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Imagens de um destino pastoril: narrativas da fundação de uma nação piauiense

No documento D ifusão doA gronegócio (páginas 176-183)

Como se sabe, desde o período colonial, até meados do século XIX, a pecuária extensiva foi, no Piauí, não apenas a principal fonte geradora da riqueza de fazendeiros e comerciantes e dos recursos necessários à manutenção e funcionamento das instituições públicas ao longo do período, mas também a base de uma forma de pensar a sociedade. Verdadeiro topus fundante na memória sócio-histórica piauiense, mesmo quando se considera, segundo Santana (1964) e Medeiros (1996), que a pecuária piauiense não se constituiu como um ciclo, por falta de dinamismo, essa premissa se faz presente.

Com efeito, como afirmam esses autores, apesar de fazer parte de um circuito comercial e incorporar terras, aquela atividade econômica

5 Em Morais (2000b) ver discussão teórica sobre fronteira agrícola e frente de expansão.

Quanto à referência à abertura dessa fronteira no Piauí já nos anos 1970, trata-se da localmente chamada “era dos projeteiros” ou da fase de valorização futura como referida por Moraes e Messias (1987). Cf. Moraes (2000b) sobre “projeteiros” e “gaúchos” como categorias êmicas referentes a exploradores de fora que aportam na região.

6 Sobre a tensão subjacente ao conflito interpretativo e político próprio ao campo, no qual

se movimentam as questões do desenvolvimento, ver Ribeiro (1992), Shanin (1999) e Moraes (2000b).

caracterizou-se, no Piauí, pela ausência de competitividade. Mas é ela, sem dúvida, que dá origem à nação piauiense, como se depreende de relatos históriográficos, sociográficos e literários segundo os quais:

(...) o gado é a própria alma do Piauí (...). Em nenhum lugar jamais foi tão nítido o caráter de uma civilização; em nenhum lugar poderíamos encontrar mais definido aquilo que Capistrano de Abreu chamou de a “civilização” do couro (CASTELO BRANCO, 1970, p. 44-45).

Na verdade, Abreu (1982) se referiu a uma “época do couro”, não a uma civilização.

Sem dúvida, a pecuária piauiense ocupava posição especial na produção econômica colonial, entre 1670 e 1780, quando a economia açucareira entrava em colapso e a mineração passava da fase de apogeu para o começo do declínio. A fim de permanecer infensa às crises do mercado consumidor regional e não de exportação, a pecuária via-se na contingência de criar um esquema de auto-subsistência, afastando-se do quadro geral da economia colonial, agroexportadora (FURTADO, 1967; FUNDAÇÃO CEPRO, 1979; BRANDÃO, 1999).

No século XIX, até 1870, o comércio do gado foi responsável pela dinâmica da economia piauiense em virtude das condições relativamente prósperas da economia nacional em seus meados e do bom desempenho da economia regional nos mercados regional e externo. Com efeito, entre 1850 e 1890, a pecuária respondia por 50% das receitas auferidas pelo Tesouro Provincial7, mas perdia espaço, em termos nacionais, a partir de 1870, em razão da maior competitividade das demais províncias, pela não- diversificação e a extensividade do rebanho (QUEIROZ, 1993).

Nessa segunda metade do século XIX, o Piauí passa a atender à demanda internacional pelo algodão, estimulada pela Guerra de Secessão norte-americana, cujas exportações, entre 1850 e 1870, vinham em segundo lugar, depois do gado, na composição da receita geral da província. Com o final da guerra nos EUA, um dos principais fornecedores mundiais, a

produção piauiense voltou-se, na sua quase totalidade, para os mercados regional e nacional (SANTANA, 1964; FUNDAÇÃO CEPRO, 1979; ROCHA, 1988).

No início do século XX, a economia agrária piauiense, até então baseada na combinação entre pecuária extensiva e lavoura algodoeira, inserir-se-ia no mercado internacional pelo extrativismo vegetal da borracha da maniçoba, cera de carnaúba e amêndoa de babaçu. Esse extrativismo, porém, logo sofreria refluxos: a exploração de borracha de maniçoba paralisou-se totalmente por volta de 1920, em face da entrada, no mercado mundial, da que era produzida no sudeste asiático. As exportações de cera de carnaúba e de amêndoa de babaçu interromperam-se em torno dos anos 1950, e suas explorações se limitaram ao fornecimento de matérias-primas às indústrias locais que, por seu turno, restringiram-se ao fornecimento de subprodutos às indústrias do Centro-Sul e ao abastecimento, com óleos comestíveis e outros derivados, do mercado regional (ROCHA, 1988; QUEIROZ, 1993).

Desde os anos 1950 já se modificava a estrutura produtiva do Piauí. Até então, os excedentes eram auferidos, por meio da renda da terra, pelos proprietários aos rendeiros, parceiros e meeiros, e os lucros da exportação extrativista pelos comerciantes exportadores. Com a retração deles no mercado internacional, os grandes proprietários passaram a captar excedentes somente pela renda da terra, retirada das pequenas unidades produtoras de bens de subsistência (MONTEIRO, 1993). Aliás, historiadores como Mott (1985) e Brandão (1999) referem a existência – além dos vaqueiros, posseiros e agregados – de cultivadores livres (sitiantes), nos interstícios das grandes fazendas de gado no Piauí, desde os séculos XVII e XVIII, o que contribui para questionar a tese predominante na historiografia piauiense, segundo a qual o Piauí, na medida em que se volta inteiramente à pecuária extensiva, direciona apenas a mão-de-obra que cuidava da criação, no interior das fazendas, ao cultivo de produtos, por exemplo, como mandioca e feijão, simplesmente como atividades de subsistência. Com efeito, nas master narratives, essa agricultura ficou quase invisível, por ser a pecuária a atividade tida como economicamente importante, de modo a ser mencionada apenas como agricultura de subsistência vinculada à reprodução da força de trabalho, no âmbito da grande propriedade.

É indiscutível o papel da pecuária na formação do mundo econômico e social piauiense, como memória social (MORAES, 2000b) de um passado remoto do qual, no entanto, não se tem registro mais detalhado de populações subalternas, sob o ponto de vista econômico ou cultural, em que pese a inegável presença histórica de índios, escravos, vaqueiros e moradores. Até mesmo o vaqueiro, figura do mundo da pecuária alçada à categoria de herói cultural, pode ser visto, nas narrativas mestras piauienses, mais como metonímia em relação aos criadores de gado vacum do que propriamente como personagem principal8. É o que se pode dizer, por exemplo, da definição do Piauí como “pátria de vaqueiros” (CASTELO BRANCO, 1970), apesar do destaque conferido, por exemplo, à dança do boi dos folguedos juninos – tida como tradição de caráter verdadeiramente totêmico – e às cantigas de gado – tidas como gestas autenticamente piauienses:

O meu boi morreu, que será de mim? Manda buscar outro, morena,

Lá no Piauim

(CASTELO BRANCO, 1970, p. 44).

Ao valorizar os vaqueiros como heróis culturais, a memória oficial não raro enfatiza também o papel democratizante da pecuária extensiva, invocando o costume de se pagar a quarta. Há, certamente, uma romantização desses aspectos da “época do couro”, que perdura por toda a primeira metade do século XX, com o uso feito pelos folcloristas das imagens do vaqueiro na literatura popular, inclusive nos folhetos de cordel. (A propósito, a tese das cantigas de gado como as únicas gestas autenticamente nacionais é de Celso Magalhães, retomada por Sílvio Romero).

8 Sobre estratos sociais no Piauí-colônia, cf. Brandão (1999). A propósito do seu

eclipsamento nas narrativas mestras, leia-se: “Longe iríamos se fosse nosso propósito entrar em detalhes minuciosos acerca da vida de um vaqueiro e do que diz respeito a uma fazenda de gados” (ALENCASTRE, 1981, p. 86). [Grifos da autora].

A glorificação das virtudes do vaqueiro, ressaltando-se a lealdade absoluta ao patrão – capacidade de subtrair o gado à ação asselvajadora da criação extensiva e obediência à ordem social da fazenda, cuja recompensa era o direito à plantação e à criação própria – é, na verdade, a exaltação do regime da pecuária. Com efeito, esse é o imaginário que remete à história da colonização portuguesa no Piauí, a se confundir, segundo Abreu (1982) e Ribeiro (1998), com a própria expansão, pelos sertões, da pecuária no Vale do São Francisco. As regiões sul e sudoeste piauienses9 – atualmente identificadas como dos cerrados – são tradicionais de pecuária de corte, cujo povoamento deu-se, no século XVII (MOTT (1985), nos marcos do sertanismo de contrato. Aliás, a memória social funde, nesse processo, história e mito, uma vez que “o Piauí é descoberta de vaqueiros” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 68), genealogia na qual os ascendentes são os

(...) netos dos sertanistas baianos e dos bandeirantes paulistas que, enquistados no Vale do São Francisco, aí se desenvolveram, bravos e autônomos, como uma nova raça de cruzados. Em seu isolamento étnico, (...) um tipo racial definido, que novos cruzamentos não vieram perturbar. Entregues à atividade rude do pastoreio, (...) fortes e destemidos, dando origem a uma sociedade livre, movediça e varonil. Foi desse núcleo de irradiante força de expansão que partiram os verdadeiros descobridores, conquistadores e povoadores do vale parnaibano (...)” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 68). [Grifos da autora].

Veja-se que a ascendência estabelecida não inclui as populações autóctones, nem as negras, de origem africana, que constituíam a mão- de-obra escrava10, pois, se “o piauiense é, antes de tudo, um vaqueiro, “(...) nestas chapadas imensas, (...) outra não podia ser a atividade natural do homem que não a de pastoreio” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 43-44). Assim, o ser piauiense define-se, numa perspectiva objetivista de identidade cultural (CUCHE, 2002), por imperativos do meio, origem e tradição, circunscrito pelo determinismo geográfico do sertão.

9 No Piauí, é generalizada a forma de referir-se ao sul e sudoeste do Estado simplesmente

como “sul do Piauí”. A pesquisa que dá origem a este artigo focou a região sudoeste.

10 Boa parte da historiografia não se debruça sobre a existência de escravidão no Piauí,

com base na idéia da incompatibilidade do trabalho escravo com a atividade pecuária. Mas pesquisadores da Fundação Cepro (1979), Mott (1985) e Brandão (1999) questionam essa tese.

Essa visão idílica do vaqueiro como herói da região sertaneja assemelha-se ao modo pelo qual o índio foi tomado pelos românticos como símbolo da nacionalidade brasileira, embora apareça, de fato, mais como símbolo que como categoria social, que se definia pelo trabalho subalterno nas fazendas de gado: “(...) o gado é a própria alma do Piauí. Há, ali, no indivíduo, como na coletividade, uma perfeita mística do boi. O próprio estado é criador, nesta pátria de vaqueiros. (...)” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 44-45). [Grifos da autora].

Nesse trabalho de conceitualização realizado pela memória social, os personagens comportam-se mais como significados corporalizados que como figuras reais de carne e osso (MORAES, 2000b), levando a pensar que como a classe dominante de fazendeiros não gerou heróis necessitou ela, para representar a hegemonia, de um tipo econômico e socialmente subordinado – o trabalhador pastoril – com uma eficiência simbólica própria: a de significar a subordinação da natureza, o que, no caso, remete à idéia euclidiana do vaqueiro/sertanejo como rocha viva da nacionalidade. Mas, na idealização do vaqueiro, escamoteiam-se questões da estrutura social. Esconde-se, em primeiro lugar, a relação estabelecida, desde o período colonial, entre terra e poder econômico, social e político; em segundo, a constituição histórica das elites piauienses, no jogo social dos séculos XVII e XVIII, em literal luta armada pela posse da terra, no combate às populações indígenas, no posterior confronto entre, de um lado, arrendatários e posseiros e, de outro, potentados baianos – com a vitória dos interesses locais piauienses, consolidada na segunda metade dos anos 170011, além da estruturação socioeconômica baseada na alta concentração da propriedade da terra, característica da pecuária extensiva, não modificada depois da referida conquista (FUNDAÇÃO CEPRO, 1979).

Nesse processo, a retórica do destino pastoril participa da construção social de uma identidade sociocultural piauiense cristalizando, ao estabelecer um prognóstico supra-histórico, a própria história: “o Piauí viveu e viverá da pecuária. O Vale do Parnaíba deu-nos a independência

11 Sobre processo econômico e tensões na bacia do Parnaíba, a partir da segunda metade

física, a pecuária deu-nos a independência econômica e quiçá a política” (FUNDAÇÃO CEPRO, 1979, p. 93). [Grifo da autora]. Esta é uma fala do general Gayoso e Almendra, representante de grandes famílias proprietárias do Piauí, no fim da Primeira República brasileira, quando parecia fundamental às elites dirigentes locais assegurar a transferência de recursos nacionais para a economia piauiense em crise. Aliás, de acordo com Albuquerque Júnior (1994), certos grupos, cujos territórios tradicionais passaram por processos de destruição, tendem a lutar por suas identidades tradicionais, afirmando sua naturalidade e seu caráter permanente. Além disso, a visão de uma natureza e um destino pastoris apontam para a impossibilidade da agricultura, stricto sensu, no Piauí, no sentido do cultivo de produtos agrícolas em escala comercial:

[O piauiense] raramente se dedica à lavoura. O roçado, quando o faz, é unicamente para a própria manutenção. O solo, arenoso nas regiões saarizadas, ou impermeável e granítico nas chapadas [cerrados], é um obstáculo invencível aos seus parcos meios de produção. A agricultura, em conseqüência, não é compensadora; só entra em segundo plano em sua vocação (...). A alma fica fundamentalmente pastoril (CASTELO BRANCO, 1970, p. 57)12.

[Grifos da autora].

Convém lembrar que a obra de Renato Castelo Branco, recorrentemente citada, foi na sua primeira edição (1942) contemporânea das primeiras pesquisas sobre a presença de água nos cerrados brasileiros, que desembocariam em amplo programa de estudos com vistas à moderna agricultura, cujos ecos alcançariam o Piauí somente na segunda metade dos anos 1980. Com efeito, os cerrados do sudoeste piauiense foram considerados, até os anos 1980, como região estagnada, com dinâmica econômica não reelaborada. A exceção se deu no Vale do Gurguéia, onde foi implementado, ainda na década de 1970, o Plano de Desenvolvimento Rural Integrado (PDRI) Vale do Gurguéia, que pretendia a modernização agrícola da região com base em seus vastos recursos hídricos (MORAES, 2000b).

12 Obras que tratam da economia colonial piauiense enfatizam a pecuária e a ausência de

cultivos e cultivadores(as). Mas texto da Fundação Cepro (1979) lembra a importância da coleta de produtos da natureza voltada à subsistência de populações envolvidas com o trabalho pastoril.

Aliás, em relação ao manancial de águas superficiais nos cerrados piauienses, destaca-se o rio Parnaíba, além do qual há os vales do Itaueira e Uruçuí-Preto. Conforme se sabe, o Parnaíba, que nasce na Chapada das Mangabeiras ou Jalapão, desempenhou, para Piauí e Maranhão, papel semelhante ao do São Francisco para o oeste baiano. O Parnaíba comandou, por muito tempo, inclusive pela navegação, a dinâmica da região, a seguir seu curso simbólico, num processo civilizatório que se completa pelo contato com o litoral13, reiterando o imaginário da relação sertão/litoral, sobejamente conhecido no pensamento social brasileiro. Esta imagem, observe-se, subjaz a idéia do vazio, que opõe a representação da natureza, rica, à da presença humana, pobre: “(...) E isto explica porque, sendo esta a zona mais fecunda, mais rica e mais amena de todo o vale, é também a mais inculta e despovoada (...)” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 74). [Grifo da autora].

Prolegômenos a uma inflexão: das falas do destino

No documento D ifusão doA gronegócio (páginas 176-183)

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