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V IDA , REALIDADE E HERMENÊUTICA DA JUSTIÇA

No documento U MA HERMENÊUTICA DOH OMEMJ USTO (páginas 36-41)

A S DIMENSÕES DA IDÉIA DE JUSTIÇA E A CONCEPÇÃO PURAMENTE PROCESSUAL : ENTORNO DA INDIGNAÇÃO E A BUSCA PELO SENTI-

1.1 V IDA , REALIDADE E HERMENÊUTICA DA JUSTIÇA

De que maneira o homem poderá se realizar no mundo? Como o indivíduo pode situar-se no mundo como participante efetivo da realidade? Qual deverá ser o seu papel numa ordem construída com base num razoável equilíbrio das ações, sem gerar incompatibilidade de interesses? Ou, por que é preciso sus- tentar uma noção aceitável de equidade nas relações para que haja harmonia na convivência social? Quanto essa equidade se justifica como princípio da sociedade, uma vez que os anseios humanos por um Estado justo, ao menos aparentemente, apresentam-se frustrados no que concerne a um fundamento eticamente válido e consistente da ordem social instaurada? Enfim, será possível sustentar uma idéia de justiça, tal como é formulada pelos pensadores contemporâneos da teoria do Direito, no interior de uma tradição deontológico-positivista que majoritariamente tende a ignorar a justiça como problema?

Para poder compreender os sentidos possíveis da realização do homem no mundo da vida, talvez seja preciso uma reflexão mais profunda a res- peito das condições e dos elementos que constituem a identidade dos indivíduos, uma consideração acerca da multiplicidade possível das relações humanas na rea- lidade social. Uma tarefa como essa corresponderia àquilo que Abel teria chamado

25 de hermenêutica crítica8 ricoeuriana que, por sua vez, se desenvolve na esteira da

hermenêutica da suspeita de Marx, Nietzsche e Freud. Nesse sentido, a definição de uma idéia de justiça constituirá uma tarefa difícil, pois requererá uma adequada compreensão dos sentidos possíveis da realidade onde a justiça ou injustiça encon- tram o seu lugar, isso, a partir de uma constante (re-) abertura das tradições filosó- ficas da teoria da justiça às discussões de caráter político, jurídico e ético: trata-se de uma busca de possíveis significações da idéia de justiça à luz de aspectos distin- tos e intrinsecamente conexos.

Para chegar a uma definição possível da idéia de justiça, nos ter- mos de uma hermenêutica crítica, uma mínima consciência e uma mínima reflexão acerca dos sentidos da vida é necessária. O homem justo – quer dizer, o homem capaz de ações justas – deve poder compreender a idéia de justiça em suas dimen- sões existenciais num universo racional de entendimento, onde possa retomar a si mesmo como condição da justeza de suas ações na prática das relações humanas: e assim buscar compreender o sentido de cada ação que pratica como um sentido adequado a sua própria condição. Esse trajeto direciona a reflexão acerca de como é possível um mundo da vida em termos de vida justa para um homem capaz de praticar ações justas.

Falar da vida implica vivê-la. Do contrário, seria o mesmo que i- maginar uma realidade meramente fantasiada, propriamente, um sentido de reali- dade que não encontraria correspondência no mundo fenomênico: um mundo i- maginado, simplesmente imaginação, delírio! Por essa razão, a perspectiva de quem vive a vida é, perenemente, doadora de sentido às ações praticadas no viver a vida; o olhar de quem dela fala denota, em certo sentido, sua ordem e sua forma: trata-se da sujeição do mundo a uma percepção singular que expressa um sentido de realidade. E é sob essa condição – sobremaneira, fenomenológica – que qual-

8 ABEL, Olivier. Paul Ricoeur: a promessa e a regra. Trad. Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget,

1996 (Col. Pensamento e Filosofia). P. 39: “É por essa razão que Ricoeur propõe uma „hermenêutica crítica‟, sustentando a ideia de que é preciso reabrir constantemente as tradições numa comunicação política verdadeiramente aberta à discussão”.

26 quer concepção da realidade delimita-se, em suas múltiplas dimensões, por uma interpretação que dela se pode fazer. Assim, no que se refere ao singularmente humano, não há neutralidade de vontade ou de conhecimento, não há objetividade teórica ou científica, que se sustente ao se tratar da idéia de justiça: ela se sujeitará às condições pessoais e próprias do sujeito de conhecimento – e, certamente, do homem de ação – no momento da reflexão acerca de suas ações (momento este em que o indivíduo busca identificar o seu agir com a idéia de justiça aceitável no con- texto de sua vida com os demais indivíduos). Então, sendo impossível a formação de parâmetros comportamentais universais e objetivos, sempre cunhados como modelos pressupostamente adequados de conduta, a própria razão da justiça fica sujeita ao momento vivido por uma dada sociedade: qualquer idéia de justiça vin- cula-se necessariamente a uma questão de temporalidade, do momento em que ela é visada, do momento em que um sentido de justo se busca para as ações práticas.

O que se quer dizer é que avaliar um comportamento como justo ou injusto implica necessariamente contextualização histórica, a partir de uma perspectiva fenomenológica dos atos sob o juízo de reflexão prática: tal empresa constitui algo que requer uma relativização racional do próprio sentido da vida, isso no que se refere àqueles atos sob avaliação pelo homem da ação. A idéia de justiça requer um perpétuo reexame de sua condição como busca de adequação aos interesses sociais em discussão, sempre de acordo com aquilo que Ricoeur chamou de sentidos da justiça. Ele diz:

“é, no início, à injustiça que nós somos sensíveis: „Injusto!‟, „que injustiça!‟, exclamamos nós (...) Ora, o sentido da injustiça não é somen- te mais agudo, mas é mais perspicaz que o sentido da justiça, pois a justiça é frequentemente o que falta e a injustiça o que reina, e os homens têm uma visão mais clara do que falta às relações humanas que da maneira reta de as organizar”9.

9 L1, p. 177: “c‟est d‟abord à l‟injustice que nous sommes sensibles: „Injuste!‟, „quelle injustice!‟, nous

27 Ricoeur sugere o sentido do injusto como primaz sobre o do justo. Segundo o entendimento do autor, trata-se de uma percepção imediata de um rei- no de dores, sofrimentos e indignações; um reino oriundo de ações que, como con- sequência de todo um empenho em se colocar no mundo como tal, retratam a fali- bilidade humana como uma espécie de degeneração das ações praticadas, como que se elas se perdessem e, assim, esvaziassem o sentido da própria existência hu- mana. Falar desses desdobramentos do sentido de injustiça – dores, sofrimentos e indignações – é recuperar, desde já, o tema do homem capaz e falível tão caro ao pen- samento de Paul Ricoeur, o que também constitui um dos fios condutores dessa tese. Diante da falibilidade humana, o sentido do injusto corresponde às conse- quências de sua frustração. A dor da carne e da alma: uma dor d‟alma, dor de an- gústia oriunda do esvaziamento das forças do agir; uma dor física que se reflete na inércia do corpo em sobrepor-se à condição negativa de suas ações. Certamente, é uma dor decorrente da percepção que o indivíduo tem de sua falha em ser capaz de se sustentar e de realizar suas próprias ações a partir de uma base de convicções próprias acerca do mundo da vida. Essa frustração o torna alguém indignado, quer dizer, um indivíduo desestruturado na base de entendimentos (e convicções) que lhe dão identidade. Enfim, a impossibilidade de se realizar no mundo a partir de sua própria compreensão e entendimento acerca de quem se é e do que se faz (ou se pode fazer), torna o indivíduo alguém que não consegue sustentar sua própria identidade, que não consegue reconhecer-se a si mesmo como capaz de agir con- forme seus próprios princípios, e que, portanto, sofre a dor e o mau sentimento, oriundo da frustração que emerge de si mesmo, enquanto sujeito capaz de agir, de falar, de compreender-se e de se responsabilizar por suas ações. Essa reflexão suge- re um processo de conscientização que culminará na constituição de uma ética da responsabilidade em Paul Ricoeur.

que le sens de la justice; car la justice est plus souvent ce qui manque et l‟injustice ce qui règne, et les hommes ont une vision plus claire de ce qui manque aux relations humaines que de la manière droite de les organiser”.

28 Diante da dificuldade de pensar a idéia do justo como o resultado exato de uma projeção lógica da conduta humana – ideal e perfeita –, ou seja, como prescrição comportamental rigorosamente efetivada conforme a norma, os sentidos da justiça ganham espaço como espécies de projeções primordiais do vivido, como fatos eticamente refletidos, como reflexos de um entendimento possível do mundo da vida. Nessa direção, percebe-se uma primazia da experiência narrativa do sujei- to da ação sobre qualquer prescrição normativa de comportamento pré- determinado como justo. Essa primazia se justifica com o pressuposto de que qual- quer idéia de justiça somente encontrará fundamento se compreendida como refle- xo da experiência narrada de uma vida real, uma experiência que se relata a si mesma. Quer dizer, falar sobre o significado do justo requer, antes, a vivência (u- ma percepção) do injusto como situação de indignação do indivíduo, um sentimen- to reinante da condição humana. Requer, ainda, pensar o injusto como princípio lógico e pragmático de uma busca pela saída: a busca pelo fim do constrangimento que decorre do sentimento vivido de indignação, em direção a uma perspectiva de vida cujo sentido de justiça seja suficiente para pôr fim à angústia e ao sofrimento que dela decorrem.

Por essas razões, enfim, um dos objetivos dessa tese é apontar para uma hermenêutica da justiça10 na obra de Paul Ricoeur, mais precisamente nos textos

que ele dedica ao estudo da ética e da condição do homem capaz de justiça11. A

finalidade é demonstrar como a reflexão acerca da justiça (ou do sentido do justo e do injusto da ação praticada), no âmbito da Ética (e em torno da estima-de-si), re- quer uma compreensão adequada acerca da idéia de “vida boa” (vie bonne), então

10 Abel. Ibidem, p. 82: “Somos aqui remetidos ao que se poderia chamar , de acordo com Ricoeur, de

uma hermenêutica do justo. Se a hermenêutica estabelece a aparência do sujeito, interpretando o que ele interpreta, há, com efeito, uma verdadeira pré-compreensão ética e mesmo religiosa do justo”.

11 Especificamente, é propósito desse estudo abordar com maior atenção os capítulos 7, 8 e 9 de Soi-

même comme un autre; alguns artigos de Lectures 1; e outros textos onde a temática do homem capaz (e falível) de justiça toma relevância.

29 considerada como o centro conceitual de uma perspectiva ética da idéia de justiça, onde esta toma primazia sobre a moral12.

1.2DIMENSÕES CONCEITUAIS DA IDÉIA DE JUSTIÇA: PRELÚDIO PARA A REVISÃO CONTRA-

No documento U MA HERMENÊUTICA DOH OMEMJ USTO (páginas 36-41)