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Interacções e Temperamento

A TEORIA SOCIOCULTURAL DO DESENVOLVIMENTO DE VYGOTSKY

2. Interacções e Temperamento: abordagem teórica

Durante os primeiros anos de vida, são os pais ou outros caregivers quem primariamente coloca pedidos à criança, comunica expectativas do meio, estabelece rotinas e medeia as suas relações com o mundo exterior. Progressivamente, o papel dos pais torna-se menos dominante e a sua influência cada vez mais partilhada e modificada por educadores e professores, adultos significativos na vida da criança, ou grupos de pares e organizações da comunidade. Kochanska (1997) defende uma perspectiva semelhante, afirmando que, em geral, o desenvolvimento da criança aos três anos e meio permanece influenciado principalmente pelo ambiente familiar e pelas qualidades da socialização parental, enquanto que aos cinco anos muitas crianças estão já expostas a outras esferas de socialização, como os jardins de infância, e assim muitos factores podem influenciar o desenvolvimento e interagir com o temperamento da criança de formas desconhecidas.

Paralelamente ao impacto das dimensões interactivas, que se revelam essenciais no desenvolvimento da criança, verifica-se que a contribuição das características pessoais da criança é também muito importante; é através deste seu contributo que se revela o sei/papel activo no próprio desenvolvimento.

Palácios et ai (1991) referem que o desenvolvimento de um indivíduo é fortemente mediado pela existência de forças internas inscritas no código genético, mas é também o resultado mais ou menos directo das experiências e aprendizagens acumuladas na história pessoal, como se constata na perspectiva vygotskiana.

O nível de permeabilidade de uma dada espécie às experiências vindas do exterior é, em grande medida, determinado pelo grau de "abertura" do código genético (Palácios et ai, 1991). Assim, se em determinada espécie a maior parte dos comportamentos individuais aparecem geneticamente programados, então o comportamento dos membros dessa espécie será altamente insensível às influências da experiência. Tais comportamentos poderão ser simples ou complexos, mas serão sempre rigorosamente pre- fixados pelo código genético. Mas à medida que subimos na escala animal,

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tornando-se maior a complexidade das espécies, verifica-se uma diminuição do rigor do peso genético. Assim, o desenvolvimento e o comportamento dos seres humanos caracteriza-se por uma grande abertura à aprendizagem, estando esta capacidade sob a influência de aspectos sociais e culturais. Faz então sentido falar, não só em heranças biológicas, mas também culturais como factores condicionantes do comportamento e desenvolvimento humanos.

De um ponto de vista ontogenético, as etapas iniciais de desenvolvimento são altamente dependentes dos processos de maturação biológica controlados por características genéticas mais fechadas. Com o tempo, os aspectos desenvolvimentais ligados à parte "aberta" do código genético tornam-se progressivamente mais importantes, embora essa passagem não aconteça de forma súbita, nem com igual intensidade em todas as vertentes de desenvolvimento. Palácios et ai (1991) citam como exemplo a linguagem, onde consideram a existência de uma base maturativa fundamental, mas também a necessidade de uma estimulação social estável. Será necessária uma boa dose de estimulação social e linguística que leva a aquisições diferentes e variações interindividuais em função da qualidade dessa estimulação. O que acontece é que a forte canalização de desenvolvimento inicial se atenua progressivamente. Revela-se, assim, cada vez mais essencial, ao longo do desenvolvimento, a importância da experiência, da aprendizagem e da educação; a estimulação é cada vez mais decisiva para a determinação da forma e conteúdo do desenvolvimento.

A noção de característica hereditária (e portanto de base genética) do temperamento, que, embora não seja uma perspectiva unânime, é referida por alguns autores (cf. Buss & Plomin, 1987), bem como, e essencialmente, a origem biológica do temperamento defendida pela totalidade dos investigadores desta área, leva a supor a possibilidade de considerar este conceito de um ponto de vista semelhante à perspectiva referida por Palácios efa/(1991).

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Nesta linha, podemos compreender a perspectiva de McCall (1987) ao referir que nas primeiras semanas de vida as dimensões temperamentais constituem a personalidade global do recém-nascido, sendo o bebé um protótipo para o estudo do temperamento. Também Thomas e Chess (1977) que defendem uma perspectiva segundo a qual nos anos pré-escolares os traços temperamentais e a sua contribuição para o desenvolvimento da criança são relativamente simples de identificar, vão de encontro à nossa reflexão. Mas à medida que o crescimento se vai processando, e vão acontecendo trocas constantes com o meio, esses traços tornam-se mais complexos, elaborados e variados. O papel do temperamento permanece importante, por vezes mesmo decisivo, mas significativamente mais complicado de isolar, dado que os padrões de comportamento da criança se tornam mais complexos na sua determinação e expressão.

A perspectiva de que a estrutura psicológica de um adulto, estaria presente na criança desde o seu nascimento, atribuía ao desenvolvimento o papel único de maturar e desdobrar características hereditárias fixas. Mas não é esta a posição de Thomas e Chess (1977). Em sua opinião, essa é uma perspectiva simplista que retira aos pais, ou outros caregivers, o papel de modeladores primários da personalidade, podendo apenas introduzir mudanças comportamentais específicas pelas suas atitudes disciplinares. Numa perspectiva contrária encontra-se-ia a visão da criança como uma "tábua rasa" onde se poderia inscrever qualquer padrão ou resultado à partida.

Como os autores referem, assumir a criança como uma tábua rasa resulta da assunção da ideia de que cada criança irá reagir da mesma maneira a uma abordagem específica dos pais. Uma prática que tem um efeito favorável para uma criança seria desejável para todas. Mas, dado que uma atitude particular tem efeitos variados em diferentes crianças, as explicações para isso tendiam a ser dadas em termos da presença de influências contraditórias na mãe, pai ou irmãos. Esta abordagem do passado, é ainda defendida, muitas vezes, por pais e profissionais, mas tem, para os autores, muitas consequências infelizes. A criança que não possa responder a uma determinada regra fica em risco de uma desordem desenvolvimental. A mãe cuja criança não responde

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favoravelmente à regra fica culpada por causa da inadequação, desinteresse ou hostilidade para com a criança. Ou seja, o que se pode apontar a estas perspectivas é não terem em consideração cada criança como um ser individual, e com características próprias. Esta forma de conceptualização, requer que quem cuida da criança esteja atento ao fenómeno da individualidade temperamental, aos diferentes tipos de características temperamentais e à maneira pela qual essa individualidade temperamental molda as respostas da criança às práticas específicas dos adultos.

Ainda segundo Thomas e Chess (1977), o desenvolvimento da criança não se inscreve nem numa, nem noutra destas formas de conceptualização, quer ao nível do desenvolvimento biológico, quer psicológico. Pelo contrário, os autores defendem que a influência das características biológicas e psicológicas da criança, isto é, os traços de temperamento e os atributos cognitivos e perceptivos, são determinados pelas oportunidades, limites e pedidos da família e sociedade. Contrária e simultaneamente, a influência da família e da sociedade é moldada pela qualidade e grau da sua consonância ou dissonância com as capacidades da criança e estilo de funcionamento. Recordamos a este propósito o modelo do melhor ajustamento proposto por estes autores, referido no capítulo anterior, que se revela fundamental na análise do impacto das características individuais na interacção.

2.1. A bidireccionalidade e o papel activo da criança no seu desenvolvimento

Os aspectos que têm vindo a ser referidos ao longo deste capítulo, apontam no sentido da importância, inúmeras vezes referida, de considerar o impacto de factores de ordem biológica e de ordem socio-cultural no desenvolvimento da criança. Para além deste aspecto, será também correcto, afirmar-se a bidireccionalidade de sentidos em que essas influências se fazem sentir, isto é, o carácter recíproco com que se revestem as interacções da criança com outros elementos da cultura em que está inserida, pressupondo, esta perspectiva, um papel activo da criança no seu próprio

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desenvolvimento. Vamos de seguida debruçar-nos um pouco sobre estas questões relativas à bidireccionalidade dos efeitos nas interacções sociais, bem como à participação activa da criança nessas interacções.

Os estudos iniciais sobre a socialização na família centravam-se sobretudo num modo de organização unidireccional, abordando apenas os padrões de comportamento parental como determinantes dos resultados na criança. De facto, tal como Maccoby e Martin (1983) sublinham, durante os anos 70 poucos trabalhos existiram sobre os efeitos das características das crianças no comportamento dos pais. Esta ideia é também referida por Buss (1981) afirmando que os efeitos dos atributos da criança no comportamento dos pais era uma faceta negligenciada da interacção pais-criança e que empiricamente pouco foi feito para clarificar quais as características da criança que sistematicamente afectam o comportamento parental, bem como a forma como é exercida essa influência.

Mas as interacções que se estabelecem são recíprocas; não são processos estáticos, mas sim constantes e dinâmicos, que se enquadram nas mudanças que a criança, a família e a sociedade vão sofrendo ao longo do tempo. Esta perspectiva, ao contrário dos estudos iniciais, assume que, mesmo em idade precoce, existe uma participação activa da criança nesse processo (Bell, 1979). Como Maccoby e Martin (1983) salientam, é comum a ideia da importância de um adulto responsivo na interacção pais-criança, mas só recentemente se tornou proeminente a noção do valor da responsividade da criança na interacção. Este papel da criança no seu desenvolvimento que se reflecte na sua participação activa em situações de interacção é visível desde muito cedo. São numerosos os estudos que reflectem este papel; trata-se de um aspecto que parece ser consensual actualmente. Através das suas características pessoais, a criança influencia as atitudes educativas dos seus pais, tanto na forma como percebem o seu comportamento e atitudes, como na maneira como lhe reagem, estabelecendo-se assim uma reciprocidade de efeitos. Indo um pouco mais longe, Maccoby e Martin (1983) referem que esta ênfase colocada na contribuição da criança no padrão interactivo levou a

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questões sobre a sequência de acontecimentos que determinam o caminho que a interacção pais-criança irá tomar ao longo do tempo.

Se aplicarmos estas considerações ao temperamento da criança, poderemos então supor que existe um impacto das suas características temperamentais no seu próprio desenvolvimento, na medida em que esse desenvolvimento é marcado pela interacção social, que por sua vez sofreu a interferência das características da criança. As diferenças individuais (temperamentais) tendem a formar uma relação recíproca com variáveis ambientais, especialmente com os comportamentos exibidos com os caregivers (Bates, 1989b; Stevenson-Hinde & Hinde, 1986; citados por Katainen, Rãikkõnen, & Keltikangas-Jãrvinen, 1997), e, consequentemente, a expressão do temperamento é influenciada por variáveis ambientais de muitas formas (Katainen et ai, 1997).

Retomando a ideia que vínhamos a expor vamos centrar-nos na forma como as características temperamentais da criança podem exercer o seu

impacto nas atitudes disciplinares parentais, tanto através da percepção que os pais têm daquelas, como pela forma como lhes reagem, e consequentemente no estilo de interacção que se estabelece.