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Incorporação dos cerrados e os novos discursos da vocação agrícola: do Piauí para o mundo?

No documento D ifusão doA gronegócio (páginas 188-200)

Plantar os cerrados piauienses é certeza da colheita de uma nova e mais próspera realidade (PIAUÍ, 1992, p. 12).

A incorporação dos cerrados piauienses pelo agronegócio do complexo carnes/grãos, para exportação, é caudatária do processo de anexação das chapadas do Centro-Oeste brasileiro e se insere no processo de instituição social do novo Nordeste dos cerrados (HAESBAERT, 1995; MORAES, 2000b), como atualmente usado ao se referir ao sul do Maranhão, ao oeste da Bahia e ao sudoeste do Piauí. Entretanto, o fato de a incorporação das chapadas do Piauí ter-se dado mais tardiamente remete a certas questões de âmbito interno e externo ao Estado.

No âmbito interno, certamente teve influência o ideário do destino pastoril parceiro de uma mentalidade empresarial local pouco afeita, durante muito tempo, a outras opções de economia agrícola. Acrescente- se a isto a hegemonia de elites político-administrativas do centro-norte, que alimenta, em certa medida, o atual discurso separatista do sul e sudoeste, com a incorporação das chapadas parecendo favorecer uma possível mudança nesse quadro de poder para incluir na cena política, com maior vigor, a proposta da criação do Estado do Gurguéia.18

No âmbito externo, há de se considerar o papel que coube a uma economia periférica como a do Piauí, no contexto do pacto federativo e da divisão regional do trabalho, em vigor no país, para se compreender o fato de os cerrados do sul do Maranhão e do oeste da Bahia virem sendo incorporados antes que os piauienses por oferecerem, já no início de 1980, vantagens locacionais aos novos investidores, no próprio processo de integração da economia nordestina à nacional, a qual aliás se deslanchara desde os anos 1960. Isso se constituía em elemento de extrema importância

18 Para análise desse fenômeno de reterritorialização político-administrativa, no contexo

do novo Nordeste dos cerrados, ver Haesbaert (1995, 1996) e Moraes (2000a, 2000b, 2001, 2002, 2002a, 2002b).

nas dinâmicas de territorialização do capital que, no caso dos cerrados, como lembram Bertrand, Théry e Waniez (1990) e Moraes (2000b), subordinaram-se ao movimento do agribusiness internacional, vinculado ao complexo carnes/grãos para exportação.

Nesse processo, como ocorreu em outras regiões brasileiras, apostava-se, no Piauí, num saber projetado sobre uma mão-de-obra qualificada e externa19. Negava-se, assim, a potencialidade de um saber local capaz de engendrar essa nova face agrícola do Estado:

No campo promocional, além da divulgação massiva das oportunidades de investimentos e a realização de simpósios e visitas de grupos empresariais à região, torna-se oportuno que o governo e as associações empresariais celebrem convênios com cooperativas e entidades de classe das principais regiões produtoras do país, visando, inclusive, à criação de mecanismos que venham facilitar a contratação de mão-de-obra qualificada e vivenciada em centros produtores mais desenvolvidos (PIAUÍ, 1985, p. 9- 10). [Grifo da autora].

Tal mão-de-obra qualificada seriam os “gaúchos”, que aportariam na região a partir da segunda metade dos anos 1980. Aliás, o imaginário sobre a superioridade gaúcha tem presença antiga nas narrativas mestras piauienses: “A economia de criação, indisciplinada e livre, não se coaduna, por sua natureza intrínseca, ao regime da escravidão. Gera, ao contrário, populações movediças e arrogantes, como o gaúcho, o beduíno ou o filho da estepe” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 80). [Grifo da autora]. Num movimento de conceitualização semelhante ao referido com o vaqueiro, no âmbito do imaginário do destino pastoril, as narrativas mestras da vocação agrícola elegem o gaúcho como símbolo, herói cultural, para domar o sertão modernizado pelo agribusiness (cerrados).20

19 Sobre como os programas para as regiões de cerrados lidavam com o tema de “um tipo

apto à ocupação racional dos cerrados”, ver Moraes (2000b), especialmente capítulo II.

20 A respeito do significado do termo gaúcho, ver Moraes (2000b). Ainda sobre o emprego

desse termo no Maranhão e na Bahia ver, respectivamente, Andrade (1984) e HAESBAERT (1995), autor este que trata, ainda, da representação social dos “gaúchos” no pensamento social brasileiro.

Naquele contexto de reconceituação da face agrícola do Estado, realizava-se, em 1985, o I Seminário sobre o Cerrado Piauiense, com “proposições básicas para uma política de integração socioeconômica” (PIAUÍ, 1985). Os cerrados eram, então, definidos como “o espaço geográfico mais adequado para expansão da fronteira agrícola”, com o Piauí “ingressa[ndo] na fase empresarial de aproveitamento dos seus recursos naturais” (PIAUÍ, 1985, p. 5). Como se vê, o trecho enuncia uma das chaves temáticas do discurso da vocação agrícola – fronteira agrícola – cujo imaginário, como lembra Souza (1997), no caso brasileiro, é de algo em constante movimento, devido à idéia de um Brasil inesgotável, sempre passível de expansão.

Ao mesmo tempo, refere também um evento sobre significativo passo da pesquisa científica no Piauí, nos anos 1980: uma linhagem de soja, resultante de uma seleção cultivar, a “cristalina”, realizada pelo Centro Nacional de Pesquisa de Soja da Embrapa (Embrapa-CNPSO), introduzida, no Estado, pela então Unidade de Execução de Pesquisa Agropecuária Estadual de Teresina (Embrapa-UEPAE Teresina). Os resultados daquela pesquisa sobre cultivo de soja nos cerrados piauienses seriam decisivos para o aporte tecnológico necessário à incorporação das chapadas. Outro passo importante, ainda, seria a celebração de convênio, para estudos na região, com o Centro de Pesquisa Agropecuária do Cerrado (Embrapa-CPAC).

Com efeito, a pesquisa de soja no Piauí iniciou-se em 1978 e o lançamento do primeiro material de soja adaptada deu-se em 1980. Tratava-se do cultivar “tropical”, seguido pelos “Teresina” e “Carajás”, lançados em 1982, e pelos “Cariri” e “Seridó”, em 1985. Os primeiros experimentos foram realizados na própria sede da Embrapa – UEPAE/ Teresina (atual Centro de Pesquisa Agropecuária do Meio Norte/ CPAMN) e os primeiros testes ocorreram em Uruçuí, no sudoeste do Estado. Diante disto, simbolicamente, pode ser visto como o berço da soja nos cerrados piauienses, até porque, nos anos 1990, viria a ser um dos municípios-base do chamado Pólo de Desenvolvimento Integrado Uruçuí-Gurguéia. A referida pesquisa visava, de fato, a uma variedade identificada na latitude entre cinco e seis graus e vinculada a materiais

adaptados a climas tropicais, os quais, posteriormente, uma vez saídos dos campos experimentais piauienses, difundir-se-iam, via Centro Nacional de Aproveitamento de Recursos Genéticos da Embrapa (Embrapa-Cenargen), para outras regiões do globo, localizadas na mesma latitude.

Efetivamente, segundo o governo do Piauí anunciava, já em meados dos anos 1980, os cerrados piauienses respondiam por 24% da produção estadual de algodão herbáceo, 14% da de arroz, 10% de feijão, 10% de milho e 9% de mandioca. Quanto aos novos produtos, a soja e o caju apareciam como prioritários para exploração, registrando-se, segundo Oliveira (1999), em relação ao caju, mais de 90.000 ha, ou 80% de toda a área cultivada. Mas é no início dos anos 1990 que proliferam as falas oficiais sobre os cerrados piauienses, e se inclui, em relatórios do governo, o tema da sua incorporação definitiva:

Os cerrados piauienses apresentam-se, hoje, não só como a alternativa mais imediata para expansão da fronteira agrícola, mas também como um celeiro capaz de produzir alimentos básicos (sendo responsável atualmente por cerca de 60% da produção de grãos do estado) e suprir a demanda protéico-animal. Sua exploração, conduzida racionalmente, proporcionará empregos diretos e indiretos, produtos agrícolas com menores custos, melhoria do nível de renda do produtor rural, bem como representará grande geração de impostos e aumento da arrecadação (PIAUÍ, 1992, p. 28).

Naquele contexto, uma dizibilidade nova para o Piauí, ao incorporar a região sudoeste do Estado como produtora de riquezas oriundas da agricultura, requeria estudos e levantamentos promotores da visibilidade daquela parte do espaço considerada, até então, um vazio e cuja contraface passava a ser, agora, a frente de expansão para o agronegócio do complexo carnes/grãos e, até, um “celeiro de alimentos básicos”! Nesse sentido, era preciso reinventar o Piauí e ressemantizar uma região, na medida em que o seu espaço natural tornava-se moeda forte no promissor mercado do novo Nordeste dos cerrados. Um dos primeiros passos seria justificar a baixa dinâmica econômica em vigor até então, atribuindo-a à pecuária extensiva, agora, não mais um destino:

o domínio da pecuária extensiva, pouco exigente de mão-de-obra, e das grandes propriedades rurais reflete o vazio demográfico que caracteriza a região sul do estado, evidenciado pelas densidades de 0,8 a 6,9 hab./km2 (FUNDAÇÃO CEPRO, 1992, p. 21). Na metamorfose do vazio em potencialidade e na negação do destino pecuarista, torna-se mister dar publicidade não só ao esforço do governo, mas também ao interesse que a região dos cerrados e a recém-descoberta vocação agrícola despertavam nos novos investidores. Aparece, então, com presença forte no discurso oficial, uma retórica de valorização do próprio governo, dos cerrados piauienses, e das novas potencialidades do Piauí:

À luz do trabalho do governo do Piauí, grandes empresas desenvolveram seus projetos para os cerrados. A cooperativa Carol, de São Paulo, vai gastar 250 milhões de dólares num projeto de 250 mil hectares de soja. A Ceval, do grupo Hering, também tem planos semelhantes, de olho nos altos índices de produtividade registrados. Os esforços governamentais sensibilizam além-mar. Os japoneses, por exemplo, se voltam para o potencial produtivo dos cerrados e já iniciaram estudo que vai levar à recuperação da navegabilidade do rio Parnaíba, importante canal de escoamento da produção até o Porto de Luís Correia e daí para o mundo (...) (PIAUÍ, 1992, p. 12).

No mercado do novo Nordeste dos cerrados urge, pois, dar visibilidade, em bases científicas, ao sudoeste piauiense, por meio da sua delimitação, descrição, medição e mapeamento, consolidando-se a idéia da vocação agrícola do Piauí, apresentado como promissor produtor de grãos e possuidor de, aproximadamente, 11,5 milhões de ha em áreas de cerrados, o que corresponde a 6% da área de cerrados do Brasil e a 37,3% dos do Nordeste. Segundo Castro (1995), desse universo, 70,4% (33% da área total do Estado) encontram-se em áreas de domínio e 29,65% em áreas de transição, ocupando o Piauí o quarto lugar no país e o primeiro no Nordeste, em termos de cerrados. Nesse processo, o governo do Estado publica, em 1992, um estudo preliminar das potencialidades dos cerrados piauienses, no intuito de contribuir

para o conhecimento técnico-científico sobre o Estado e fornecer subsídios aos interessados na realidade econômica da região21.

Referido estudo daria sustentação às narrativas mestras dos cerrados como fronteira agrícola, com base em um diagnóstico da região, com vistas a um conhecimento técnico-científico firmado em dados de clima, solos, vegetação, recursos hídricos, aspectos socioeconômicos e infra- estrutura de apoio à produção e comercialização. A partir daí, seriam traçadas estratégias para a sua incorporação produtiva sem, no entanto, se levar em conta o envolvimento das populações locais, numa anamnese que sublinhasse outras alternativas de conhecimento e de propostas sobre e para a região.22 Segundo mostra o estudo, os cerrados piauienses localizam-se, em sua maior parte, na mesorregião do sudoeste do Piauí23, abrangendo algo em torno de vinte municípios e 8,35 milhões de ha e, embora o Estado tenha áreas de cerrados em outras regiões, esta mesorregião é a parte incorporada pelo agronegócio do complexo carnes/ grãos nas chapadas e pela agricultura irrigada, no Vale do Gurguéia. Limita- se, ela, a leste, com o semi-árido piauiense, a oeste, com o Maranhão, ao sul, com o Tocantins e a Bahia, formando com tais unidades da federação um continuum de cerrados. Na verdade, sua transformação em fronteira agrícola, para o complexo carnes/grãos, demarca importante mudança no diagnóstico agrícola do Piauí, em relação ao elaborado pela Sudene, na década de 1970, que identificava apenas 5.616.800 ha, em todo o Estado, como propícios à agricultura.

Essa nova fala política piauiense, sustentada em argumentos técnico- científicos, apresenta como uma das grandes vantagens naturais dos cerrados – apesar da baixa fertilidade natural dos solos – a intensa presença

21 O mesmo documento identifica, como um ponto de estrangulamento, a “tímida postura

empreendedora dos empresários locais para investimentos modernos na agricultura, agroindústria, indústria e turismo” (MIR/Sudene/Governo do Estado do Piauí/Governo do Estado do Maranhão, 1994, p. 35).

22 Sobre concepções de diagnóstico e anamnese e sua aplicação à análise dos cerrados, ver

Moraes (2000b).

23 Esta mesorregião compreende cinco microrregiões geográficas piauienses com áreas de

cerrados: Alto Parnaíba Piauiense, Bertolínia, Floriano, Alto Médio Gurguéia e Chapadas do Extremo Sul.

de águas subterrâneas e superficiais, principalmente nos vales do Gurguéia (Baixo Gurguéia) e do Parnaíba (Alto e Médio Parnaíba). Ademais, a pecuária, durante muito tempo a atividade econômica básica da região, é exposta, no diagnóstico referido, em dois padrões espaciais: a) o da pecuária extensiva, ainda persistente em boa parte dos estabelecimentos e constituída de rebanhos pequenos de gado pé-duro e mestiço zebuíno, com destaque para suínos, caprinos e outros animais; b) o da pecuária semi-intensiva, que se expande do sul (Corrente e Cristalândia) ao sudoeste, em níveis variados de modernização, com pastagens cultivadas, melhores raças e o leite começando a ter importância comercial, sem diminuir a da pecuária de corte, além de contar com o concurso de projetos de grandes empresas. Ressalta-se também, ao lado da pecuária, a existência de grandes projetos de fruticultura comercial de manga e caju. Chama, ainda, a atenção o fato de o arroz e a soja passarem a ser produzidos em grande escala, o primeiro utilizado como cultura de “abertura de áreas”, ou seja, de rotação com a soja e, devido a isto, ainda ser cultivado em maior escala que esta. Com isto, difunde-se a imagem da modernização agrícola do Estado com vistas a uma “(...) agricultura, com adoção de novas tecnologias (...) evoluindo da pecuária extensiva (...) para uma exploração agrícola mais moderna, tecnificada, racional, produtiva e empresarial (...)” (FUNDAÇÃO CEPRO, 1992a, p. 29). Nesse discurso, o preço da terra e o custo da mão-de-obra, praticados na região, aparecem como atrativos para investidores externos:

A grande quantidade de terras potencialmente produtivas e a preços insignificantes, bem como a disposição de mão-de-obra de baixo custo são características que têm atraído diversas empresas agrícolas e investidores individuais de outros estados (destaque para o Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Mato Grosso) a se instalarem e desenvolverem extensos projetos agrícolas na região dos cerrados piauienses (...) (FUNDAÇÃO CEPRO, 1992a, p. 29-30. [Grifos da autora].

Conforme se sublinha, no contexto dessas vantagens locacionais, inclui-se a questão fundiária, na perspectiva de modernização dos latifúndios improdutivos, e não de uma reforma agrária. Assim, a estrutura fundiária da região é apresentada no intuito de demonstrar

as grandes potencialidades a serem exploradas economicamente, bem como mostrar a existência de grandes latifúndios improdutivos na região (...) [apontando para a] questão básica, que é a viabilidade econômica dos cerrados, que já vem despertando grande interesse aos empresários da área agropecuária e o seu reflorestamento que, aos poucos, tem-se implantado na região e confirmado sua viabilidade econômica (TORRES; ANDRADE, 1991, p. 35).

A referência aos latifúndios improdutivos insere-se numa linha teórica e política de racionalidade que defende sua modernização, distanciando-se de uma proposta de reforma agrária, haja vista uma das vantagens locacionais apresentadas pelo próprio governo do Estado ser o baixo custo da mão-de-obra, referindo-se, no caso, à população local e camponesas da região, tidas como potenciais trabalhadores rurais assalariados. Aliás, o discurso oficial é inequívoco quanto às vantagens oferecidas aos capitais privados: a terra e a força de trabalho local.

No tocante a fatores restritivos, o diagnóstico refere aspectos pluviométricos, vegetacionais e edáficos. Quanto a solos, a orientação é a de que para eles se voltassem ações especiais, principalmente de irrigação e adubação, com aplicações de calcário para corrigir o Ph e neutralizar o teor de alumínio tóxico que interfere no sistema radicular da maioria das plantas cultivadas. Ao mesmo tempo, informava ser o Piauí relativamente rico em afloramento de rochas calcárias24, fator útil para esta correção (FUNDAÇÃO CEPRO, 1992a).

Já no relacionado às populações camponesas locais, a proposta de desenvolvimento resultante do diagnóstico é quase muda. Efetivamente, ela converge para o protagonismo de empresários agrícolas, sem uma linha sequer dedicada àquelas populações tradicionais da região – os pequenos produtores que haviam merecido um estudo, no início dos anos 1980, quando da elaboração do Programa de Apoio ao Pequeno Produtor. Então, embora o diagnóstico dos cerrados refira a presença de pequenos produtores de culturas tradicionais, não fornece análise detalhada nem acerca de sua situação, nem em termos das condições de sua inserção – como agricultores/as, e não como assalariados/as agrícolas – no processo de modernização agrícola da região.

24 As maiores ocorrências de calcário se dão nos municípios piauienses de Santa Filomena

A invisibilidade e a indizibilidade das populações camponesas locais se patenteiam no estudo preliminar sobre as potencialidades dos cerrados, tanto no diagnóstico da região quanto na proposta de desenvolvimento preconizada. No primeiro caso, semelhante ao ocorrido em outras regiões de cerrados no Brasil, também no Piauí o governo estadual, ao pôr-se como sujeito, por excelência, de um diagnóstico que seria a base do modelo de intervenção, elabora um discurso técnico-científico (SANTOS, 1988) que não incorpora o conhecimento das populações camponesas tradicionais – que vivem entre “baixões” e “chapadas” – sobre o ambiente dos cerrados e que ficam, assim, eclipsadas.25 Com efeito, o projeto de exploração agrícola tido como moderno, tecnificado, racional e focado no grande empreendimento empresarial não inclui os chamados pequenos produtores. Nas falas mestras, a breve referência a esta categoria social diz respeito ao seu “fraco desempenho produtivo” (FUNDAÇÃO CEPRO, 1992a), reiterando a suposta incapacidade de inclusão dessas populações locais em frentes de modernização agrícola. São esses, segundo Moraes (2001a), os marcos da inclusão/exclusão no “negócio do cerrado”. Aliás, as master narratives, no afã de enfatizarem a incorporação das chapadas ao processo produtivo pela agricultura intensiva, costumam partir do imaginário do marco zero: “o sul do Piauí, de história recente, pode ofertar produtos agropecuários, mesmo enfrentando dificuldades próprias de uma fronteira agrícola” (AUDITORIA AMBIENTAL,1998, p. 11). [Grifo da autora]. Ora, estabelecer ponto zero na história de territórios é, como lembram Hobsbawn e Ranger (1984), inventar tradições – condutas que integram estratégias histórico-políticas presentes nas meta-narrativas, não constituindo, este caso, uma exceção.

O diagnóstico referido fundamentaria, assim, estratégias de promoção do “desenvolvimento dos cerrados” com base no agronegócio do complexo carnes/grãos. Tornava-se essencial àquela estratégia discursiva referir o vazio econômico, sociocultural e populacional, salientando a densidade demográfica da região – em média, três habitantes por quilômetro

25 Para uma análise do modo de vida de populações camponesas dos cerrados, entre “baixões”

e “chapadas”, cujas narrativas sobre o processo em curso nos cerrados são socialmente “eclipsadas”, ver Moraes (2000b) especialmente os capítulos V e VI , e Moraes (2005).

quadrado (FUNDAÇÃO CEPRO, 1992a) – além da pequena participação da população da região no total da do Estado (aproximadamente 8,6%), o que justifica a necessidade de povoá-la, ou melhor, repovoá-la. Destarte, o discurso da fronteira agrícola se punha pleno de sentido, era preciso, sim, preencher um vazio de gente, de cultura, de economia, de saberes, de tecnologia, de desenvolvimento.

No entanto, se o governo do Estado promoveu a ocupação do vazio, inclusive, com o concurso da propaganda de suas potencialidades, tal ocupação, na prática, ficava entregue à lógica do capital, conforme suas próprias vantagens locacionais. Exemplo disso foi a ausência de um zoneamento agroecológico da região, delimitador de áreas de preservação e de utilização para as diversas potencialidades exploratórias.26

Um dos impactos desse processo desordenado, iniciado com os grandes projetos da década de 1970, e que teve continuidade com a incorporação das chapadas nos anos 1980 e 1990, pode ser visto na mudança ocorrida na proporção entre a população urbana e rural na região, sem, no entanto, importantes transformações na infra-estrutura urbana dos municípios, capazes de reterritorializar significativos segmentos populacionais rurais desterritorializados (MORAES, 2000b). Com efeito, a população urbana cresce, desde então, na região, a taxas mais elevadas que a rural: em 1970, esta correspondia a 64,9%, e a urbana a 35,1% da população total. Em 1980, a urbana era de 57,5% e a rural de 42,5%. Consoante Torres e Andrade (1991), vários municípios mais que duplicaram sua população urbana ao longo da década de 1980, a exemplo

No documento D ifusão doA gronegócio (páginas 188-200)

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