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O quorum para aceitação e aprovação da proposta

3.3 O artigo 90 da Constituição de

3.3.1 Análises jurídico-dogmáticas: a descrição e interpretação da norma

3.3.1.2 O quorum para aceitação e aprovação da proposta

No que diz respeito ao quorum de dois terços de votos exigido para aceitação e aprovação da proposta de reforma constitucional, houve grande controvérsia entre os doutrinadores da época, com base nas posições de Barbalho e Maximiliano, e que repercutiu no Congresso nacional e na avaliação da reforma constitucional de 1926 pelo Supremo Tribunal Federal401.

João Barbalho iniciou sua reflexão afirmando que a exigência de votação de dois terços de votos estaria relacionada aos casos em que se exigiria ponderação, “e em nenhum ela é mais necessária e justificada do que na reforma das instituições fundamentais da nação”402. Então, apresentou a questão acerca de ser a exigência de dois terços de votos dos membros presentes ou da totalidade deles para aceitação e aprovação da proposta de reforma constitucional. Comparando então os termos do artigo 90 com outros dispositivos constitucionais que mencionavam expressamente o termo “membros presentes” (artigo 33, parágrafo 2.o, artigo 37, parágrafo 3.o, artigo 39, parágrafo 1.o), concluiu que, se a Constituição não o fizera no artigo 90, não se poderia supor que haveria o intento de significar que a fração seria contabilizada com relação aos membros presentes, e não ao total de membros da Casa legislativa. Ademais, essa providência dos constituintes teria por objetivo evitar as reformas irrefletidas, dificultando o processo de alteração:

O art. 90, assim, nem consagra em seos termos a limitação constante dos outros artigos citados, não se referindo como elles a votos dos membros !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

399 CAVALCANTI, J. B. U. Constituição federal brasileira: comentários. Rio de Janeiro: Companhia Litho-

Typographia, 1902, p. 369.

400 DINIZ, A. Direito publico e direito constitucional brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves,

1917, p. 317-318.

401 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus n.o 18.178/DF, Rel. Min. Hermenegildo de

Barros, Revista dos Tribunaes, ano XV, v. LIX, ago. 1926.

402

CAVALCANTI, J. B. U. Constituição federal brasileira: comentários. Rio de Janeiro: Companhia Litho- Typographia, 1902, p. 365.

112 presentes, nem se explime de modo que induza a suppor-se, por argumento, que quizesse estabelecer tal limitação. Teria usado dos mesmos termos, si houvesse querido a mesma coisa. Não o fez, e tornou- se mais exigente, querendo dous terços da totalidade dos membros de cada casa do parlamento, por consideração da excepcional gravidade e importancia da reforma constitucional, que submetteo a condições e processo mais rigoroso que os prescriptos para as leis ordinarias. Nem é para ter-se por excessiva tão grande cautela. Os constituintes, zelando como deviam sua obra, quizeram que não ficasse exposta a reformas precipitadas, inconsideradas, eivadas de virus partidario, realisadas sob a inspiração das paixões do momento. Certo, a Constituição não poder-se- ia considerar intangivel, immutavel e por mais conservador que haja sido o espirito que a dictou n’esta parte, não lhe teria escapado que para conservar é preciso aperfeiçoar. Mas tal é a natureza, tão grandiosos os propositos da lei fundamental, que deve ella ser considerada com um respeito religioso, e o perito de alterar uma constituição para tornal-a melhor (no dizer de autorisado publicista) é quasi sempre mais consideravel do que soffrel-a tal qual ella é (J. P. Pages)403.404 (grifo nosso)

Carlos Maximiliano defendeu posição contrária à de João Barbalho, valendo-se de uma comparação entre o disposto nos parágrafos 1.o e 2.o do artigo 90 da Constituição. Isso porque, para assinatura da proposta, o dispositivo teria sido claro ao exigir uma quarta parte dos membros da Casa legislativa, e não dos presentes, ao passo que, para aceitação e aprovação, exigiria dois terços dos votos, sem qualquer especificação. Por essa razão, entendeu que bastariam dois terços dos presentes:

Para assignatura da proposta o texto exige a quarta parte dos membros de uma camara; para a votação, em um e outro anno, reclama dous terços dos votos. Logo, no ultimo caso, refere-se o art. 90 a dous terços dos presentes, havendo numero sufficiente para deliberar (a metade e mais um), e não a dous terços dos membros. Vigora disposição semelhante nos Estados Unidos, até menos explicita ainda; e alli se entende ser sufficiente o voto de dous terços dos presentes, e, não, de toda a camara.”405 (grifo do autor).

Nesse ponto, Maximiliano citou Willoughby406, que mencionara que a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos fora aprovada por trinta e sete votos em uma Câmara composta por sessenta e cinco membros, o que representaria menos de dois terços do total.

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403

O autor não especificou maiores informações sobre a fonte.

404 CAVALCANTI, J. B. U. Constituição federal brasileira: comentários. Rio de Janeiro: Companhia Litho-

Typographia, 1902, p. 365.

405 MAXIMILIANO, C. Comentários à constituição brasileira. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos,

1918, p. 808.

406

Nesse ponto, Maximiliano citou “The Constitutional Law of the United States”, de Willoughby, publicado em1910. Cf. MAXIMILIANO, C. Op. cit., p. 808.

113 Em seu “Manual da constituição brasileira”, de 1918, Araujo Castro concordou com João Barbalho, entendendo ser necessário o voto de dois terços da totalidade dos membros de cada uma das Casas, e não simplesmente dos membros presentes, exigência maior que poderia ser presumida da importância da reforma constitucional407. Ademais, afirmou que quando a Constituição desejasse que o quorum dissesse respeito aos presentes, teria feito expressamente408. Em “A revisão constitucional”, de 1924, Araujo Castro, reiterou esse entendimento e, em nota, mencionou a posição de Carlos Maximiliano, julgando incorreto o exemplo apresentado por Willoughby, porque nos Estados Unidos a intervenção do Congresso se restringiria à proposta:

(...) invocando o exemplo dos Estados Unidos, julga que bastam dois terços de votos dos membros presentes. (...) Mas, não ha partidade entre as duas situações, porquanto, nos Estados Unidos, a intervenção do Congresso é restricta á proposta. Para a ratificação, como já se viu, tornam-se necessarios três quartos das legislaturas dos Estados ou tres quartos dos membros da convenção que for convocada para tal fim. 409 Araujo Castro citou ainda os exemplos da Argentina e do Uruguai, em que se exigia quorum aferido a partir dos membros das Câmaras410. E, comparando os projetos da Comissão nomeada pelo Governo Provisório e do próprio Governo, afirmou que, se o intento fosse que a fração incidisse sobre os presentes, isso estaria expresso, e a regra geral de maioria dos presentes constante no artigo 18 da Constituição Federal411 não se aplicaria aos casos de reforma constitucional, por ser este um caso especial, que se sujeitaria a normas também especiais: “Deliberando sobre a reforma constitucional, o Congresso toma o caráter de assembleia constituinte e os seus trabalhos não estão adstritos a outras normas que as prescritas no artigo 90”412. Essa conclusão seria corroborada pelo fato de que a Comissão dos Vinte e Um, ao emitir parecer sobre a Constituição do Governo Provisório, teria declarado que o projeto tornava as revisões constitucionais irrealizáveis – então, não faria sentido que a Comissão tivesse utilizado a ideia de que o quorum seria dos presentes,

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407 Cf. CASTRO, R. de A. Manual da constituição brasileira. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro e Maurillo, 1918,

p. 353-354.

408 Cf. CASTRO, R. de A. Op. cit., p. 354.

409 CASTRO, R. de A. A reforma constitucional. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, Freitas Bastos, Spicer e Cia.,

1924, p. 14.

410

Cf. CASTRO, R. de A. A reforma constitucional. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, Freitas Bastos, Spicer e Cia., 1924, p. 14.

411 Constituição de 1891. “Art 18 - A Câmara dos Deputados e o Senado Federal trabalharão separadamente

e, quando não se resolver o contrário, por maioria de votos, em sessões públicas. As deliberações serão tomadas por maioria de votos, achando-se presente, em cada uma, maioria absoluta de seus membros.”

412

CASTRO, R. de A. A reforma constitucional. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, Freitas Bastos, Spicer e Cia., 1924, 15.

114 e não dos membros, pois apenas essa maior exigência poderia justificar dificuldade na reforma:

Tres quartos dos membros presentes seria uma exigencia tal, que tornasse a reforma praticamente quasi irrealizavel? Dos termos desse parecer não se infere que a alludida comissão entendia que a exigencia era de tres quartos dos membros constitutivos das camaras e não de tres quartos dos membros presentes?”413

No mesmo sentido manifestou-se Alberico de Morais, já em momento concomitante à reforma concluída em 1926. O autor mencionou que haveria no Congresso Nacional uma tendência a restringir direitos e que, na reforma do regimento interno, este órgão interpretara o artigo 90 da Constituição no sentido de conferir maior poder à maioria, pois exigira a dois terços dos presentes, e não dos membros de cada Casa para a aprovação da reforma414. A ideia de Alberico de Moraes é que, nos casos de reformas constitucionais, seria justificável pretender uma minoria menor em lugar de uma maioria, porque a importância da questão faria surgir uma aprovação pela quase totalidade dos membros:

Em direito constitucional comparado, na letra e espirito de todas as constituições, em caso de reforma, o que se pretende alcançar é uma menor minoria ao em vez de uma maioria; as leis fundamentaes precisam de sanção do povo em sua quasi totalidade. A nossa Constituição não se afastou desse principio fundamental, – exigido 2/3 de 212, ou sejam 142 – e no entanto para que a maioria possa agir com maior desembaraço, os 2/3 serão dos membros presentes, podendo ser reformada a Constituição, com o voto de 72 deputados, mas, para apresentação de qualquer emenda, mesmo depois de acabada a estructura constitucional e vencida a ideia da opportunidade, com a apresentação de uma emenda com 52 assignaturas, todas as emendas deverão ter tambem 52 assignaturas, e para approvação, apenas 72!! A Camara attribuio aos constituintes de 91 maior receio ou temor pela apresentação de uma emenda com uma assignatura, mas que só poderia ser lei fundamental se tivesse 142 votos, do que a simples apresentação de uma emenda com 52 assignaturas e approvada apenas por 72 deputados; com essa injuria, ao saber e a logica dos constituintes, não se conformou um só dos commentadores de nossa Constituição, ao contrario Ruy Barbosa, João Barbalho e Araujo Castro, ensinam diversamente.415416

Divergindo desses posicionamentos, Oscar Stevenson criticou os argumentos de Araujo Castro, que se apoiara em Barbalho, para criticar a conclusão por ele alcançada, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

413

CASTRO, R. de A. A reforma constitucional. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro, Freitas Bastos, Spicer e Cia., 1924, p. 16-17.

414 Cf. MORAES, A. de. Uma proposta da reforma da constituição de 24 de fevereiro de 1891. Rio de

Janeiro: Revista dos Tribunais, 1925, p. 4.

415

MORAES, A. de. Op. cit., p. 4-5.

416

Em nota, Moraes afirma que Carlos Maximiliano divergiu desses comentadores, por se guiar por uma informação errada de Willoughby Cf. MORAES, A. de. Op. cit., 1925, p. 5.

115 fundada em reflexões sobre as Constituições de outros países417. Com efeito, Stevenson afirmou que o Congresso não se transmudaria em assembleia constituinte, porque não teria a competência para promover uma revisão total da Constituição, e nem os congressistas possuiriam um mandato especial de legisladores constituintes, porque este somente seria conferido pela nação de forma declarada. Assim, afirma que as regras gerais existentes na Constituição para o procedimento legislativo ordinário poderiam se aplicar ao procedimento de reforma constitucional: “Esta é interpretação estrita contra a qual não aproveitam analogias ou presunções, porque o dispositivo do artigo 90 encerra exceção ao direito comum”418. Concordou com Carlos Maximiliano neste ponto: “(...) se a Constituição não exigiu a maioria de votos, contados na totalidade dos membros das Assembleias estaduais419, o mesmo aconteceria na hipótese em discussão, pelo que toca aos § 1.º e § 2.º, do art. 90”420. E Stevenson ainda argumentou:

Argumento por analogia se tira do facto de que escapam á sancção do Poder Executivo emendas approvadas. Nos Estados Unidos, a resolução do Congresso, opinando pela necessidade de reforma, não é passivel de veto pelo Presidente: e não vae á sua sancção, qual assignala Pomeroy421 entre outras razões, porque, na conformidade do art. 1o, secção 7a, n. 2, a approvação por dois terços, de cada Camara, nullificaria o veto presidencial. Similhantemente, depois de approvada a proposta de reforma, soante aos §§ 1o e 2o do art. 90, da nossa Constituição, não se precisaria da sancção do Executivo, por isso que as approvações são por dois terços, numero aliás sufficiente para invalidar a sua recusa e supprir a sua sancção. Ora, para argumentar, o art. 37, § 3o, fala em dois terços dos suffragios presentes. Esta seria a unica analogia ou presumpção por invocar-se.422

Portanto, Oscar Stevenson concluiu que as deliberações deveriam ocorrer contando-se o quorum pelos membros presentes, e não pelo total de membros de cada casa.

Carlos Maximiliano foi minoritário na doutrina neste ponto423, mas sua orientação prevaleceu posteriormente no procedimento para aceitação e aprovação da reforma !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

417

A postura de Stevenson chega a ser irônica: “Ora, a inanidade dos argumentos resalta de per si. Porque a Constituição de differentes países trace tal ou tal curso ao procedimento de sua reforma, nada autoriza a deducção daquella constitucionalista. Seria o caso de indagar se nos falece o direito de variarmos. Já se depara ahi uma originalidade nossa...” (STEVENSON, O. A reforma da constituição federal. São Paulo: Typ. Rio Branco, 1926, p. 33).

418 STEVENSON, O. Op. cit., p. 35.

419 Stevenson mencionou, neste ponto, Carlos Maximiliano. Cf. STEVENSON, O. Op. cit., p. 37. 420

STEVENSON, O. Op. cit., p. 37.

421 Nesse ponto, Stevenson citou “An introduction to the constitutional law of the United States”, de John

Norton Pomeroy. Cf. STEVENSON, O. Op. cit., p. 37.

422 STEVENSON, O. Op. cit., p. 37. 423

Além das vozes já mencionadas, confira-se, ainda, Almachio Diniz: “Para a acceitação da proposta de reforma e para a sua approvação, exigem-se, não dous terços simplesmente dos votos dos membros presentes, mas maioria de dois terços da totalidade dos votos nas duas camaras do Congresso.” (DINIZ,

116 constitucional de 1926 adotado pelo Congresso Nacional e também na avaliação que o Supremo Tribunal Federal fez sobre a reforma constitucional. No julgamento do Habeas corpus n.o 18.178424 pelo STF, os debates mais intensos disseram respeito ao quorum de votação da reforma constitucional, porque a Constituição exigia que a aprovação se desse por dois terços “dos votos”, sem mencionar se incidiria sobre os presentes ou sobre os membros de cada Casa legislativa. Os Ministros Pedro Santos, Guimarães Natal e Viveiros de Castro foram vencidos, por acreditarem que a exigência constitucional havia sido desrespeitada. Outros Ministros apresentaram uma postura de deferência em relação à manifestação do Congresso Nacional porque, ao analisarem as duas interpretações possíveis do dispositivo, concluíram que ambas eram justificáveis, não cabendo ao Judiciário se imiscuir na questão. Foram explícitos nesse sentido os Ministros Heitor de Souza, Bento de Faria e Arthur Ribeiro425.

3.3.1.3 Características do órgão responsável pela decisão e ocasião para a