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1.5 IDENTIFICAÇÃO E QUANTIFICAÇÃO DE ALGUNS INTERESSES PROTEGIDOS

1.5.13 LIBERDADE

A proteção do bem jurídico liberdade se encontra espalhada por todo o texto constitucional (art. 5, caput, incisos VI, IX e XV), estando protegida expressamente a liberdade artística, científica, intelectual, de comunicação, de locomoção, de consciência e crença, de modo qualquer violação destas facetas da liberdade poderá ensejar dano moral indenizável, a depender do caso, porque quando a liberdade é afetada a dignidade também é fulminada na medida em a liberdade está ligada ao “direito que todo sujeito tem de regular juridicamente os seus interesses, de poder definir o que reputa melhor ou mais adequado para a sua existência; o direito de regular a própria existência, de construir o próprio caminho e de fazer escolhas” (DIDIER JR, 2015, p. 132).

Cabe salientar que Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk desenvolveu tese de doutorado problematizando a liberdade no campo do direito privado, apresentando múltiplas classificações da liberdade (negativa/positiva; individual/coletiva; como insubordinação; formal/substancial) e criticando a possibilidade de “pretensões definidoras de conceitos unitários, excludentes de outros modos de se compreender a liberdade” (2009, p. 12). Por exemplo, mostra que a ênfase do conceito formal de liberdade pode ensejar eliminação de liberdades substanciais - já que pessoas sem acesso a bens básicos não poderão traçar planos de vida mais amplos - assim como a prevalência apriorística de uma liberdade positiva pode conduzir a uma superlativização do individualismo, criando barreiras na regulação de relações – tendo em vista que se o ser humano pode fazer o que bem entende, fica difícil regular limites dessa atuação no tumulto na vida de outrem (2009, p. 12).

Dentre os diversos conceitos de liberdade percebe-se que eles se chocam e colidem, pois de um lado há os libertários como Robert Nozick, que que defendem uma liberdade formal e negativa, no sentido de poder fazer tudo o que não for proibido e que os limites devem ser mínimos, além do que não pode o governo realizar políticas de favorecimento a nenhum grupo social (RUZYK, 2009, p. 15/16). De outro lado, há autores liberais igualitários, que como Amarthya Sen, que defendem que a liberdade deve ser vista como capacidade concreta de realizar aquilo que cada pessoa valoriza, na esteira de uma liberdade positiva e substancial/efetiva, e não apenas em uma perspectiva formal e negativa, posto que a pessoa humana deve ser capaz de autodeterminar-se e, para isso, necessita ter acesso a um conjunto de bens (RUZYK, 2009, p. 16).

Resumidamente, com base na obra de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, serão explicados os principais conceitos que circundam a liberdade. Em primeiro lugar, a liberdade negativa é a ausência de coerção do Estado e agentes privados na vida da pessoa, enquanto que a liberdade positiva é a “liberdade vivida” em dados lugares da intersubjetividade privada, como se percebe nas relações de família, tratando-se de proteger a possibilidade de o indivíduo traçar escolhas e persegui-las racionalmente (2009, p. 25). Nesse desiretado, vislumbra-se o alcance da proteção da liberdade negativa no campo do dano moral quando ocorre o cárcere privado em restaurantes, hotéis ou até mesmo uma prisão ilegal, posto se tratar de uma interferência ilegal na liberdade de locomoção, ao passo que se verifica a violação da liberdade positiva em longas esperas em filas ou em aeroportos, o que acarreta a frustração de caminhos e planos traçados para aquele dia, o que a longo prazo poder-se-ia estender para a perda de ente querido ou violação da integridade física que afete a profissão, a prática de esportes, de lazer e contemplação.

No que tange a classificação liberdade individual e coletiva, assevera-se que a liberdade não pode ser vista apenas em uma perspectiva centrada no indivíduo, pois a sociedade em redes é “um conceito instrumental à compreensão de que, na realidade, nem as instituições se formam a partir da vontade individual soberana, nem, tampouco, são entes que organicamente absorvem os indivíduos, movendo-se rumo a um destino inexorável” (2009, p. 48), motivo pelo qual a pessoa deve ser compreendida em suas múltiplas e complexas relações com os demais, ou seja, “o indivíduo se autoconstitui socialmente no âmbito dessas condições empíricas, pleno de contradições, permeado pela necessidade, mas no quais há o espaço para o exercício de liberdade” (2009, p. 48).

Assim, partindo do pressuposto que a “liberdade do indivíduo abstrato isolado da concretude de seus vínculos sociais” (2009, p. 50), surge a possibilidade de ligarmos o tema da liberdade a nível coletivo e de laços com outros com o dano moral, especialmente no tocante à perda de ente querido e abandono afetivo e, em critério de quantificação como a perda de relações e do prazer de realizar atividades, de modo que nesses casos se percebe que a pessoa tem diminuído o seu campo de relações com o mundo e com os outros. Em sendo a razão disso um ato ilícito, é possível surgir o dever de indenizar.

O autor também aprofunda o conceito de liberdade como insubordinação de Michael Foucault, que se caracteriza como a possibilidade de resistir às estruturas de poder, seja do Estado

ou dos agentes privados, não vislumbrando a liberdade apenas como ausência de coerção em seu sentido negativo. Portanto, para alguém ser livre, não basta que não interfiram em sua liberdade, como também é necessário que possa se insurgir diante das estruturas de poder, rompendo com os esquemas de adestramento social propagados pelo poder disciplinar – poder sobre o corpo - e pelo biopoder – poder sobre a sociedade (2009, p. 52/57). Nesse viés, é possível refletir sobre a incidência desse conceito de liberdade no âmbito do dano moral para rechaçar demandas indenizatórias em face de pessoas que estavam se negando ao exercício dos padrões de comportamento impostos pela rede de relações de poder, especialmente no caso de pessoas que fazem parte de grupos vulneráveis como indígenas, negros, gays, mulheres e pessoas com necessidades especiais.

Por fim, existe a divisão entre liberdade formal e substancial. A formal traz a ideia de que “em tese, todos podem exercer sem sofrer coerção estatal, mas que não toma em consideração limites ou condicionamentos concretos, nem, tampouco, condições objetivas de exercício” (2009, p. 60); a substancial significa a “possibilidade efetiva de se fazer o que se valoriza” e implica em ter “as condições materiais e subjetivas de exercício da liberdade formal. Restrições materiais que eliminam concretamente as escolhas possíveis limitam liberdade efetiva” (2009, p. 60). Com base nessas linhas, informa-se que a responsabilidade civil não tem o condão de distribuir os bens na sociedade de forma justa, posto que lida com reparação e prevenção de danos injustos no bojo de relações entre pessoas, porém é possível conceber a liberdade substancial violada nos casos de dano moral envolvendo atraso de salários e de pensão alimentícia, assim como todos aqueles danos físicos ou psíquicos que fulminem as escolhas e planos dos indivíduos.

Todas essas concepções de liberdade (positiva, negativa, formal, substancial, como insubordinação, individual e coletiva) são importantes para o direito civil de acordo com a tese de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, que assevera que a liberdade individual é insuficiente ante a extensão do comando constitucional pertinente ao direito fundamental de liberdade, pois não se é livre sozinho, fortalecendo a solidariedade; a liberdade formal também não é suficiente porque é preciso da liberdade substancial de modo a assegurar um conjunto capacitatório apto a ensejar um nível de liberdade(s) compatível com uma vida digna; a liberdade negativa unicamente considerada também não é adequada para diversas searas do direito civil, como o contrato, que também é um instrumento para satisfação de necessidades e promoção de liberdade(s), e como a família,

importante para a liberdade positiva dos indivíduos na constituição de suas relações existenciais de afeto (2009, p. 376/380).

Ressalta-se que a liberdade individual representa uma pretensão legítima à livre vontade e determinação, sem limitação às escolhas nem ao projeto de vida e sofre limitações relacionadas aos bens jurídicos de outros cidadãos, como a intimidade, honra, privacidade, a propriedade privada, dentre outros. Por esse motivo, a liberdade não pode ser exercida a qualquer preço e é nesta limitação que se vê inúmeros humoristas, jornalistas, cantores e políticos serem condenados a pagar danos morais individuais ou coletivos por afrontarem outros bens jurídicos, como nos casos notórios envolvendo o humorista Rafinha Bastos e a cantora Vanessa Camargo e o relacionado ao Deputado Federal Jair Bolsonaro e as comunidades quilombolas e população negra.

Caso a liberdade em qualquer dimensão seja violada, é possível o reconhecimento do dano moral indenizável por afetar a faceta existencial do ser humano, devendo a fixação do valor indenizatório avaliar a intensidade, duração e magnitude do dano, dentre outros. Como exemplos de violações à liberdade: a) rigor excessivo no exercício da autoridade parental; b) a restrição à manifestação de pensamento e de crítica; c) a prisão ilegal35; d) o cárcere privado; e) fechamento

arbitrário de exposições de arte ou de shows artísticos; f) proibição de empregado ir ao banheiro36;

g) trancamento da empresa para que empregado saia apenas quando o gerente abrir o cadeado, obrigando o funcionário a ficar enclausurado no ambiente de trabalho37.

35 Assim já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 220982/RS, de

Relatoria do Ministro José Delgado, com acórdão publicado dia 03/04/2000, o qual asseverou: “o Estado está obrigado a indenizar o particular quando, por atuação de seus agentes, pratica contra o mesmo, prisão ilegal. Em caso de prisão indevida, o fundamento indenizatório da responsabilidade do Estado deve ser enfocado sobre o prisma de que a entidade estatal assume o dever de respeitar, integralmente, os direitos subjetivos constitucionais assegurados ao cidadão, especialmente, o de ir e vir. O Estado, ao prender indevidamente o indivíduo, atenta contra os direitos humanos e provoca dano moral ao paciente, com reflexos em suas atividades profissionais e sociais”.

36 Nessa linha, já se manifestou o Tribunal Superior do Trabalho, no julgamento do Agravo Interno em Recurso de

Revista n. 3429-68.2015.5.10.0802, de Relatoria do Ministro José Roberto Freire Pimenta, com acórdão publicado dia 27/10/2017.

37 Nesse sentido já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho, no julgamento do Recurso de Revista n.

9635720145120034, de Relatoria do Ministro Antônio José de Barros Levenhagen, com acórdão publicado dia 10/03/2017.