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INFEÇÃO CONGÉNITA A CITOMEGALOVÍRUS Rita Belo Morais, Paulo Paixão, Madalena Lopo Tuna

No documento NEONATOLOGIA Manual Prático HSFX (páginas 92-96)

INTRODUÇÃO

O CMV é um vírus da família herpes que se transmite pelo contacto íntimo com fluidos corporais. No adulto e criança saudáveis, a infeção é habitualmente assintomática ou provoca uma síndrome mononucleósica, mas na criança imunodeprimida e no RN pode causar doença sistémica grave. A transmissão vertical do CMV pode ocorrer por três vias diferentes: via transplacentar (infeção congénita), por contacto com as secreções cervicovaginais durante o parto (infeção intraparto) ou pela ingestão de leite materno infetado (infeção pós-natal).

EPIDEMIOLOGIA

Trata-se do agente mais comum de infeção congénita em países desenvolvidos (0,5-2% dos RN), sendo a principal causa infeciosa de ADPM e surdez neurossensorial na criança. A taxa de seroconversão durante a gravidez é de 2-6%/ano. Em Portugal, a taxa de seropositividade em mulheres em idade fértil é elevada (64-82%) e a incidência de infeção congénita está estimada em menos de 1%. O risco de infeção fetal é maior na primoinfeção da grávida, mas também existe na reativação (cerca de 40% para 1%, respetivamente), não havendo correlação com a IG. Já as sequelas serão mais graves se a infeção fetal ocorrer durante a primoinfeção ou no 1º trimestre.

Das crianças infetadas, apenas 10 a 15% serão sintomáticas no período neonatal, das quais cerca de 50% terão um quadro de infeção sistémica grave (com 20-30% de mortalidade) e 60-90% virão a desenvolver sequelas. Na grande maioria os RN são assintomáticos (85-90%) no período neonatal, mas alguns poderão vir a manifestar surdez neurossensorial ou outras sequelas neurológicas.

CLÍNICA

No RN: RCIU, prematuridade, LIG, alterações do SNC (microcefalia, letargia/hipotonia, convulsões,

encefalite), surdez neurossensorial, hepatoesplenomegalia, icterícia, exantema petequial ou purpúrico (blueberry muffin baby), sepsis, colite, alterações oftalmológicas (coriorretinite, atrofia ótica, estrabismo), pneumonite.

Manifestações tardias: surdez neurossensorial (pode manifestar-se até cerca dos 6 anos de idade),

microcefalia, ADPM, displasia dentária.

Sequelas: ADPM, surdez neurossensorial, microcefalia, alterações oftalmológicas (coriorretinite,

atrofia ótica, cegueira cortical, cicatrizes da mácula e estrabismo), convulsões, doença hepática crónica.

ABORDAGEM DIAGNÓSTICA

Atualmente não existe programa universal neonatal de rastreio da infeção congénita a CMV. Assim, a investigação laboratorial de infeção a CMV justifica-se nos casos em que se suspeite de infeção congénita - primoinfeção materna suspeita ou confirmada durante a gravidez; infeção fetal suspeita (nomeadamente RCIU) ou confirmada; RN com clínica e/ou imagiologia cerebral sugestivas (vasculopatia tálamo-estriada, calcificações, quistos germinolíticos, defeitos da migração neuronal, ventriculomegalia) – e deve ser considerada (independentemente de existir suspeita de infeção) nos filhos de mãe VIH+ e no RN PT com IG <32 sem e/ou peso ao nascer <1500 g.

Diagnóstico de infeção materna

Uma vez que atualmente não existe forma eficaz de prevenir a infeção, nem tratamento consensual durante a gravidez (apenas terapêuticas em fase experimental, nomeadamente valaciclovir e gamaglobulina anti-CMV), o rastreio serológico sistemático da grávida não está recomendado. No entanto, segundo circular normativa da DGS (1/2006), deve ser realizada serologia para CMV no período pré-concecional. O diagnóstico na grávida baseia-se na serologia (IgG e IgM anti-CMV) e está reservado aos casos em que exista clínica materna ou alterações ecográficas no feto sugestivas de infeção.

91 Na ausência de serologia prévia a interpretação dos resultados pode não ser fácil, já que a IgM pode negativar em 3 a 4 meses, mas também pode manter-se positiva durante 9 a 12 meses após a primoinfeção e aumentar durante a reativação. Assim, a avidez das IgG é de grande utilidade na distinção entre infeção recente (<12 sem, avidez baixa) e infeção antiga ou reativação (>18-20 sem, avidez alta).

Idealmente a grávida terá serologias pré-concecionais que facilitam a interpretação e diagnóstico de infeção a CMV. Considera-se seroconversão se IgG positiva em grávida previamente seronegativa ou IgM positiva associada a baixa avidez de IgG.

Interpretação de serologia materna anti-CMV

IgG IgM Interpretação Repetição de serologia/avidez das IgG Interpretação

- - Sem contacto com CMV

+ - Pré-concecional ou no 1º T: infeção antiga No 2º ou 3º T: não se pode excluir primoinfeção - + Início de primoinfeção ou falso positivo

Após 30 dias: IgG- IgM+ Falso positivo IgG+ IgM+ Primoinfeção

+ +

Primoinfeção ou reativação ou IgM persistente ou reação

cruzada

Avidez alta no 1ºT Reativação ou infeção antiga em que IgM permaneceu positiva ou

reação cruzada Avidez baixa/intermédia Primoinfeção Diagnóstico de infeção fetal

Ecografia morfológica (a partir das 20 sem):

 Alterações sugestivas, mas inespecíficas, ajudam a determinar o prognóstico: RCIU, microcefalia, calcificações periventriculares, hepatoesplenomegalia, calcificações hepáticas, ascite, derrame pleural, oligoâmnios ou hidrópsia fetal.

 Exame normal não exclui infeção já que apenas 21% dos fetos infetados apresentam alterações ecográficas.

Ressonância magnética fetal (às 30-32 sem):

 Indicada se na ecografia forem detetadas calcificações hepáticas, intracranianas ou outras alterações do SNC.

Amniocentese (a partir das 20-22 sem):

 Recomendada se infeção materna documentada ou suspeita ecográfica de infeção por CMV.  Idealmente após as 21 sem IG, altura em que é detetável a eliminação urinária do agente pelo

feto.

 Se infeção materna durante a 2ª metade da gravidez, só indicada 6 semanas depois (evita falsos negativos).

 Exames a realizar no LA: deteção (sensibilidade 75-94%; falsos negativos cerca de 10%) do ADN viral por PCR ou isolamento viral em cultura (sensibilidade 56%). Resultado negativo não exclui infeção fetal posterior.

A cordocentese já não está recomendada. Diagnóstico de infeção no período neonatal

Deteção de CMV na urina (cultura shell vial) durante os primeiros 14 dias de vida (3-5 mL de urina asséptica, transportada no próprio dia para o laboratório, em ambiente refrigerado entre 2-8 °C). A viabilidade em cultura diminui com o tempo de colheita e a temperatura de refrigeração. Considerar repetição até aos 21 dias de vida se o resultado for negativo e a suspeita clínica forte.

2ª linha: deteção do vírus por PCR na urina, saliva ou sangue durante os primeiros 14 dias de vida – alta sensibilidade, custo mais elevado (colheita asséptica, manter entre 2-8 °C até ser enviado para o laboratório, transporte à temperatura ambiente).

Identificação do vírus no LCR por PCR (na suspeita de envolvimento neurológico).

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Diagnóstico de infeção congénita após o período neonatal (diagnóstico retrospetivo)

Identificação do vírus por PCR no cartão de rastreio metabólico neonatal (cartão de Guthrie). Resultado negativo não permite excluir infeção congénita.

Avaliação do RN com infeção confirmada

 Exame físico completo, incluindo exame neurológico pormenorizado e fundoscopia.  Avaliação laboratorial: hemograma (anemia hemolítica, trombocitopenia) e bioquímica

(elevação das transaminases, hiperbilirrubinemia conjugada).

Punção lombar: exame citoquímico (proteinorraquia> 120 mg/dL) e PCR para CMV no LCR.  Ecografia cerebral TF (ventriculomegalia, alteração da migração neuronal, vasculopatia

tálamo-estriada, calcificações periventriculares).  PETC auditivos e visuais.

 RM cranioencefálica (se RN sintomático ou com alterações na ecografia TF).  EEG (se clínica neurológica ou alterações na neuro-imagem).

Após avaliação do RN infetado é fundamental classificá-lo num dos seguintes grupos, que irá determinar a decisão de tratar e o tipo de seguimento:

1. RN assintomático 2. RN sintomático:

a. doença ligeira ou moderadamente sintomática;

b. doença focal orgânica grave - hepatite grave, supressão medular grave (anemia, neutropenia, trombocitopenia), colite ou pneumonite;

c. doença do SNC - microcefalia, ecografia e/ou RM cerebral alterada, LCR com exame citoquímico alterado ou PCR para CMV positiva, coriorretinite ou défice auditivo neurossensorial.

TERAPÊUTICA

O tratamento é controverso e baseia-se sobretudo na experiência obtida em adultos e em poucos estudos no RN.

Recomenda-se tratar os RN do grupo 2b (doença focal orgânica grave) e 2c (doença do SNC). A terapêutica deve ser iniciada durante os primeiros 30 dias de vida e ter uma duração total de 6 semanas:

1ª linha: ganciclovir 12 mg/kg/dia, 12/12 h, EV, perfusão de 1 hora.

Riscos: supressão medular de grau variável (hemograma semanal), toxicidade gonadal, carcinogénese, infeção bacteriana (associada à eventual necessidade de cateter central para administração da terapêutica).

2ª linha: valganciclovir (Rovalcyte® xarope – 50 mg/ml) 32 mg/kg/dia, 12/12 h, PO, antes das refeições.

Poderá ser usado após 2-3 semanas de ganciclovir EV se tolerância oral, boa resposta virológica e dificuldade em manter acessos venosos.

Não está aprovado em crianças, pelo que a sua utilização exige o consentimento informado dos pais.

Alguns relatos de utilização prolongada até 6 meses, em doença sistémica e do SNC. Atualmente a decorrer ensaio clínico comparativo de terapêutica durante 6 semanas vs 6 meses (resultados ainda não disponíveis).

Riscos: idênticos aos do ganciclovir com exceção dos associados à utilização de cateter central.

Considerar tratar (decisão individualizada):

 lactentes 1-6 meses, sintomáticos, com envolvimento do SNC e diagnóstico retrospetivo;  lactentes 6 meses-1 ano, sintomáticos, com hipoacusia progressiva e diagnóstico

93  lactentes <1 ano, assintomáticos, que venham a desenvolver hipoacúsia tardia.

Nestes casos deve ser obtido consentimento informado dos pais.

Não está recomendada a administração de gamaglobulina anti-CMV (Megalotect®). Monitorização laboratorial durante o tratamento

Semanalmente - hemograma completo, função renal, função hepática:

 se neutropenia <500/μLsuspender terapêutica e reiniciar dose total quando neutrófilos >750/μL; se recidiva de neutropenia passar a metade da dose até neutrófilos >500/μL, ou suspender terapêutica caso se mantenha a neutropenia;

 se trombocitopenia <50 000/μL suspender terapêutica até plaquetas >50 000/μL;

se clearance da creatinina 10-19 mL/min/1.73 m2 alargar o intervalo de administração para 24/24 h até normalização (> 20 ml/min/1.73 m2).

Considerar monitorização da carga viral para avaliar a eficácia do tratamento e a progressão da doença. A carga viral sanguínea geralmente diminui 1 a 2 logs durante o tratamento, enquanto a urinária e salivar estando inicialmente muito elevadas, diminuem cerca de 3 a 4 logs. Após a suspensão do tratamento a carga viral volta a subir, mas, na ausência de progressão clínica não é necessário reiniciar a terapêutica.

Considerar monitorização dos níveis séricos dos fármacos, se possível, semanalmente: Vale - colheita de sangue 1 hora antes da administração (nível terapêutico 0.5-1.0 mg/L).

O ajuste de dose não é necessário na presença de níveis séricos adequados em vale e boa resposta virológica. Como tanto o ganciclovir como o valganciclovir são excretados pelo rim, os níveis séricos vão diminuindo ao longo do tratamento devido à maior maturidade renal e consequente aumento da excreção do fármaco.

SEGUIMENTO

Audiologia: avaliar cada 3-6 meses até aos 3 anos e depois anualmente até aos 6 anos. Neurodesenvolvimento: avaliar aos 6 meses, com 1 ano e depois anualmente até aos 6 anos. Oftalmologia: os RN com exame oftalmológico normal não necessitam de avaliação posterior. Se sintomáticos no período neonatal avaliar em consulta anual até aos 5 anos de idade.

MEDIDAS DE ISOLAMENTO E CONTROLO DA INFEÇÃO

A transmissão do vírus é pouco frequente, pelo que devem utilizar-se medidas de isolamento standard. A transmissão hospitalar entre doentes é possível através das mãos dos familiares e dos profissionais de saúde. O vírus é inativado pelo sabão e soluções alcoólicas, pelo que a correta higiene das mãos é eficaz para evitar a transmissão. Estas medidas são especialmente importantes no contacto com RN PT, que podem apresentar manifestações clínicas em caso de infeção adquirida a CMV. Após a alta hospitalar não são necessárias medidas de isolamento e não está indicada a evicção escolar.

ALEITAMENTO MATERNO

Não está contraindicado o aleitamento materno, mesmo em RN prematuros.

PREVENÇÃO

Baseia-se em medidas de educação para a saúde e prevenção da infeção durante a gravidez. As grávidas que contactam com crianças (educadoras infantis, professoras, mães de crianças em idade pré-escolar) parecem estar em maior risco. A saliva e urina de crianças infetadas são fontes significativas de infeção a CMV, pelo que é fundamental a educação para a prática de medidas básicas de higiene, nomeadamente lavagem cuidadosa das mãos com água e sabão (15-20 s) após o contacto com fraldas ou saliva; não beijar crianças na boca ou na face; e não partilhar comida, bebida ou utensílios.

Atualmente não existe vacina aprovada contra o CMV, estando algumas em fase experimental.

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No documento NEONATOLOGIA Manual Prático HSFX (páginas 92-96)