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D IMENSÕES CONCEITUAIS DA IDÉIA DE JUSTIÇA : PRELÚDIO PARA A REVISÃO CONTRA TUALISTA DE J OHN R AWLS

No documento U MA HERMENÊUTICA DOH OMEMJ USTO (páginas 41-58)

A S DIMENSÕES DA IDÉIA DE JUSTIÇA E A CONCEPÇÃO PURAMENTE PROCESSUAL : ENTORNO DA INDIGNAÇÃO E A BUSCA PELO SENTI-

1.2 D IMENSÕES CONCEITUAIS DA IDÉIA DE JUSTIÇA : PRELÚDIO PARA A REVISÃO CONTRA TUALISTA DE J OHN R AWLS

Na busca por compreender o que é justiça, surge o problema dos conflitos humanos acerca de interesses não satisfeitos, razão pela qual Paul Ricoeur fala de uma intenção moral de indignação diante das situações de injustiça. Segun- do o filósofo, trata-se de um problema que emerge da necessidade de justificar a ordem através da qual o Estado se opõe à violência, mesmo que a expensas de ou- tra violência, da qual o próprio poder político é a origem: fala-se do poder punitivo do Estado, num exercício de violência autorizada, legítima, mas agora pela própria Sociedade Civil e contra os infratores da ordem por ela estabelecida. Ricoeur fala de uma intenção moral de indignação, referindo-se ao sentimento oriundo de certa intencionalidade e interioridade: é o sentido, o vivido gravemente, o dolorido; algo emocionalmente ultrajado com repúdio e incompreensão por não fazer parte da- quilo que se deseja como próprio e parte da vida; é, nesse sentido, patológico: uma afetação do sujeito, em relação ao mundo da vida, nas suas relações com os demais indivíduos. Essa afetação se manifesta como dor física, como dor na alma, como uma “agitação” desgostosa que não cessa de incomodar. O homem capaz da ação – do ato de fazer, do ato de falar, do ato de narrar e do ato de imputar e responsabi- lizar – é, antes de tudo, um homem de sentimentos, uma vez que “visa qualidades sentidas sobre as coisas ou sobre as pessoas, mas ao mesmo tempo revela o modo

12 SA, p. 202. Diz o autor que “O presente estudo se limitará a estabelecer a primazia do ético sobre

a moral, quer dizer, da perspectiva [ética] sobre a norma” e o “primeiro componente da perspectiva ética é isso que Aristóteles chamou de „viver-bem‟, „vida boa‟ ” (“La présente étude se bornera à établir la primauté de l‟éthique sur la morale, c‟est-à-dire de la visée sur la norme (...) La première composante de la visée éthique est ce qu‟Aristote appelle „vivre-bien‟, „vie bonne‟ ”).

30 como o eu se vê intimamente afetado” 13, tudo dentro de um mesmo vivido. Esse

homem de ação é ação, mas uma ação incompleta, frágil, que possivelmente não se realizará por inteiro.

Porém, quando um conflito de interesses entre os membros de uma mesma comunidade (como o é a sociedade política organizada) emerge den- tro de uma ordem contratual pré-estabelecida, e assim, provoca o exercício daquela violência legítima por meio de intervenção judicial, ele deverá se desenvolver – no plano das instituições justas – como um debate predominantemente racional, aira- do de uma incerteza inicial quanto ao sentido do discurso que falará de fatos ale- gados. Deverá ser decidido positivamente pelo Direito e materializado no ato de

julgar característicos dessas mesmas instituições. Nesse momento dialógico e incer- to, a atividade narrativa ganha um lugar de destaque no processo de compreensão da ação praticada, e parece preceder a todo um exercício de argumentação que vi- sa, sobremaneira, resolver as celeumas do convívio social de modo pacífico. Eis um empreendimento de cooperação entre os homens de ação em disputa, que deve ser resolvido no âmbito da palavra razoável14 e não fora dos limites da razoabilidade.

Nessa direção, em Le juste 2, Ricoeur pleiteia por uma coerência narrativa15 como um

elemento fundamental de um sujeito capaz, que é autônomo suficientemente para responder por seus atos a partir dos sentidos que ele lhes confere, o que garantirá a

13 EF, p. 293.

14 OJ, p. 09. Ricoeur afirma que “se o conflito, e assim, de certa maneira, a violência, provocam a

intervenção judicial, esta deixa-se definir pelo conjunto dos dispositivos através dos quais o conflito é elevado ao nível do processo, centrando-se este, por seu turno, num debate de palavras pronunciada pelo direito (...) Existe pois um lugar da sociedade... onde a palavra prevalece sobre a violência (...) „O ato de julgar‟, a finalidade próxima desse acto é resolver um conflito”.

15 J2, p. 93 e 94. Diz o autor: “Isso que se pode chamar de coerência narrativa, noção que Dworkin

tem recorrido no contexto da jurisprudência, combina a concordância entre o enredo diretriz a discordância de peripécias... Ora a gestão de sua própria vida, como história suscetível de coe- rência narrativa, representa uma competência de alto nível que deve ser considerada como componente maior da autonomia do sujeito de direito” (“Ce qu‟on peut appeler cohérence nar- rative, notion à laquelle Dworkin a recours dans le contexte de la jurisprudence, combine la con- cordance de l‟intrigue directrice et la discordance due aux péripéties... Or la gestion de sa propre vie, comme l‟histoire suscetible de cohérence narrative, représente une compétence de haut ni- veau qui doit être tenue pour une composante majeure de l‟autonomie du sujet de droit”).

31 ele o estado de sujeito de direito. Trata-se da condição de um sujeito capaz de res- ponsabilizar-se por suas ações (em suas quatro perspectivas: fazer, falar, narrar e imputar) no âmbito das instituições justas, isto é, de um sujeito digno de estima e de respeito, de um sujeito capaz de avaliar as próprias ações e as dos outros16.

Em função do sentimento de indignação (vivido como sentido e como sentimento – dor da alma, dor do corpo –, como uma afetação pelo sujeito da ação), Paul Ricoeur dirá que falar acerca da idéia de justiça é, antes, falar da injusti- ça que ressoa vivamente nas vozes dos indignados17. Trata-se, pois, de um proble-

ma acerca da indignação que sente o ser humano diante de funestos sentimentos, oriundos da frustração de suas expectativas de querer ser mais e não conseguir ser, de querer fazer mais e não conseguir fazer: a frustração de se desejar capaz, mas perceber-se falível. Quando se disse que a ideia de justiça é um problema relativo aos conflitos humanos é porque a “justiça é antes de mais objecto de desejo, de pri- vação, de aspiração” 18, na medida em que se deseja a “vida boa”. Nesse sentido,

tratam-se da inconformidade quanto às retribuições desproporcionadas, promessas traídas ou partilhas desiguais, e que seriam objetivos não objetivamente dirimidos pelo direito.

No estudo de Teoria e Filosofia do Direito, certa vertente positivis- ta acerca da idéia de justiça – isso em face da normatização das condutas – é pen- sada de modo bastante peculiar. Em razão da própria „condição lógica‟ que a estru- tura normativa prescritiva19 impõe, a dinâmica das relações sociais e os processos

16 OJ, p. 25 e 28. Diz o autor: “Pretendo mostrar que a questão de forma jurídica: quem é o sujeito do

direito? Não se distingue, em última análise, da questão de forma moral: quem é o sujeito digno de estima e de respeito?... Nós mesmos somos dignos de estima ou de respeito enquanto somos capazes de avaliar como boas ou más, de declarar como permitidas ou proibidas as acções dos outros ou as nossas”.

17 L1, p. 176. Onde o autor fala que “é, no início, à injustiça que nós somos sensíveis: „Injusto!‟, „que

injustiça!‟, exclamamos nós”, querendo demonstrar o sentimento de indignação como o início da percepção do injusto ou do justo de uma ação.

18 OJ, p. 15.

19 GUASTINI, Ricardo. Das fontes às normas. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005. P. 55

e 56. Neste texto o autor sustenta que a prescritibilidade “é uma propriedade não tanto dos enuncia- dos, mas antes de enunciações concretas de enunciados. Prescritivo exatamente não é o enunciado

32 de desenvolvimento humano na ordem da convivência fazem com que a atualiza- ção do sentido normativo seja morosa, precária e limitada. Em consequência propi- cia a perda de uma possível finalidade normativa: a de corresponder aos interesses latentes da sociedade e do indivíduo. Isso decorre de certa imprecisão dos critérios dogmáticos de interpretação e da ausência de regra clara no que concerne à idéia de justiça como problema de princípio geral das relações sociais, e assim constitui a minguada fruição da dinâmica do Ordenamento Jurídico em face de seu problema hermenêutico20.

Razão pela qual, diante dessa dissincronia entre o postulado nor- mativo, a atualização de seu sentido e o atendimento às necessidades de justiça social, se requererá a elaboração de uma ideia de justiça que, no interior de uma operação hermenêutica, começará a elucidar o desenvolvimento de uma ética que possa ser considerada fundamentalmente apropriada para as relações entre os su- jeitos capazes de agir conforme seus princípios, desejos e sentimentos, mas de a- cordo com o pressuposto de uma ética do respeito e da reciprocidade. Eis o “espíri- to” da proposta ética de Paul Ricoeur em Soi-même comme un autre21 ao desenvolver

uma reflexão ética que considera o indivíduo sob três perspectivas distintas, ao menos no que concerne a uma ontologia da capacidade que o indivíduo tem de se realizar no mundo como agente responsável por si, pelo outro de si mesmo e por terceiros: (1) a do indivíduo como o mesmo de si (mesmidade); (2) a do indivíduo como o outro de si mesmo, daquele que é capaz de atestar a si mesmo seu próprio caráter (ipseidade); e (3) a do indivíduo como outro totalmente distinto de si, como um terceiro (alteridade) 22. Todavia, essa reflexão exigirá uma compreensão sistemá-

tica das dimensões conceituais da ideia de justiça – uma vez que não se propõe

(se não, talvez, por metonímia), mas antes o modo de o usar, ou o ato da linguagem executado me- diante o seu proferimento”, isso de um ponto de vista pragmático da linguagem prescritiva.

20 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. P. 68-86. 21 Particularmente, nos capítulos 7, 8 e 9 que o próprio autor chamou de „petite éthique‟.

22 A respeito desta temática voltaremos a tratar com mais vagar nos segundo e terceiro capítulos

desta tese, quando o objetivo será o de compreender quem é o homem capaz no âmbito das a- ções justas.

33 qualquer afastamento daquilo que se chamou de realidade da vida –, o que pode ser encontrado em outros textos do autor, nos quais, a pretexto de analisar a noção de justo nos planos ético, político e jurídico, ele discorre amplamente acerca da constituição do homem capaz de agir eticamente.

Para Ricoeur, a justiça pode ser compreendida em princípio a par- tir de duas perspectivas: a ética e a política. A primeira diz respeito à virtude que orienta o ato de julgar, na ordem das relações intersubjetivas. A segunda diz res- peito à legitimação do ato de julgar, na esfera das relações políticas23. Entretanto, o

autor reconhece a falta de uma terceira, a jurídica, que deveria se preocupar com a efetivação do julgamento no âmbito das relações sociais por meio da força que o exercita, ou seja, o poder político24. Esse entendimento ganha qualidade quando o

autor aborda os sentidos do predicado “justo, ora do lado do bom, ora do lado do

legal, o que, dialeticamente, é inerente ao papel da ideia reguladora a que se refere à ideia de justiça, isso com relação às práticas sociais que encontram nela o seu re- flexo25. Trata-se, pois, de colocar a questão a respeito da ideia de justiça em dois

23 Olivier Abel esclarece que a filosofia ricoeuriana acerca da idéia do justo contempla dois eixos: (1)

o justo empregado na visada ética, de viés teleológico, onde a idéia do bem se dirige ao outro, tanto o próximo quanto o distante, em função da amizade própria do unviverso das relações privadas; e (2) o justo como virtude institucionalizada por um corpus de leis escritas, tribunais judiciários e juízes dotados de autoridade para sentenciar problemas discutidos em processos judiciais. A partir dessas duas acepções do justo, emerge a sabedoria prática ou, dito de outro mo- do, as convicções bem refletidas, que conferem sentido ao julgamento das situações em conflito po- lítico (especificamente, político no sentido de uma concepção contratualista de convivência soci- al) e que devem ser ajustadas. Conforme ABEL, O. Porée, J. Le vocabulaire de Paul Ricoeur. Paris: Ellipses, 2007. Verbete: juste, p. 47-49.

24 CC, p. 161 e 162. Nessa entrevista, Ricoeur justifica a presença constante de suas reflexões acerca

do direito: “Em filosofia só lhe dávamos [ao “jurídico”] muito pouco espaço... Nesta grande tradição filosófica [“na escola dos jusnaturalistas”] o direito tem um lugar permanente, sem dúvida com a convicção forte de que ele constitui um lugar conceptual, normativo e especulativo simultaneamente irredutível ao moral e ao político (...) Irredutível ao político, na medida em que a questão da legitimidade nunca se deixa absorver pela do poder. O próprio poder está à procura de legitimidade e, portanto, está na situação de litigante relativamente ao jurídico, o que é expresso pela idéia de direito constitucional”.

25 L1, p. 178. Diz o autor: “Le prédicat „juste‟ paraît en effet alternativement tiré, comme le suggère

le titre de ma leçon, du côté du „bon‟ et du côté du „légal‟. Que signifie cette opposition? Marque- t-elle la faiblesse d‟un concept ou, au contraire, en constitue-t-elle la structure dialectique qu‟il importe de respecter? Selon cette seconde interprétation, qui sera la mienne, la dialectique du „bon e du „légal‟ serait inhérente au rôle d‟idée régulatrice qui peut être assigné à l‟idée de justice par rapport à la pratique sociale qui se réfléchit en elle”.

34 eixos de reflexão: um teleológico no qual Ricoeur parte da ética de Aristóteles, com vista a compreender a idéia de „vida boa‟, e outro, deontológico, que parte da filo- sofia crítica de Kant com vista a compreender o papel da norma e da obediência no contexto da prescrição de condutas eticamente almejadas. A partir desses dois ca- minhos o autor pretende determinar os postulados básicos de sua „pequena ética‟ e esclarecer em que termos se dá a configuração da ideia de justiça como sentido da ação do homem capaz.

Segundo o autor,

“A ideia de justiça rege uma prática social na qual importa lembrar de início as ocasiões ou as circunstâncias, em seguida as vias ou ca- nais no plano institucional e, enfim, os argumentos no nível do discurso. Fa- lando de circunstâncias da justiça, é necessário lembrar que lidamos com a justiça quando é requerida uma instância superior de escolha entre as rei- vindicações suscitadas por interesses ou direitos opostos. Quanto aos canais de justiça, trata-se do aparelho judiciário mesmo, compreendendo várias coisas: um corpo de leis escritas; tribunais ou cortes de justiça, investidas da função de dizer o direito; os juízes, quer dizer, indivíduos como nós, repu- tados independentes e encarregados de pronunciar a sentença reputada jus- ta numa circunstância particular; aos quais não se deve esquecer de acrescer o monopólio de coerção, a saber, o poder de impor uma decisão de justiça pelo emprego da força pública. Quanto aos argumentos da justiça, lembra- se que esta é uma parte da atividade comunicacional, a confrontação entre argumentos diante de um tribunal oferece um exemplo notável do emprego dialógico da linguagem”26.

26 L1, p. 176. Diz Ricoeur: “L‟ idée de justice régit une pratique sociale dont il importe de rappeler

d‟abord les occasions ou les circonstances, ensuite les voies ou canaux au plan institucionnel, enfin les arguments au niveau du discours. Parlant des circonstances de la justice, il nous faut rappeler que nous avons affaire à la justice lorsqu‟il est demandé à une instance supérieure de trancher entre des revendications portées par des intérêts ou des droits opposés. Quant aux canaux de la justice, il s‟agit de l‟appareil judiciaire lui-même, comprenant plusieurs choses: un corps de lois écrites; des tribunaux ou des cours de justice, investis de la fonction de dire le droit;

35 Em face do que afirma o autor, quer-se dizer que, para além da éti- ca e da política, a ideia de justiça suscita uma reflexão acerca dos seus componen- tes estruturais nas instituições, no interior de uma dimensão propriamente jurídica. Então, falar a respeito da idéia de justiça é tratar das ocasiões que a suscitam, dos canais institucionais que a materializam e dos argumentos a partir dos quais é de- senvolvida no âmbito do discurso – especificamente, no âmbito da argumentação. No que se refere às ocasiões de justiça, trata-se das divergências entre interesses ou direitos em conflito. É aí que o autor relembra o problema dos sentidos não corres- pondidos: das palavras traídas (promessas desfeitas, promessas não cumpridas); e das retribuições desproporcionadas ou partilhas desiguais. O primeiro diz respeito a um sentimento de decepção que emerge com o dano sofrido e que ocorre quando há a ruptura da palavra dada na efetivação de um compromisso. Trata-se do desa- parecimento (um apagamento) de uma relação que surgiu da convergência de inte- resses, quando os participantes construíram seus discursos e os fiaram na promes- sa de seu cumprimento, e que desapareceu com o esquecimento do sentido original com a qual foi moldada27. Já o segundo problema aparece quando, embora não se

tenha apagado da memória a causa dos acordos de interesse, o sentido da promes- sa tenha sido modificado pelo modo como se deu a realização (efetivação) das pre- tensões. É importante salientar que é o próprio autor que faz uso da palavra “pro- messa” para fazer referência a um tipo de relação que se constrói dramaticamente

de juges, c‟est-à-dire des individus comme nous, reputes indépendants et chargés de prononcer la sentence réputée juste dans une circonstance particulière; à quoi il ne faut pas oublier d‟ajouter le monopole de la coercition, à savoir le pouvoir d‟imposer une décision de justice par l‟emploi de la force publique. Quant aux arguments de la justice, ils rappelent que celle-ci est une partie de l‟activité communicationnelle, la confrontation entre arguments devant un tribunal offrant un exemple remarquable d‟emploi dialogique du language”.

27 CC, p. 164. Quando Ricoeur fala que poderia conceber uma filosofia do direito pedagogicamente

organizada em três círculos concêntricos (p. 162), sendo eles o do direito penal, o do direito social e o do direito político, afirma que: “O segundo círculo jurídico [o do direito civil] é mais amplo (...) A noção de „dano‟ deve, de facto, situar-se no segundo círculo, que é o dos contratos. A sociedade não vive apenas à base de conflitos, mas também de palavras dadas, de trocas de palavras. E há conflito quando uma parte considera que a outra não respeitou o seu compromisso” (grifo nosso).

36 no interior do universo da linguagem, como uma relação tipicamente ética e que exige franqueza e sinceridade dos interlocutores. Diz Ricoeur:

“Por termos aqui [no conflito que ocorre com a ruptura da palavra dada] uma espécie de encenação e dramatização de um núcleo ético importante, que, a meu ver, permite corrigir uma visão puramente conflitu- osa das relações humanas: a da promessa. Os laços de promessa tocam em qualquer coisa de fundamental, mais que não fosse ao nível da linguagem: a própria linguagem é toda ela uma instituição fiduciária. Quando alguém me dirige a palavra, creio que quer dizer o que diz, ou, como dizem os teóricos anglo-saxónicos dos actos de linguagem, you mean what you say [você signifi- ca o que você diz]. Creio que há adequação entre a palavra e a significação. É a opção de „caridade‟, o primeiro núcleo fiduciário enorme massa de contra- tos que fazemos uns com os outros. Alcançamos assim o âmago de uma das convicções mais fundamentais e, provavelmente, das mais irredutíveis a to- da a mudança dos costumes: é preciso manter a sua palavra. Pacta sunt ser-

vanda, os pactos devem ser cumpridos” 28.

É possível entender que, uma vez “dada” a palavra, quanto aos papéis que cada um pode e deve desempenhar no interior da relação social – e se é social, existe aí um princípio de sociabilidade que se impõe como princípio- obrigação-de-conviver próprio da ordem da convivência –, então, cada indivíduo somente estará se comportando eticamente se tornar-se a si mesmo o modelo de obediência e submissão ao que houvera prometido. Daí o sentido de caridade a- pontado pelo autor como próprio do compromisso, pois seria preciso dar fé ao que se diz para ter fé pelo que fora dito, isto é, o indivíduo tem de confiar no sentido da

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