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U MA HERMENÊUTICA DOH OMEMJ USTO

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Academic year: 2018

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UMA HERMENÊUTICA DO HOMEM JUSTO

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(2)

P

ONTIFÍCIA

U

NIVERSIDADE

C

ATÓLICA DE

S

ÃO

P

AULO

PUC-SP

R

ICARDO

R

OSSETTI

J

USTIÇA EM

P

AUL

R

ICOEUR

UMA HERMENÊUTICA DO HOMEM JUSTO

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia,

sob a orientação da Profª. Drª. Jeanne-Marie

Gagnebin de Bons.

D

OUTORADO EM

F

ILOSOFIA

SÃO PAULO

(3)

B

ANCA

E

XAMINADORA

Prof. (a) Dr. (a) ______________________________________________

Prof. (a) Dr. (a) ______________________________________________

Prof. (a) Dr. (a) ______________________________________________

Prof. (a) Dr. (a) ______________________________________________

(4)

DEDICATÓRIA

(5)

AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, a Professora Jeanne-Marie Gagnebin de

Bons, que para além da paciente e incansável orientação, ajudou-me a livrar um

pouco mais os meus pensamentos das amarras de um filosofar dogmático,

pesado, velho, bufão, desgostoso... Morto! Fez-me, como o próprio Ricoeur dos

escritos póstumos – do viver até a morte, porque não um Ricoeur moderadamente epicuriano que vive a vida pela vida em face do inefável

encontro com a morte?! – um alguém capaz de filosofar a vida mais vivamente,

com certa leveza salutar, com um rigor sublime, mas não menos exigente e

responsável. Como ela mesma diria um filosofar “com um superego filosófico menor”, menos pretensioso, mais filosófico!

A Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Ensino Superior e ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-SP, pela

bolsa de estudos que permitiu o desenvolvimento da presente tese, sem a qual

esta pesquisa não teria êxito.

Ao Professor Wanderley Andrade da Costa Lima, amigo e

crítico. Um dos maiores incentivadores desta pesquisa e, certamente, o mais

pungente e instigante companheiro de Academia. A esse amigo e irmão

admirável, o meu imenso agradecimento. Que seja ele, por toda sua história,

sempre agraciado por um poder gritar “Justo! Justiça, finalmente!”.

À Elizabeth Nespoli, uma nova amiga. Pelo olhar atento,

característico de uma excelente leitora que, devotadamente, dedicou um pouco

de seu precioso tempo lendo o escrito desta tese e ajudando a melhorá-la.

Ao Professor Carlos Eduardo de Abreu Boucault, da Faculdade

de Direito da UNESP – Franca. Um amigo longínquo, porém, um exemplo

sempre próximo de professor dedicado e pesquisador comprometido com uma

tradição. Minha perene gratidão por quem muito colaborou para meu

(6)

Aos senhores Jairo e Gustavo, zeladores da justiça argutos e

engenhosos. Como eles, outros tantos. São eles, em seus ofícios, bons exemplos

do que caracteriza um dos problemas tratados nesta tese – a realidade de um

paradoxo: homens que prezam pela supremacia técnica do discurso

retórico-jurídico, sobre qualquer sabedoria prática minimamente calcada na busca pelo

conhecer e pelo fazer justiça. Sou-lhes grato, sim, pois que em muito me

instigaram nessa busca pela compreensão do que seja o justo, hoje, para além

do que se pratica nas Instituições de Justiça que deveriam zelar pela visada ética

de uma vida boa com e para os outros e em instituições justas.

Ao Luís Augusto e a Laila. Ele, um amigo tardio, pela

habilidade racional que muito me orgulha. Ela, uma luz que não cessa de

iluminar o meu redor, pela alegria inabalável. Minhas alegrias e maiores

realizações, as melhores de uma vida. Minha profunda gratidão pela paciência e

pela tolerância quando não pude ser um pai presente, devotado, mais dedicado.

Enfim, a sempiterna e amada Regina Rossetti. Inspiração

acadêmica, mãe generosa, esposa paciente, companheira amorosa e fiel. Meu

especial agradecimento por não ter desistido de lutar, por ter resistido às

provocações capciosas da vida, por ter persistido em vencer a indignação a cada

(7)

RESUMO

RICARDO ROSSETTI

JUSTIÇA EM PAUL RICOEUR: UMA HERMENÊUTICA DO HOMEM JUSTO

Esta tese fala de uma hermenêutica do homem justo a partir de uma teoria da justiça presente na filosofia de Paul Ricoeur. Trata-se da compreensão da figura do homem capaz de julgar o outro a partir de parâmetros éticos fundados na solicitude, no respeito e na responsabilidade. O objetivo é o de estabelecer os sentidos da justiça nos três planos de compreensão da individualidade humana do sujeito que julga, a partir da compreensão do eu julgador enquanto um sentido próprio do ato de julgar. Então, a visada ética de uma vida boa com e para os outros em instituições justas torna-se a pedra fundamental para identificação de quem é o homem justo, tanto no plano da mesmidade, como no plano da ipseidade e da alteridade do sujeito que julga uma ação. Essa busca encontra sua justificativa na necessidade lógica e dialógica de compreender como se dá o julgamento de uma ação quando o que está em jogo é saber quando ela será considerada injusta ou justa. Para tanto, segue-se a leitura dos textos ricoeurianos, principalmente, a dos escritos dos últimos trinta anos, para verificar quais as reflexões que Paul Ricoeur desenvolveu acerca do tema: espera-se encontrar, ao menos, o fio condutor de uma reflexão que possa levar o leitor a compreender quem é o sujeito moral de imputação e quais são suas responsabilidades pelos atos praticados, quando estes implicam em um poder de decidir e agir sobre vidas, vontades e desejos. Ao final, encontra-se a trilha de uma reflexão sobre quem é aquele que julga e age sobre o outro, sob a perspectiva de uma visada ética que compreende o sujeito que julga uma ação como um homem capaz de justiça, mas falível em seu empreendimento.

(8)

ABSTRACT

RICARDO ROSSETTI

JUSTICE PAUL RICOEUR: ONE MANS FAIR HERMENEUTICS

This work deals with the in Paul Ricoeur developed Justice philosophy theory based in the hermeneuthics of judge decisions. The understanding of such concept leads to the investigation of man’s ability to judge (decide) on the basis of ethical values and trustful behaviour as well. The Thesis main purpose is the identification of the three levels of elements that contribute to bring the sense of

justice’s goodness forward. Therefore, it’s necessary to observe the justice making process, ie, the judge as a man able to recognizes his act as one among the possibles good-will acts. Further, the ethic component to be considered and

pursued through a sense of life’s virtue among individuals categorizeds in and of fair institutions posted as turning points to identify who is the righteous man

– no matter the level of eveness and uniqueness of one who decides. This quest is justified by logical and dialogical processes focused in the awareness of how a decision act (judgement act) can be recognized as a fair or unfair. Paul Ricoeur philosophy especially his latest years issues reflects his concern in the urgency to unveil the mechanism of judicial decision making, whose consequences go far beyond someone ordinary life. Paul Ricoeur thought emerges the discussion

of an ultimate men’s justice as a result of a complex (social, economic, political, cultural etc) system, which core is haunted by the inherent human weakness and vicious narroness to capture the essence of God’s justice creation.

(9)

EPÍGRAFE

44. Por certo, fizemos descer a Tora; nela há orientação e luz... E quem não julga conforme o que Allah fez descer, esses são renegadores da Fé.

45. E nela [a Tora] prescrevemo-lhes que se pague a vida pela vida e o olho pelo olho e o nariz pelo nariz e a orelha pela orelha e o dente pelo dente, e, também, para as feridas o talião. Então, a quem, por caridade, o dispensa, isso lhe servirá de expiação. E quem não julga conforme o que Allah fez descer, esses são os injustos” (Alcorão, Súratu Al-Mái’dah, parte 6 – p. 180).

“une fonction majeure du droit est le traitement des conflits

et la substitution du Discours à la Violence; tout l’ordre judiciaire peut être placé sous l’égide de cette substitution. La

coupure avec la violence s’exprime par l’institution du procès comme cadre d’une répétition symbolique, dans la dimension

de la parole, de la scène effective de la violence.

“Cette institution présuppose l’émergence de plusieurs

(10)

SUMÁRIO

Resumo, 07 Abstract, 08 Abreviações, 11 Introdução, 12

1. As dimensões da idéia de justiça e a concepção puramente processual: entorno da indignação e a busca pelo sentido do justo, 33

1.1 Vida, realidade e hermenêutica da justiça, 35

1.2 Dimensões conceituais da idéia de justiça: prelúdio para a revisão contratualista de John Rawls, 40

1.3 A propósito de uma teoria puramente processual da justiça: entre a possibilidade democrática e a perda dos princípios de justiça, 57

2. Itinerários do justo: identidade ética e desejo de justiça, 81

2.1 Itinerários do justo: estima de si, solicitude-respeito e responsabilidade, 86

2.1.1 Visar a uma vida boa e o sentido do bem como Estima de Si, 95

2.1.2 Visar ao bem, com e para os outros: o lugar da solicitude e da amizade para consigo-mesmo, para com o próximo e para com o distante, 105

2.1.3 Visar ao bem em instituições justas, caminhos do Respeito e da Responsabilidade, 114

2.2 Os sentidos da justiça e a demanda por uma identidade ética: do sentimento de indignação ao desejo pelo justo, 121

2.2.1 Visar ao bem: desejo, vontade e obrigação, 123

2.2.2 Entre um poder-em-comum e um poder-sobre: solicitude e indignação, 125 2.2.3 A promessa: entre desejar o justo e fazer justiça nas instituições, 128

3. Em busca do homem justo: um sujeito que julga, sua fala e suas promessas,

134

3.1 Identidade e ação na práxis do homem justo, 137

3.2 História e narração na constituição do homem capaz de ações justas, 153

Acerca de uma conclusão – Uma hermenêutica do homem justo: a dimensão ética de sua responsabilidade pelo outro, 177

(11)

ABREVIAÇÕES

AJ –Amour et justice

CC –A crítica e a convicção

EF –Na escola da fenomenologia

J2 –Le juste 2

JJE –Le juste, la justice et son échec

L1 –Lectures 1

MM –Da metafísica à moral

MO –La mémoire, l’histoire, l’oubli

OJ –O justo

PR –Percurso do reconhecimento

SA –Soi-même comme um autre

TR –Temps et récit

(12)
(13)

1

I

NTRODUÇÃO

Uma peregrinação entre dois mundos

Um estudante de Direito, ao dar seus primeiros passos na trilha da

tradição dos estudos jurídicos, depara-se com aquilo que pode se revelar como um

dos problemas mais persistentes e inquietantes da Teoria Geral do Direito e da

Fi-losofia do Direito: a questão da justiça. Qual o conceito de justiça? Como defini-la?

Qual o seu campo de aplicação? Em que condições um ato, praticado conforme

determinada prescrição normativa jurídica, poderia ser considerado como um ato

justo, mesmo quando o conceito de direito exige apenas a validade lógico-formal

como quesito de legitimidade? Seria o justo um atributo exclusivo do ato material

ou também da norma prescritiva de conduta? Haveria normas justas? Como

con-ceber, em relação ao direito, um sentido adequado de justiça, em face do que

pre-tenderia uma teoria da ciência jurídica positiva, segundo a qual o conteúdo

norma-tivo do Direito significaria apenas uma “tecnologia de decisão”?

Um aprofundamento do estudo das relações entre o conceito de

di-reito e o problema da justiça se torna cada vez mais necessário para que haja a

a-dequada compreensão da ampla margem de discussão que delas emerge. No

en-tanto, o objetivo da tradição de construir uma ciência jurídica positiva faria surgir e

aumentar um distanciamento abismal entre aquelas relações. Isto, dada a

impreci-são ou inconsistência lógica dos pressupostos de argumentação das teorias que,

(14)

2

problema da justiça como um problema racional para o Direito: a questão da

justi-ça era apresentada, a cada oportunidade, como um problema incômodo no campo

central das reflexões jurídicas porque somente dificultava a construção de um

campo de conhecimento jurídico estável; por sua vez, tal campo não se apresentava

capacitado para precisar conceitualmente a questão da justiça como parte da teoria

e o objeto de estudos do Direito, o que resultava num afastamento do problema em

direção à Filosofia (ou mesmo, da Filosofia do Direito) e no seu isolamento na

órbi-ta de uma razão meramente contemplativa. A questão da justiça ficaria, então, cada

vez mais adstrita às margens dos problemas práticos, como se cada vez mais não

houvesse interesse pela aplicação prática da idéia justiça nas soluções judiciais.

Portanto, ao campo do direito não deveria pertencer o problema da justiça, uma

vez que ele escaparia de uma razão jurídica dogmática e universal1, capaz de lhe

determinar positivamente um sentido unívoco.

Eis a conseqüência de uma concepção positivista de Direito,

se-gundo a qual justo é estar em conformidade com as normas jurídicas, a partir de

um processo lógico de subsunção dos fatos às regras. Segundo Kelsen, sobre o

uni-verso normativo do direito não pode incidir qualquer juízo de valor, uma vez que

não é possível a validade (objetiva) equivalente entre normas positivas e normas

de justiça (então compreendidas como aquelas normas de valor próprias da ordem

moral). Isso porque uma depende da sua relação lógica com o sistema normativo

de comandos, enquanto que a outra depende da relação entre a conduta e a

natu-reza da ação. Desse modo, para Kelsen, um sistema de direito positivo não suporta

normas de valor, onde, de acordo com o seu cumprimento ou sua desobediência,

sejam consideradas valorosas ou desvalorosas. Para o referido autor, não há de se

1 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007. P. 365 e

366. Diz o autor quanto ao tema „Direito e justiça‟: “O problema que se enfrenta é de saber se e-xiste alguma forma de razão, totalizadora e unificadora, que seja para o direito uma espécie de

(15)

3

falar de “valores valorosos” ou “desvalorosos”, o que justifica falar da ausência

dos sentidos da justiça num sistema de direito positivo2.

Nessa perspectiva, somente é possível uma concepção do direito

como ordenamento jurídico, positivado por normas vigorosas e válidas, sem

espa-ço para questões de cunho axiológico. Somente esse caráter de positivação da

con-duta, mediante enunciados coercitivamente impostos, já é suficiente para provocar

o fechamento do campo da reflexão jurídica para as questões de cunho

hermenêu-tico-axiológico, dentro do qual se encontraria a questão sobre o que é a justiça.

Di-ferentemente do que afirma a tradição positivista do direito, pensar a justiça

deve-ria significar abrir-se para as questões humanas subjetivas e concretas, e não

fe-char-se na lógica fria e racional de um sistema dogmático de subsunção. No

entan-to, a justiça somente parece encontrar o seu lugar onde a norma jurídica objetiva é

percebida como referencial coercitivo válido e positivamente imposto, de modo

que somente haverá justiça quando a decisão ou a conduta significarem a

obediên-cia formal ao preceito normativo jurídico3. Ainda assim, é possível afirmar que se

trata apenas de um primeiro olhar acerca do que constitui o conteúdo dos estudos

da Teoria Geral do Direito e o problema da justiça.

Então, para o estudante de direito iniciante, uma espécie de “vazio

reflexivo” se cria: por que não seria possível pensar o problema da justiça como um

problema legítimo da reflexão jurídica, e não meramente como problema filosófico,

se o mundo do direito é propriamente um mundo das relações humanas? Um

mundo de anseios e expectativas, de desejos e frustrações, de convicções e

dispu-tas, de perspectivas e dissimulações... Um mundo de capacidades e falhas

2 KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 2. ed. São Paulo: Martins

Fon-tes, 1996 (Col. Ensino Superior). P. 04-07.

3 ROSS, Alf. Direito e justiça. Trad. Alysson Leandro Mascaro. Bauru: Edipro, 2000. P. 326-331. O

(16)

4

nas! Porque se deveria, afinal, sucumbir diante dos pretextos argumentativos

in-terpostos pela teoria do direito positivo?

A impertinência de tal pensamento sobre a questão da justiça –

a-gora, acerca de uma espécie de necessidade de localizá-la não somente como objeto

de reflexão da teoria do direito, mas também como um problema propriamente do

humano –, coloca-se cada vez mais para fora dos limites das teorias

dogmático-positivas, além de causar angústia diante de uma transfiguração retórica de temas

como „direito e justiça‟,„direito ou justiça‟ou mesmo „direito é justiça‟. Emerge

cele-remente um apelo necessário à Filosofia, como via de reflexão acerca do problema

da justiça, o que tende a distanciar aquele estudante de direito cada vez mais das

trilhas rijas e indiferentes do pensamento da teoria dogmática e positivista do

di-reito, cada vez mais silentes acerca do que se poderia entender como justiça. Se a

ortodoxia da tradição dogmático-jurídica impossibilita a criação de um espaço para

reflexões do tipo hermenêutico-axiológico, e isso a partir de uma dupla

justificati-va, tanto de um legalismo necessário para garantir o respeito de direitos

individu-ais e coletivos – uma tal garantia jurídica –, como da necessidade de se transformar

o saber jurídico em ciência positiva do direito, o campo filosófico apresentse

a-berto para a possibilidade de se vislumbrar, ainda, uma Ética capaz de dar conta

da questão da justiça, sem ideais ou pretensões científicas, num mundo concreto e

propriamente humano. Nesse trajeto inicial os horizontes dogmático-positivistas

passam a ser cada vez mais preteridos como objeto de reflexão, em detrimento

mesmo de uma formação jurídica mais tecnológico-jurídica, e o que se busca é uma

reflexão mais adequada para uma filosofia das ciências humanas, que considerasse

o homem e suas ações como um verdadeiro epicentro de reflexões acerca do que é

o injusto e o justo.

Então, o estudante de direito segue agora os seus estudos no

uni-verso da Filosofia. O objetivo ainda é o de compreender os caminhos que levavam

aos distanciamentos entre o humano e seus ideais, os que determinam algum valor

(17)

co-5

mo alguém capaz ou incapaz de agir segundo determinados princípios de justiça.

Para tanto, buscar na Hermenêutica os subsídios para o desenvolvimento dessa

reflexão é fundamental: surge pela primeira vez os contatos com a filosofia e a

Hermenêutica do Si de Paul Ricoeur. A possibilidade de recuperar uma reflexão

acerca dos sentidos da justiça, a partir de uma filosofia do sujeito e da ação que

pondera a questão das capacidades humanas, se revela como possibilidade de

re-encontrar uma ponte de ligação entre a teoria do direito e a questão da justiça,

den-tro de um mesmo plano de reflexões: o horizonte filosófico da tradição

hermenêu-tica emerge, assim, da promessa de encontrar uma via comum, que me permita

compreender o jurídico e o justo enquanto aspectos de um mesmo problema: o

hu-mano.

A respeito de que filosofia do humano? A respeito de que reflexão?

Dizer algo a respeito da filosofia ricoeuriana consiste em

submer-gir nas reflexões do autor e surpreender-se rendido na trama de suas indagações

sobre quem é aquele que fala, age, narra e se responsabiliza, ou, simplesmente,

quem é afinal aquele que somos na fala de um discurso.

Como uma investigação acerca de uma filosofia do sujeito, que

clama por um esclarecimento por parte daqueles que falam e a respeito daqueles

de quem se fala no discurso, o estudo de uma escritura, dos atos de fala ou mesmo

de um discurso exige, antes de qualquer coisa, uma identificação acerca de alguém

que narra, de um ser falante ou de um sujeito da reflexão. E no curso da presente

tese identificar esse quem requer saber como se colocar na atividade do

pensamen-to, não somente como um narrador, mas principalmente como um sujeito de

refle-xão, como alguém capaz de falar acerca de. Eis a primeira grande dificuldade e o

pri-meiro grande desafio encontrado no início deste trabalho: como melhor

corres-ponder a um labor filosófico tão meticuloso e austero, como o de Paul Ricoeur, sem

correr o risco de proferir um discurso em dissintonia com o do autor, sem trair a

(18)

solipsis-6

ta e incompatível de pensar a questão do sujeito no momento em que a reflexão

filosófica se coloca? Quer dizer, como entoar um discurso acerca da filosofia

rico-euriana, de acordo com a maneira de pensar e de compreender do autor, sem

de-senvolver um pensamento incompatível ou mesmo contraditório com sua

propos-ta? A busca por uma via comum, por um mesmo canal de acesso, que permitisse

reunir num mesmo plano – num mesmo campo de pensamento –, tanto o

proble-ma da justiça e do justo como uproble-ma teoria acerca do que é o direito, consistiria de

fato numa busca pela compreensão de quem somos, ou de quem nos tornamos,

enquanto sujeitos de reflexão, que indagam a si mesmo como alguém capaz de

jus-tiças e de injusjus-tiças. É preciso saber-se como sujeito de reflexão, como alguém que

ao falar a respeito do injusto ou do justo é, antes de tudo, alguém capaz de agir

con-forme seu próprio pensamento, isso por se identificar nele, por se reconhecer como

alguém capaz, ainda que falível. E quem é essa pessoa que fala de si mesmo

falan-do falan-do outro e de um munfalan-do comum? Tal indagação quer compreender quem é a

pessoa que se identifica com um discurso presente, que trata de uma filosofia da

ação responsável (como a de Paul Ricoeur).

Sobre alguém que fala nessa tese

Conforme as tradições metodológicas acerca da composição de um

trabalho acadêmico, que no geral exige que o discurso seja construído na terceira

pessoa – isso com a finalidade de conferir neutralidade e objetividade ao conteúdo

apresentado –, o tom (o sentido) do presente discurso, conferido pela pessoa que o

rege, é fundamental para a composição daquilo que constitui o objeto da presente

tese: uma filosofia do sujeito e da ação, aliada à busca da compreensão dos

senti-dos da justiça em face daquele que julga uma dada situação (o que, no âmbito do

Direito, é geralmente identificada na composição do litígio processual, que é

sub-metido à apreciação do Poder Judiciário, isto é, um terceiro de uma relação

discur-siva, o juiz de direito). Então, pensar os significados possíveis do injusto e do justo

(19)

7

de conflito de interesses: é pensar-se a si mesmo como aquele que julga (um eu

jul-gador) e como autor de uma ação (o praticante de uma conduta) sob julgamento, é

ocupar logicamente papéis e lugares diferentes num processo dialógico entre duas

pessoas distintas (algo próprio da relação eu-tu).

A busca da identificação da pessoa que fala expressa a

possibilida-de ontológica e fenomenológica possibilida-de afirmar o que é falado e, principalmente, quem

fala, ora como uma experiência do mundo, que pode ser compreendida em termos

de consciência de si e consciência do outro, ora como uma vivência egologicamente

circunscrita na consciência de si pela consciência do outro. Nessa dialética, é

possí-vel a comunicação de algum sentido acerca da compreensão dos sentidos da

justi-ça, a partir de uma hermenêutica ricoeuriana do si, o que deverá ocorrer em termos

de identificação de uma consciência ética de responsabilidade pelo outro. Isso

por-que falar sobre a por-questão da justiça sob o enfopor-que ricoeuriano significa colocar-se

como alguém capaz de pensar a justiça, de um modo justo, ao menos de acordo

com o modo hermenêutico de compreender-se a si mesmo proposto por Ricoeur: um

modo de responsabilizar-se substancialmente pelo outro a partir de uma

compre-ensão de si mesmo. Portanto, a presente tese deve ser lida não somente como um

relato ou uma reflexão acerca da filosofia de Paul Ricoeur, mas também como uma

busca pela compreensão acerca de quem se é nesse trajeto de reflexão, em face das

provocações filosóficas suscitadas pelo autor: daí a dificuldade declarada de

en-frentar a filosofia ricoeuriana e nela identificar-se como parte de um mesmo modo

de pensar.

Entre identificar-se e indignar-se: “Injustiça... Indignação!”

Um indivíduo em busca pela compreensão de si – uma busca por

tal identidade. Ele espera encontrar-se, encontrar-se a si mesmo, ou encontrar algo

tal como o que ele espera de si. Sentir-se-á satisfeito se realizar tal intento, pois será

como ter aportado num lugar seguro e seu, um lugar próprio onde nada ameaça

(20)

8

que lhe permita identificar a si mesmo como aquilo que ele pensa de si. Um sinal,

uma marca, qualquer referência de continuidade de seu ser no mundo. Ele precisa

encontrar-se e reconhecer-se nesse encontro.

No entanto, ele encontra a outro, algo até familiar, mas ao mesmo

tempo estranho. Interessa-se por ele, perscruta-o, estranha-se com ele.

Decepciona-se e frustra-Decepciona-se por não ter encontrado a si mesmo como pensara, mas somente a

outro, algo estranho de si. Um algo distinto, diverso, diferente. O encontro desse

outro não lhe faz sentir satisfação, pois é simplesmente um outro. Nada mais. É

apenas o diverso de si, ao menos diverso daquilo que imaginava ser-lhe mais

pró-prio, do que imaginava de si como algo melhor: ao menos, como alguém mais

ca-paz.

Então, esse indivíduo passa a viver a penúria de uma vida

dividi-da: ele vive entre o que procurava perpetuar de si como sua melhor porção – uma

expectativa –, e o que reconheceu como seu ser naquele momento em que

vislum-brou em si mesmo um algo diferente do que planejara para si – uma nova

perspec-tiva. Em face da insatisfação pelo frustrado desencontro, esse encontro com algo

estranho de si, um desespero se instala n‟alma, estabelecendo uma frenética busca

por tudo aquilo que lhe possa assegurar estabilidade, continuidade, permanência.

O indivíduo buscará, então, compreender sua própria identidade: o estranho de si

mesmo.

Ele tentará se apossar de tudo o que puder para constituir o seu

mundo como algo estável e próprio. Não poupará esforços, nem se sujeitará

facil-mente aos limites convencionais. Tudo o que for preciso para adequar o estranho

espaço encontrado às suas expectativas, ele o fará. A apropriação e a conquista

tor-nar-se-ão os novos componentes de elaboração de sua identidade, agora de uma

identidade adstrita a um imaginário conturbado por sentimentos de insatisfação. O

que não lhe pertence não o satisfaz, o que lhe é próprio não é suficiente.

Insatisfa-ção ou indignação, eis o novo princípio de sua condição humana no mundo. Esse

(21)

9

e angustiado por sua insatisfação, torna-se uma voz que grita alto, que quer se fa-zer ouvir. E que melhor maneira de se fafa-zer ouvir que pelo grito de “Injustiça!”?

O insatisfeito – esse sujeito indignado – é um injustiçado. Seja

nu-ma perspectiva filosófica, política ou jurídica, o indivíduo insatisfeito com sua

pró-pria diversidade – com aquilo que ele passa a estranhar em si mesmo – clama por

justiça e buscará de alguma maneira compensar a diferença resultante de seus

de-sencontros consigo mesmo: buscará compensar o desencontro entre suas

expectati-vas e sua nova perspectiva de si mesmo. É importante observar que essa

diversi-dade é muito mais um sentimento próprio de estranheza – (a insatisfação,

propria-mente dita, que se expressa no mundo – moral – como indignação!), por não

conse-guir reconhecer-se a si mesmo como alguém capaz de agir conforme seus próprios

desejos e satisfações, e isso, no seio familiar da aceitação pelo outro –, que uma

no-ta positiva acerca do diverso, como uma possibilidade de ser diferentemente

den-tro de uma ordem conservadora e alienante de valores e de anseios comuns.

Trata-se, pois, de uma espécie de fuga da própria condição – então, compreendida pelo

próprio sujeito como deficiente –, com a finalidade de lhe proporcionar uma

com-pensação. É assim uma espécie de vazio emergente de uma perda, ainda que

parci-al, ou superficiparci-al, ou temporária, da própria identidade: da identidade de um

sujei-to capaz de agir ou de viver justamente, que falhou em seu intensujei-to.

Ser tornado igual a outros e torná-los iguais a ele, eis o sentido que

passa a ter a sua régua niveladora da vida: tornar igual é o maior ato de justiça, o

derradeiro passo em direção ao apaziguamento de sua insatisfação. O indivíduo

insatisfeito com o reconhecimento de sua identidade é, pois, um indivíduo

injusti-çado porque ele toma a desigualdade decorrente da relação entre suas expectativas

e suas perspectivas como o motivo de sua indignação. Eis sua maior insatisfação:

não ser quem se pensa ser, não ser quem se compreende ser. Razão pela qual é de

certa noção de igualdade que surge a busca pelo justo no âmago das ações

(22)

10 Em sua reflexão hermenêutica, Paul Ricoeur desenvolve uma

filo-sofia do sujeito e da ação em torno da questão de como compreender a vontade

humana e o mal: eis o gérmen do tema da visada ética, quando se fala dos sentidos

da justiça. O objetivo da presente tese é buscar a compreensão ética da ação e dos

sentidos da justiça a partir de uma hermenêutica ricoeuriana do justo. Segundo

Ricoeur, a partir de uma dada visada, a ação pode ser predicada como boa ou como

obrigatória, se ela se apresenta sob o modo da descrição ou da prescrição. No pri-meiro caso a visada ética se apresentará como a estima que o indivíduo faz de si

mesmo, pensando em si mesmo e como um outro de si, o que o autor chamará de

estima-de-si (algo relacionado ao amor próprio por si mesmo e ao amor pelo ou-tro). No segundo, a visada ética cede lugar a um momento normativo, quando a

conduta do indivíduo será obrigatória e a obediência a essa conduta decorrerá do dever que o próprio indivíduo tem de se colocar no lugar do outro e tratar o outro

como a si próprio, de acordo com uma regra de reciprocidade. Nesse caso a ação será chamada de respeito-de-si. Entre ambos os modos da ação ética, está a

narra-tiva como constituinte do processo de compreensão do sujeito: a passagem do

vo-luntário ao necessário em meio à reflexão que ressente o injusto como sentimento

trágico da ação, isto é, como indignação. Visar uma „vida boa‟ com e para o outro

em instituições justas é a visada ética que se busca compreender na tensão entre a descrição e a prescrição de uma ação. E a sabedoria prática decorrente da ação é o

cálculo resultante da experiência narrativa que fala da indignação perante o injusto, que baila entre a estima e o respeito de si. Por fim, o justo se expressa nessa tensão

como um desejo pelo justo extremamente potente, algo que muito se quer e para o

qual toda a energia vital é voltada, algo com o qual o indivíduo quer se reconhecer,

algo pelo qual o indivíduo se compreende digno e pleno. Desejar o justo da ação é

almejar um horizonte de equilíbrio entre as expectativas frustradas e a nova

pers-pectiva de si mesmo. Para tanto, é preciso encontrar um referencial capaz de

apla-car os sentimentos oriundos do sentido de injustiça, o que se encontrará, segundo

(23)

11 atribuíveis aos casos em situação de desequilíbrio (casos que requerem algum tipo

de compensação).

Por uma hermenêutica do justo: acerca de qual tradição?

Tratar do tema da justiça requer uma reflexão que dê conta da

teo-ria e da prática da justiça. Mais especificamente, da teoteo-ria e da prática do ato de

julgar, tanto no âmbito das relações pessoais, quanto no das institucionais. Isso

porque uma sem a outra torna a reflexão sem propósito e descabida para uma

compreensão adequada dos sentidos de justiça (ou mesmo dos sentimentos de

jus-tiça). Se nos detivermos somente aos aspectos teóricos, corremos o risco de

conce-ber uma noção meramente ideal de justiça, o que não serviria para compreender os

seus respectivos sentidos, porque estes se revelam na vida vivida.

Os sentidos da justiça – o injusto (o que se configura através dos

sentimentos de indignação) e o justo (ou um desejo pelo justo, como algo que se

an-seia e objetiva como modo de compensação, de acordo com o que Ricoeur chamou

de visada ética) – ocorrem na vida do ser no mundo, na existência, no cotidiano

da-queles que buscam se reconhecer no mundo e se satisfazer com esse

reconhecimen-to. Sem levar esse aspecto em consideração, a concepção de justiça torna-se um

elemento puramente ideal e lógico e, portanto, um elemento meramente racional,

sem ter qualquer relação prática com os sentidos e sentimentos propriamente

hu-manos. Ora, segundo ensina Paul Ricoeur, a justiça é algo que pode ser sentido,

expressa com um sentimento que eclode na vida do sujeito como satisfação pessoal

por essa vida (quando o indivíduo reconhece-se a si mesmo no mundo como

al-guém para quem há a justiça). Há, portanto, uma porção racional e outra,

irracio-nal, no clamor da justiça (a exaltada “voz dos injustiçados”, presente nos textos

rico-eurianos), não podendo uma porção prescindir da outra. Isto sugere, desde já, que

a busca pelos sentidos da justiça requer uma composição harmonicamente

ade-quada de ambas as porções do ser humano – a racional e a irracional –, não

(24)

12

proporção mesma dos níveis de satisfação do que se deseja como justo numa vida.

Trata-se mesmo de um cálculo ético, fundado nas capacidades humanas de agir

por uma finalidade eticamente legítima e nobre, conforme uma natureza que lhe é

própria; um cálculo que se perfaz não somente numa razão contemplativa, mas

também numa razão prática (por que não, num praticar mesmo a vida?!). Eis a

ne-cessidade de uma perspectiva prática para a teoria.

Por outro lado, quando se volta o olhar para a prática da Justiça –

então, considerada como a prática judiciária do “dizer o direito” para os sujeitos

em conflito de interesses, com a finalidade de estabelecer a justa distância que lhes

garanta a medida exata de seus méritos no mundo da práxis e o mútuo respeito de

suas individualidades (ou seja, a prática como jurisprudência) –, é possível perceber

a falibilidade humana nas decisões: o ser humano capaz de julgar (tanto o julgador

de fato como o juiz de direito) aliena-se do caráter humano de sua prática e por

força da própria lógica de sua atividade, provoca a objetivação dos discursos,

quando os articula estritamente como preceitos lógicos próprios de um determina-do “jogo de linguagem”4 e justapostos conforme suas regras próprias de

composi-ção, de acordo como um dado procedimento de subsunção. Nessa direcomposi-ção, a “Ju s-tiça”, no nível das instituições públicas, não faz justiça como almejaria uma razão

contemplativa! Talvez porque a prática judiciária tenha de depreender tanto

esfor-ço para compreender os problemas próprios da linguagem jurídica, fortemente carregada por aquela tal “tecnologia de decisão” antes mencionada, que uma refle-xão em prol de uma sabedoria prática, potencialmente capaz de fazer justiça, acaba

sendo condenada ao tártaro do “esquecimento”: a tensão entre a letra da lei e a

práxis retórica e argumentativa da linguagem técnico-jurídica forçam a emergência

de um exercício argumentativo e hermenêutico sobre um juízo acerca do que é o

injusto e o justo no caso em situação. Consequentemente, a prática da Justiça perde

4 Aqui, toma-se por empréstimo a expressão “jogo de linguagem” no sentido tal como proposto por

(25)

13

substância e restringe-se à lógica do discurso, prescindindo de uma teoria

suficien-te para lhe fundar um sentido de justiça que faça jus ao que a razão julgadora é

capaz de conceber. Então, se a teoria sem prática corre o risco de se tornar

ideolo-gia, a prática sem teoria pode se tornar apenas um falatório lógico (e deontológico)

desprovido de sentido, isto em face de uma demanda qualquer de justiça. Eis a

necessidade de uma perspectiva teórica para a prática.

Então, partindo do pressuposto de que uma pesquisa acerca do

tema da justiça requer aliar a teoria filosófica à prática jurisprudencial,

procurar-se-á, na presente tese, compreendê-lo a partir das orientações filosóficas propostas na

filosofia de Paul Ricoeur, considerando por vezes as possibilidades de identificação

do contexto histórico e da realidade concreta onde o tema da justiça é discutido.

Afinal, de nada adiantaria pensar a justiça num arcabouço de elucubrações

abstra-tas ou mesmo desprovida de qualquer aplicabilidade possível no mundo da vida.

Porém, na presente tese não se trata de uma pesquisa empírica, de qualquer

natu-reza, mas de uma verificação da razoabilidade dos fundamentos da idéia de

justi-ça, a partir da compreensão de seus sentidos: o injusto e o justo. Então, diante da questão “acerca de qual tradição?” a opção é por uma via de tensão entre a teoria e a prática, entre duas orientações de reflexão, onde uma hermenêutica do justo se

de-senvolve como uma compreensão contemplativa e prática dos sentidos da justiça.

Ocorre que a tradição jurídica positivista, que se formou no final

do século XIX e ao longo do século XX, principalmente, a partir do normativismo

kelseniano e das influências da filosofia analítica na teoria da linguagem, fez com

que o tema da justiça seguisse, basicamente, dois destinos na história do

pensa-mento jurisprudencial: ou foi relegado dos estudos de teoria geral do direito a

elu-cubrações impraticáveis e se transformou em questão filosófica secundária para a

ciência do direito, ou se deteve a circunscrições intelectuais de caráter sociológico e ideológico, bem distantes da pretensão de se fundar uma “sabedoria prática” que pudesse servir de modelo razoável e concreto do que é o justo nas decisões. Ao que

(26)

14

que se revela esvaziado de sentido do ponto de vista prático, se tornou o único

momento de aparecimento do referido tema e, consequentemente, as práticas

judi-ciárias de solução de conflitos de interesse – próprias do mais alto grau de um

Po-der Judiciário – quando muito se tornaram meramente uma tecnocracia política do

direito dotada de relativa capacidade de argumentação. Ou seja, a busca pelo

uni-versalismo conceitual da idéia de justiça, até mesmo sob o pretexto de garantir a

segurança jurídica das relações sociais, conforme o que os Ordenamentos Jurídicos

modernos passaram a rezar, pagou um alto preço diante do reclame social.

Criou-se uma imensa máquina de produção de Criou-sentenças que encontrava na estrutura da

linguagem seu combustível e seu propósito. Com isso, as finalidades do ato de

jul-gar foram preteridas em favor do rigor semântico e retórico dos discursos políticos

dos quais os mais altos tribunais passaram a ser o porta-voz. O bom julgamento

passou a ser o discurso de política judiciária, adequado à linguagem do momento

em que ele é proferido. Então, o problema da justiça adquiriu uma nova

configura-ção: quem determina o momento do julgamento? Quem julga? Quem é o julgador?

Como esse alguém julga e segundo quais critérios? Mas e quanto à questão “para quem é o justo?”? A justiça poderá ser considerada como um bem a ser efetivado, concretizado, materializado no mundo da vida? Não caberiam aos membros da

sociedade, de alguma maneira, segundo os princípios de justiça determinado no

contrato social, determinar o conteúdo possível, as formas e os critérios dos juízos

em situação (das decisões judiciais)?

Frisa-se que o objetivo desta tese é desenvolver uma compreensão

ética de como a filosofia do sujeito e da ação de Paul Ricoeur pode contribuir para

a constituição de uma hermenêutica da justiça, ou, mais propriamente, de uma

hermenêutica do injusto e do justo. Daí, uma investigação acerca do tema da justiça

deverá se desenvolver a partir da constituição de um “eu” julgador, assim

conside-rado como pressuposto de uma reflexão prática acerca dos sentidos do injusto e do

justo, inerentes ao humano no mundo da vida. Esse trajeto deverá se desenvolver

(27)

15

da ordem social, jurídica e ética; com a compreensão hermenêutica das

proprieda-des do sujeito de justiça, na ordem das relações pessoais e sociais; e com a

identifi-cação desse sujeito enquanto homem capaz-falível de realizar ações justas (e

injus-tas). Trata-se, assim, de promover a passagem de uma concepção universal e vazia

de justiça – infundada pela ausência de uma reflexão que associe a teoria à prática – para uma compreensão concreta dos sentidos do injusto e do justo, a partir de uma hermenêutica que possa ser crítica da tradição cartesiana de constituição do

sujeito. No caso da presente tese, com a vista à constituição de um sujeito-que-julga

ou, simplesmente, de um eu julgador5.

Pensa-se encontrar na filosofia de Paul Ricoeur os elementos

ne-cessários para o desenvolvimento dessa reflexão proposta. A presente tese partirá

da idéia de que o problema da justiça é, fundamentalmente, um problema de

iden-tidade, de ausência de ideniden-tidade, de uma identidade por reconhecer. Esse

pro-blema desenvolve-se na base de uma reflexão acerca dos sentidos da justiça, num

contexto de ações e de escolhas próprias da vida social onde a responsabilidade do

julgador emerge de uma necessidade ética: a de se reconhecer na pessoa daquele

que sofre com o ato de julgar, ou porque está sendo julgado pelos atos praticados e

que resultaram numa consequência prática contra alguém, ou pelos atos sofridos

em razão daquele que o fez sofrer. Os temas da justiça e do justo são inerentes as

reflexões desenvolvida por Ricoeur, ao longo de toda a sua trajetória intelectual,

principalmente nas duas últimas décadas de sua vida, quando se dedicou a pensar

a teoria da ação a partir do prisma do sujeito do discurso. Por sua vez, esse

pro-blema de não-identidade, como se verá mais adiante, é também um propro-blema de

5 A expressão eu julgador não é própria de Paul Ricoeur. Ela foi cunhada com o propósito enfatizar a

(28)

16

cognição. Mais especificamente, é um problema de reconhecimento de si, para

di-zê-lo em termos ricoeurianos. Razão pela qual se buscará analisar a concepção de

reconhecimento de si e de sujeito do reconhecimento de si, a partir daquilo que o

autor desenvolve em Percurso do reconhecimento (2006), de acordo com uma

pers-pectiva acerca das capacidades humanas.

Um trajeto para a presente tese

A tese foi estruturada em três partes, terminando com algumas

considerações que não se pretendem as últimas sobre o problema da justiça. É

pre-ciso lembrar que se trata de uma reflexão acerca da capacidade e da falibilidade

humanas no ato de julgar, em face dos sentidos da justiça: o injusto e o justo. Em

cada uma dessas etapas o tema da justiça é abordado como um problema

herme-nêutico que busca compreender os sentidos da justiça, mas sob prismas diversos e

de acordo com os aspectos apresentados na abordagem do tema desta tese. Na

primeira parte da tese (Capítulo 1 – As dimensões da idéia de justiça e a concepção

pu-ramente processual: entorno da indignação e a busca pelo sentido do justo), trataremos do

tema da justiça a partir de dois enfoques: um moral e outro, ético. Sob um enfoque

moral, a justiça é concebida como pressuposto deontológico de um procedimento

processual de averiguação e de entendimento da ação (do comportamento

huma-no), isso conforme um dado sistema jurídico, o que é politicamente determinado

pelas leis. Sob o enfoque ético, a justiça é concebida como uma idéia que apresenta

variações conforme os valores e juízos possíveis de serem correspondidos aos

ca-sos em situação, isto é, aos conflitos de interesses, conforme os estigmas

axiológi-cos mais razoáveis de uma dada época. Para explicitar melhor essa dicotomia da

idéia de justiça entre o moral e o ético, Paul Ricoeur busca em Uma teoria da justiça

os elementos teóricos fundamentais em que John Rawls se apóia para desenvolver

uma concepção de justiça puramente processual. Segundo o autor americano, é

preciso reunir a lição política ensinada pelos pensadores modernos à necessidade

(29)

17

social. Essa reunião deveria ser capaz de garantir a perpetuação de um conceito de

justiça fundamental, reconhecido a cada geração como o princípio historicamente

suficiente para o desenvolvimento político, moral e econômico da sociedade, sem

que fossem possíveis os questionamentos acerca de sua validade material (de um

sentido substancial). A compreensão das dimensões da idéia de justiça e da

con-cepção puramente processual de justiça, assim como fora desenvolvida por Rawls,

requererá o desenvolvimento de cinco etapas de estudo: a identificação dos planos

de vida e da realidade da vida a partir de uma hermenêutica da idéia de justiça; a

compreensão das dimensões conceituais da idéia de justiça a partir do estudo da

tradição política moderna e do estudo da revisão conceitual que John Rawls faz

dessas teorias; a verificação da possibilidade da proposta de Rawls em face do

ris-co de perda histórica dos sentidos dos princípios da justiça; uma ris-compreensão a

respeito do que seja a falta de sentido na idéia de justiça, conforme a teoria de John

Rawls, e a crítica que Ricoeur faz ao excesso de “formalismo” em Uma teoria da

jus-tiça; e, por fim, a compreensão da aporia decorrente da proposta rawlsiana de uma

concepção puramente processual de justiça, segundo a qual não se pode

compati-bilizar a consciência do ato de julgar com a responsabilidade no ato de julgar. Não

se trata, ainda, de desenvolver uma ampla análise e abordagem da idéia de

indig-nação, nem tão pouco de explicitar todos os sentidos que a filosofia de Ricoeur

possibilita acerca dos sentidos do justo (e do injusto), mas de dar um primeiro

di-recionamento para uma reflexão acerca do que constituirá o justo como atributo de

um homem capaz.

Na segunda parte (Capítulo 2 – Itinerários do justo: identidade ética e

desejo de justiça), a questão de uma identidade ética para o sujeito torna-se o centro

de reflexão acerca da compreensão de um “eu” julgador em seus múltiplos modos

de significação. Na esteira de Paul Ricoeur, buscaremos a identificação do sentido

do justo, ao considerar como parâmetro de reflexão a idéia de ipseidade e a de

es-tima de si. Nessa direção, uma retomada do trajeto filosófico ricoeuriano acerca da

(30)

18 maneira como ele aborda a questão sobre “quem é o sujeito?“, tanto em termos de capacidade, como em termos de falta na ação, para então pensar uma antropologia

filosófica do sujeito da ação, em face dos sentidos da justiça. Trata-se da busca pela

formação de uma identidade, ou ao menos, de um modo de compreender a justiça

como um modo possível de ser humanamente em face do outro (da alteridade),

diferentemente de como proporia uma ética da alteridade como a de Lévinas.

Quatro etapas fundamentais serão desenvolvidas, visando à

com-preensão dessa identidade ética: a identificação do sujeito ricoeuriano como

al-guém-que-julga (um “eu” julgador, enquanto alguém capaz de julgar, tanto a

con-duta própria, como a de um terceiro), porque é capaz de praticar atos consonantes

com uma idéia de justiça; a compreensão da dialética mesmidade-ipseidade e da

dialética ipseidade-alteridade como fundamentos de identificação e distinção da

estima de si e do respeito de si, o que orientaria a construção de uma reflexão

filo-sófica e ética em direção a solicitude-responsabilidade, então considerados como

princípios de uma ética da responsabilidade (e da idéia de justiça); a significação

dos sentidos da justiça, considerados como marcos primordiais da busca e da

ins-tauração do desejo pelo justo, isso enquanto compreensão do caráter ético-moral da

justiça, e a partir da dialética reciprocidade-solicitude; por fim, uma reflexão acerca

da significação filosófica e ética do injusto e do justo na filosofia de Paul Ricoeur.

Todo esse trajeto exigirá, posteriormente, a compreensão das idéias de identidade

pessoal e de identidade narrativa para verificar, na variação e na mutabilidade que

ocorre na refiguração do sujeito capaz, a figuração de um outro de si mesmo como a

ipseidade de um sujeito-que-julga (o julgador). Tal tarefa somente será possível a

partir da consideração da narrativa como expressão do ato do discurso. Assim, o

relato de um juízo, sob uma dada perspectiva teleológica, poderá ser considerado

como um olhar possível sobre o mundo da práxis, cujo pretexto é o de bem falar

acerca dos sentidos da justiça, sobre a indignação e o desejo pelo justo, que emergem

da visada ética da ação. Quer dizer, busca-se falar de bens imanentes à ação, que se

(31)

objeti-19

vo a amizade (e o respeito por si e pelo outro), a partir da estima que o sujeito

pos-sa ter de si mesmo (algo como seu amor próprio). Todavia, se considerado sob um

aspecto deontológico, isto é, considerado como relato de uma obrigação, revela a

narrativa uma prescrição de conduta que visa à fixação de padrões de excelência

para o comportamento, cujas expectativas serão a determinação de

responsabilida-des e a instauração do respeito de si como princípio de reciprocidade (premissas

de um reconhecimento de si e da alteridade).

É a partir da teoria narrativa que Paul Ricoeur desenvolve em

Soi-même comme un autre, que se pretende demonstrar como que se desenvolvem as

referidas dialéticas na visada ética de uma “vida boa com e para os outros”: é a

busca pela compreensão de como a distinção entre o sujeito e o outro de si mesmo

pode colaborar para a compreensão de um plano de vida eticamente razoável, para

o próprio indivíduo que o desenvolve e também para os demais indivíduos que o

acompanham. A importância desse estudo está no fato de que os indivíduos se

di-ferenciam também em função de seus interesses, o que em muitas ocasiões se torna

motivo de divergência e de disputa no plano da convivência social. E, como

salien-tado na primeira parte desta tese, aquele que se percebe em algum tipo de

desvan-tagem no processo de disputas e de conflito de interesses, buscará colocar-se no

mundo da vida como uma voz que não quer calar, como um incessante grito de

indignação “É injusto! Injustiça!”. Somente quando ele desabafa seu sentimento,

então, parece conquistar seu lugar e garantir sua palavra na trama intrigante do

mundo. Esse indivíduo indignado, a pretexto da igualdade e da liberdade que a

visada ética de uma vida boa sugere favorecer, fará com que os princípios de uma

ação sejam alçados a condição de dever moral, fazendo do justo algo “quase”

obri-gatório. Essa obrigatoriedade deverá seu estado ao dever de reciprocidade e a

res-peito de si, então compreendido como solicitude.

Na terceira parte (Capítulo 3 – Em busca do homem justo: um sujeito de

julga, sua fala e suas promessas), o tema da justiça é refletido em face da identificação

(32)

expres-20

são que designa um ato de julgar, uma ação narrativa, um falar algo a respeito de

alguém; e então a identidade desse sujeito-que-julga, ou julgador, é compreendida

como uma identidade narrativa. A identidade do julgador ganha forma e conteúdo

na medida em que ele é identificado como um sujeito de ação, especificamente,

como alguém que age julgando, isso quando é capaz de julgar. O julgador é, assim,

um sujeito histórico dotado de uma consciência moral de dever (a do dever de

jul-gar, impondo um fim a uma tensão oriunda de um conflito de interesses e de

in-dignações); é alguém que se comporta em face de uma regra posta e que aspira

projetar sua compreensão dos sentidos da justiça como uma palavra verdadeira,

como a promessa realizada na palavra dada. Nesses termos, o julgamento é uma

ação, porquanto, produz mudanças na vida dos indivíduos. E se produz

mudan-ças, as faz no espaço e no tempo, abalando a continuidade e a permanência dos

indivíduos no mundo. Isso porque, segundo o pensamento de Paul Ricoeur,

mu-dança é acontecimento; constitui-se como ruptura e efetivação do ser num dado

momento histórico. Nesse sentido, os objetivos serão os de demonstrar como a

fe-nomenologia ricoeuriana da constituição do sujeito da ação contribui para a

identi-ficação da figura do julgador e como que ela contribui para a compreensão de uma

consciência ética e responsável. Em Soi-même comme un autre6, é possível pressentir

uma abordagem que parece culminar nessas questões acerca da consciência ética

do julgador, em face da ação e dos sentidos do injusto e do justo e no ato de

fazer-justiça.

Então, nessa parte da tese buscar-se-á compreender: a contribuição que “os mestres da suspeita” deram a constituição do sujeito que pensa, a partir da crítica que fazem ao sujeito cartesiano; as maneiras de configuração do “eu” na f i-losofia do sujeito e da ação de Paul Ricoeur, desenvolvida em Soi-même comme um

6 RICOEUR, Paul. Soi-même comme um autre. Paris: Seuil, 1990 (Col. Essais). Há uma tradução em

(33)

21

autre, a fim de verificar as possibilidades de constituição da identidade do si do

sujeito-que-julga; como se dá a constituição desse “eu” julgador entre os atos de

descrever e prescrever uma ação; como se dá a identificação desse “eu” julgador na

ascrição de uma ação, e como isso contribui para a determinação da natureza do

julgamento; a relação entre o juízo de valor proferido por um juiz de direito e a

efetivação da decisão judicial como promessa feita e ainda não cumprida; como a

teoria narrativa de Paul Ricoeur contribui para a constituição de uma narrativa

jurídica concebida como o discurso próprio, segundo o problema da promessa e da

regra; como o juiz de direito se comporta na narrativa jurídica e qual a sua

capaci-dade – seu poder – de constituição dos destinos humanos nas relações sociais; por

fim, em que termos o sujeito-que-julga pode se responsabilizar pela realização da

promessa que faz em seu discurso. Ao final dessa reflexão, o que se espera é

com-preender como identificar o julgador como sujeito capaz de agir, decidir e de

trans-formar a vida do outro a partir do princípio do respeito de si.

Ao final da tese (Acerca de uma conclusão – Uma hermenêutica do

ho-mem justo: a dimensão ética de sua responsabilidade pelo outro), o objetivo será verificar,

a partir de qual pressuposto a filosofia da justiça de Paul Ricoeur propicia a

forma-ção de uma consciência ética fundada numa idéia de alteridade, além da respectiva

responsabilidade ética. Trata-se de um retorno ao si do sujeito-que-julga, sob o

modo da sapiência grega, concebida como uma prudência de julgamento, tal como o

próprio Aristóteles concebera quando falava da sabedoria prática da ação.

Por fim, é preciso dizer que o trajeto desenvolvido ao longo desta

tese procurou atender as observações feitas no exame de qualificação, que contou

com valorosas sugestões e correções sugeridas pelos Professores Hélio Salles Gentil

e Marcelo Perine, o que, certamente, em muito contribuiu para esclarecer um

pou-co mais e trazer mais subsídios de reflexão para uma pou-compreensão um poupou-co mais

(34)

22

C

APÍTULO

1

A

S DIMENSÕES DA IDÉIA DE JUSTIÇA E A CONCEPÇÃO PURAMENTE

PROCESSUAL

:

ENTORNO DA INDIGNAÇÃO E A BUSCA PELO

SENTI-DO SENTI-DO JUSTO

Segundo Ricoeur, a vida humana constitui-se da efetivação das

vontades individuais, mas de acordo com dimensões calculadas em razão de

crité-rios apropriados para a condição humana. Então, é na prática das ações, quando

todo um mundo de intencionalidades se coloca, que concebemos o mundo da vida.

Conhecendo suas potencialidades e desejos, os indivíduos descobrem também a

necessidade de se imporem obstáculos e proibições, de modo a garantir sua

pró-pria sobrevivência e a continuidade relativamente satisfatória de suas

individuali-dades, de acordo com aquilo que o autor virá a chamar de plano de vida justa7. Ora,

a partir dessas nuanças da práxis, como aparecem na proposta ricoeuriana, é

vel conceber o homem de ação como um indivíduo plural, capaz de ações

possí-veis, como um homem capaz de se fazer e de fazer no mundo, ou ainda, capaz de

7 SA, p. 206. A idéia é a de uma hierarquização de valores no conceito de ação, de modo a

comportar um sentido de práxis como práticas e planos de vida possíveis. Diz o autor: “nós

fomos conduzidos não somente a ampliar, mas a hierarquizar o conceito de ação de maneira a suportá-los aos níveis da praxis: assim, fomos colocados de repente sob diferentes escalas da

praxis, práticas e planos de vida, unindo por antecipação a unidade narrativa da vida” (“nous

avons été conduits non seulement à élargir mais à hiérarchiser le concept de l‟action de manière à le porter au niveau de celui de praxis: ainsi avons-nous placé, à des hauteurs différentes sur l‟échelle de la praxis, pratiques et plans de vie, rassemblés par l‟anticipation de l‟unité narrative

(35)

23

não fazer totalmente o que lhe aprouver: trata-se de um homem que pode agir, que

falha ao tentar agir ou ao abster-se de uma ação. De certa maneira, Ricoeur começa

a retratar a configuração de um homem capaz e falível de ação, cujos sentidos de

suas práticas deveriam ser direcionados e realizados conforme suas necessidades

naturais: ao mesmo tempo, esse homem capaz e falível luta contra essas práticas,

quando se revelam potencialmente lesivas à sua própria condição de ser. E nesse

sentido, uma tarefa – antes, um instinto –de „auto-preservação‟ é implicada no

in-divíduo com a instauração de uma hierarquia axiológica de condutas possíveis,

racionalmente calibradas por vetores de capacidade e de possibilidade de agir.

Porém, qual o sentido desse tipo de vida? Como construí-lo? Como

perpetuá-lo? Quem é esse homem de uma vida possível (possível enquanto capaz,

uma vida justamente possível)? Que ações justas ou injustas pode ele praticar? É a

partir desse conjunto de indagações que se desenvolve a presente reflexão acerca

de uma hermenêutica da idéia de justiça na filosofia do homem capaz de Paul

Ri-coeur. O foco principal está em torno das dimensões que a hermenêutica

ricoeuria-na oferece para a compreensão do sentido de vida do homem justo, para assim

compor as condições individuais, estruturais e institucionais necessárias para a

realização daquilo que o nosso autor – inspirado pela discussão que trava com a

teoria da justiça de John Rawls e com a ética de Aristóteles –chamará de „vida boa‟.

Na sequência, procura-se compreender de que maneira uma

con-cepção puramente processual de justiça, tal como a proposta por John Rawls, pode

satisfazer às necessidades de uma sociedade equânime, integrada por homens

ca-pazes de fazer valer suas condições humanas de ação – condições de racionalidade

e de razoabilidade das ações –, mediante o cerceamento ou a proibição de

determi-nadas condutas, isso considerando a particularidade das situações de convivência

e de divergência em discussão no âmbito dos canais de justiça (isto é, não somente

no interior de relações inspiradas por normas morais, mas também aquelas

obri-gadas por leis positivadas). Quer dizer, trata-se de verificar de que maneira uma

(36)

proce-24

dimentos formais que visam realizar a justiça como princípio de relações

intersub-jetivas e sociais – pode contribuir para a efetivação do homem capaz: um homem

capaz de cuidar de si mesmo, um homem capaz de se responsabilizar eticamente

por suas ações, em face de si mesmo e em face de outro totalmente distinto dele

mesmo. Com essa busca revelam-se os primeiros sinais de uma reflexão acerca da

questão da alteridade como contraponto dialético com a ipseidade, um

contrapon-to amplamente refletido e argumentado no âmbicontrapon-to da “pequena ética” ricoeuriana.

1.1VIDA, REALIDADE E HERMENÊUTICA DA JUSTIÇA

De que maneira o homem poderá se realizar no mundo? Como o

indivíduo pode situar-se no mundo como participante efetivo da realidade? Qual

deverá ser o seu papel numa ordem construída com base num razoável equilíbrio

das ações, sem gerar incompatibilidade de interesses? Ou, por que é preciso

sus-tentar uma noção aceitável de equidade nas relações para que haja harmonia na

convivência social? Quanto essa equidade se justifica como princípio da sociedade,

uma vez que os anseios humanos por um Estado justo, ao menos aparentemente,

apresentam-se frustrados no que concerne a um fundamento eticamente válido e

consistente da ordem social instaurada? Enfim, será possível sustentar uma idéia

de justiça, tal como é formulada pelos pensadores contemporâneos da teoria do

Direito, no interior de uma tradição deontológico-positivista que majoritariamente

tende a ignorar a justiça como problema?

Para poder compreender os sentidos possíveis da realização do

homem no mundo da vida, talvez seja preciso uma reflexão mais profunda a

res-peito das condições e dos elementos que constituem a identidade dos indivíduos,

uma consideração acerca da multiplicidade possível das relações humanas na

(37)

25

de hermenêutica crítica8 ricoeuriana que, por sua vez, se desenvolve na esteira da

hermenêutica da suspeita de Marx, Nietzsche e Freud. Nesse sentido, a definição

de uma idéia de justiça constituirá uma tarefa difícil, pois requererá uma adequada

compreensão dos sentidos possíveis da realidade onde a justiça ou injustiça

encon-tram o seu lugar, isso, a partir de uma constante (re-) abertura das tradições

filosó-ficas da teoria da justiça às discussões de caráter político, jurídico e ético: trata-se

de uma busca de possíveis significações da idéia de justiça à luz de aspectos

distin-tos e intrinsecamente conexos.

Para chegar a uma definição possível da idéia de justiça, nos

ter-mos de uma hermenêutica crítica, uma mínima consciência e uma mínima reflexão

acerca dos sentidos da vida é necessária. O homem justo – quer dizer, o homem

capaz de ações justas – deve poder compreender a idéia de justiça em suas

dimen-sões existenciais num universo racional de entendimento, onde possa retomar a si

mesmo como condição da justeza de suas ações na prática das relações humanas: e

assim buscar compreender o sentido de cada ação que pratica como um sentido

adequado a sua própria condição. Esse trajeto direciona a reflexão acerca de como

é possível um mundo da vida em termos de vida justa para um homem capaz de

praticar ações justas.

Falar da vida implica vivê-la. Do contrário, seria o mesmo que

i-maginar uma realidade meramente fantasiada, propriamente, um sentido de

realdade que não encontraria correspondência no mundo fenomênico: um mundo

i-maginado, simplesmente imaginação, delírio! Por essa razão, a perspectiva de

quem vive a vida é, perenemente, doadora de sentido às ações praticadas no viver

a vida; o olhar de quem dela fala denota, em certo sentido, sua ordem e sua forma:

trata-se da sujeição do mundo a uma percepção singular que expressa um sentido

de realidade. E é sob essa condição – sobremaneira, fenomenológica – que

8 ABEL, Olivier. Paul Ricoeur: a promessa e a regra. Trad. Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget,

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