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3.3 O artigo 90 da Constituição de

3.3.1 Análises jurídico-dogmáticas: a descrição e interpretação da norma

3.3.1.1 A iniciativa e a Casa iniciadora

No que diz respeito à iniciativa para a proposição da reforma, não houve controvérsias sobre o tema, mas alguns dos autores fizeram ponderações que extrapolaram a descrição da norma.

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107 Alfredo Lima, em texto de 1893, comparou a Constituição brasileira à norte- americana no que diz respeito ao procedimento e ponderou que, não obstante a brasileira tivesse se inspirado na estrangeira384, a possibilidade de iniciativa para a reforma pelas Assembleias dos Estados quase não se justificaria no Brasil, ao contrário do que ocorreria nos Estados Unidos. Isso porque, nesse país, se a proposta partisse do Congresso, seria submetida às legislaturas dos Estados ou convenções nele formadas. Se partisse dos Estados, uma convenção seria convocada, mas não daria a última palavra sobre a questão, pois a reforma teria que ser submetida à ratificação de três quartos dos Estados em qualquer hipótese. Lima salientou que, no Brasil, diferentemente do que ocorreria nos Estados Unidos, o próprio Congresso discutiria e aprovaria a proposta, ainda que a iniciativa fosse das Assembleias dos Estados, de maneira que a possibilidade de solicitação de reforma pelas Assembleias dos Estados quase não se justificaria385.

Já João Barbalho salientou que câmaras legislativas estaduais “concorreriam para o exercício da soberania nacional, sendo então um dos órgãos dela”386. Essa disposição teria vindo da Constituição estadunidense, porque lá havia a desconfiança com relação à obra da Convenção de Filadélfia. Em sentido contrário a Lima, Barbalho defendeu que essa possibilidade poderia vir a ser de grande iniciativa, uma vez que:

(...) sendo possivel que a maioria das camaras legislativas se ache (o que não será extraordinario na historia politica) em desharmonia com a opinião nacional, esta terá, em caso tal, por orgam dos Estados, o meio de provocar a reforma. E muito natural será que esse pronunciamento, por isso mesmo que raro e prestigioso, influa proficuamente para a realisação da aspiração nacional, convertendo a ella os mandatarios que acaso antes não a viam bem.387

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A Constituição estadunidense prevê que: “Article. V. The Congress, whenever two thirds of both Houses shall deem it necessary, shall propose Amendments to this Constitution, or, on the Application of the Legislatures of two thirds of the several States, shall call a Convention for proposing Amendments, which, in either Case, shall be valid to all Intents and Purposes, as Part of this Constitution, when ratified by the Legislatures of three fourths of the several States, or by Conventions in three fourths thereof, as the one or the other Mode of Ratification may be proposed by the Congress; Provided that no Amendment which may be made prior to the Year One thousand eight hundred and eight shall in any Manner affect the first and fourth Clauses in the Ninth Section of the first Article; and that no State, without its Consent, shall be deprived of its equal Suffrage in the Senate.” (THE U.S. NATIONAL ARCHIVES AND RECORDS ADMINISTRATION. The characters of freedom. Disponível em: http://www.archives.gov/exhibits/charters/constitution_transcript.html. Acesso em: 27 nov. 2014.

385 Cf. LIMA, A. M. de B. O. Direito público. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. São Paulo:

Typographia da Companhia Industrial de São Paulo, 1893, p. 95.

386

Cf. CAVALCANTI, J. B. U. Op. cit., p. 365.

108 Se a proposta viesse de dois terços dos Estados, entretanto, haveria uma circunstância distinta, consistente no fato de que não haveria a necessidade de votação preliminar das Casas Federais para aceitação da proposta de reforma388.

Herculano de Freitas, por sua vez, salientou que a marcha da reforma constitucional seria distinta conforme se tratasse de iniciativa dos Estados ou do próprio Congresso. Quando a iniciativa fosse dos Estados, o autor esclareceu a razão pela qual entendia ser necessário que o número de Estados exigido para a proposta se manifeste no decurso de um ano:

Pois que, ao contrário, S. Paulo poderia propor uma reforma, de acôrdo, suponhamos com os Estados e Minas e Pernambuco, passarem-se dois anos e o Ceará, nesse momento adotar a mesma idéia; mais tarde, Maranhão, Amazonas, Rio Grande do Sul, etc., também adotarem a mesma idéia; nêsse momento, entretanto, já o pensamento paulista e mineiro poderia ser diverso, não haver a mesma concordância de vontades entre os Estados. Por isso, o legislador exigiu, para essa iniciativa por parte dos Estados, que a manifestação de vontade delas se dê simultâneamente num determinado período.389

Quando a iniciativa fosse do Congresso Nacional, Freitas buscou justificar a razão para que a proposta viesse de um número mínimo de representantes, e não de pessoas isoladas, no sentido de se evitarem agitações desnecessárias:

Sendo a iniciativa por parte do Congresso Nacional, é preciso que ela se origine num projeto apresentado por uma quarta parte, pelo menos, como já vos disse, dos representantes, para que não se agite vãmente a nação pela preocupação da modificação de sua lei fundamental. Se se deixasse à iniciativa individual, de cada deputado ou senador propor reformas constitucionais, estaria cada um constantemente apresentando projetos modificadores, sujeitando-os à discussão, a imprensa tratando dêles e veríamos o interêsse da sociedade alarmar-se, porque, as palavras com que se redigem as leis, ou com que nas assembléias legislativas se discutem as leis, não dizem a sua verdadeira importância: a real e a verdadeira importância das leis está no seu contato com a vida real da sociedade. Sabeis que interêsses a lei vai tocar, vai auxiliar, vai desenvolver, vai ferir. E a lei fundamental do Estado joga com tal número de elementos vitais da Nação que, por fôrça, há de trazer uma agitação e uma preocupação danosas aos seus mesmos interêsses qualquer tentativa de reforma.”390 (grifo nosso)

Carlos Maximiliano, a seu turno, afirmou que a iniciativa caberia a qualquer das Casas legislativas, não cabendo ao intérprete realizar qualquer restrição:

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CAVALCANTI, J. B. U. Op. cit., p. 365.

389

FREITAS, H. de. Direito constitucional. São Paulo, 1923, p. 66-67.

109 A iniciativa, tanto no caso da proposta como da approvação, cabe indistinctamente a qualquer das camaras. É o que se deprehende da letra do § 1o, corroborado pelo preceito de Hermeneutica – interpretam-se restrictivamente os dispositivos legaes que encerram excepções ao direito commum. Os casos de iniciativa obrigatoria do ramo popular do parlamento são os expressos no art. 29; não podem ser augmentados por analogia, nem por meio de lei ordinaria. A proposta deve trazer a asignatura de 16 senadores ou de 53 deputados, pelo menos, se não tiver sido anteriormente acceita por maioria de votos nas assembléas de dous terços dos Estados e enviada ao Congresso Nacional.391 (grifo nosso)

Em nota, Maximiliano salienta que o número de 16 senadores e 53 deputados representaria a quarta parte de cada Casa. Entretanto, esse número poderia aumentar caso a quantidade de membros de cada uma delas fosse aumentada. Ademais, lembrou neste ponto que, nos Estados em que houvesse bicameralidade, com Senado e Câmara dos Deputados, a proposta deveria ser aprovada pelos dois ramos da legislatura regional, não sendo exigido maioria dos membros, e sim maioria dos presentes, desde que houvesse comparecido a metade, mais um392.

Em 1898, Aristides Milton comentou que seria perigoso que a iniciativa para a reforma fosse dada ao Poder Executivo, ante a possibilidade de abuso, com atuação que pudesse coibir a liberdade:

O Governo tende, por via de regra, ao abuso; e como uma reforma da ordem dessa a que o artigo se refere, tanto póde ser feita em beneficio, como em detrimento da liberdade, o Governo seria capaz de promovel-a com o fim de augmentar a sua força e a sua autoridade.393

Com efeito, não obstante a previsão da Constituição limitar a iniciativa de proposta de reforma constitucional ao Poder Legislativo federal e dos Estados, a reforma de 1926 foi encaminhada no Congresso Nacional a partir da atuação do Presidente Arthur Bernardes, com mensagem presidencial que aconselhava a apreciação da questão, e há notícias de que o chefe do Executivo participou ativamente na elaboração da proposta394. Assim, houve quem entendesse ter sido a reforma inconstitucional395.

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391 MAXIMILIANO, C. Comentários à constituição brasileira. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos,

1918, p. 807.

392 Cf. MAXIMILIANO, C. Comentários à constituição brasileira. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos

Santos, 1918, p. 807.

393 MILTON, A. A. A constituição do Brasil: notícia histórica, texto e comentário. 2. ed. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1898, p. 497-498.

394 Ver tópico 2.1. 395

Escrevendo em 1925, já depois de iniciado o processo de reforma da Constituição, Alberico de Moraes salientou justamente esse ponto, afirmando que o Senado divergiu da Câmara em matéria de grande importância, qual seja, a iniciativa de reforma pelo Presidente da República: “A Reforma da Constituição

110 Tanto o Congresso Nacional aceitou essa circunstância quando da reforma constitucional concluída em 1926, quanto o Supremo Tribunal Federal não a julgou inconstitucional por esse motivo. O Ministro Viveiros de Castro, ao julgar o Habeas corpus n.o 18.178396, entendeu que o Executivo é que teria promovido a reforma, porque a proposta foi deliberada entre os líderes das bancadas sob a organização do Presidente da República. Já o Ministro Bento de Faria afastou a ideia de que a interferência eficaz do Presidente da República poderia anulá-la, invocando para tanto o artigo 48 da Constituição397, já que, por mais amplas que fossem as trocas de ideias, essa influência do Presidente não poderia ser considerada como proposta de reforma. Ademais, de acordo com o Ministro, o próprio Ruy Barbosa, em sua plataforma presidencial, parecia corroborar essa ideia. Os demais Ministros não debateram a questão, e a afirmação de violação do artigo 90, quando à iniciativa, foi afastada.

No que diz respeito à Casa iniciadora, João Barbalho e Almachio Diniz teceram algumas considerações sobre a Casa legislativa responsável por iniciar o processo de deliberação sobre a reforma constitucional.

João Barbalho entendeu que, no silêncio da Constituição republicana, ao contrário da imperial, seria possível sugerir ao Congresso a expedição de lei que regulasse a matéria do procedimento das reformas constitucionais, e não de utilização de normas regimentais398, “porque assim o exige a importância da matéria e porque aquela atribuição toca ao congresso”, pela competência para editar leis para assegurar a execução dos preceitos constitucionais. Assim, sugeriu que se fizesse constar como casa iniciadora o

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pode ser a base do programma de um partido ou de um Governo que tivesse vencido nas urnas, tendo como bandeira, em programma franco, leal e vastamente divulgado, a reforma da Constituição. Em qualquer outro caso a reforma não póde ter a iniciativa do Presidente da Republica, porque não se trata de um acto julgado necessario a uma administração e ao espirito de apoio politico partidario ao Presidente da Republica, principalmente num momento de tão grandes luctas internas, collocará a discussão no terreno da confiança do chefe do Poder Executivo. Só a Nação tem o direito de exigir a reforma de sua Constituição, em ampla e livre discussão, fóra do Congresso – na imprensa livre, partidaria e facciosa, e nos centros scientificos - ahi as ideias se tornam vencedoras e o Congresso as recebe, tornando-as lei.” (MORAES, A. de. Uma proposta da

reforma da constituição de 24 de fevereiro de 1891. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1925, p. 5-6).

Moraes considerou que a iniciativa fôra do próprio Presidente da República, mas sua crítica não estava voltada exatamente ao comentário da disposição constitucional, e sim ao fato de o Presidente não ter apresentado seu programa abertamente quando da campanha presidencial.

396

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus n.o 18.178/DF, Rel. Min. Hermenegildo de Barros,

Revista dos Tribunaes, ano XV, v. LIX, ago. 1926.

397 Constituição de 1891. “Art 48 - Compete privativamente ao Presidente da República: (...) 9º) dar conta

anualmente da situação do País ao Congresso Nacional, indicando-lhe as providências e reformas urgentes, em mensagem que remeterá ao Secretário do Senado no dia da abertura da Sessão legislativa.”

398

Vale salientar que a reforma de 1926 foi realizada com base em normas regimentais sobre o seu procedimento.

111 Senado, quando a iniciativa fosse das Assembleias Legislativas dos Estados, por ser esse o “corpo de embaixadores dos Estados”399.

Almachio Diniz, por sua vez, afirmou que a propositura poderia se dar em qualquer uma das Casas do Legislativo: “Dentro destes limites [do artigo 90], a reforma constitucional pode ser proposta, em qualquer das casas do Congresso, porque não ficou privativa de nenhuma delas a iniciativa revisionista”400.