ou outros acidentes de consumo; c) acidente de trânsito que provoque tetraplegia; d) briga física que promova perfuração de órgãos; e) perda de baço ou rim por erro médico em cirurgia; f) remédio errado ou em dosagem errada que piorou situação do paciente; g) agressões físicas sofridas por uma mulher por pessoa desconhecida ou por namorado/companheiro/cônjuge; h) preso em situação degradante16; i) excesso de ruído, trepidação, mal cheiro e degradação do meio ambiente

(CORDEIRO, 2004, p. 134).

16 No julgamento do Rext n. 580.252/MS, com acordão publicado dia 08/09/2017, de Relatoria do Ministro Alexandre

de Moraes, STF fixou a tese de que é cabível indenização por dano moral a ser paga pelo Estado quando este não cumpre condições legais do encarceramento (prisão em situação degradante); por outro lado, reacendeu a preocupação dos juristas da responsabilidade civil sobre se a capacidade econômica do ofensor dever ser levada em conta na quantificação da indenização, na medida em que diversos votos justificaram a indenização no valor de R$ 2.000,00 sob o argumento de que o Estado não teria condições de arcar com patamar maior considerando os milhares de presos em situação degradante, considerando que a população carcerária brasileira é a 3ª maior do mundo, com 726 mil pessoas. Em outras palavras, é preciso refletir se o foco da indenização compensatória é apenas a vítima e a magnitude de seu dano ou o ofensor também deve ter sua capacidade econômica sopesada.