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Esta pesquisa abordará a sexualidade a partir da premissa de que ela é historicamente determinada, construída ao longo da vida de cada um, não apenas pessoal e individualmente, mas coletiva e socialmente, num contexto político, histórico e cultural. Não existe, portanto, uma inscrição definitiva, em qualquer lugar, sobre o que é permitido ou não em relação à sua vivência, estando sujeita a reformulações de acordo com cada época e grupo social, “(...)

pois cada sociedade inventa a sexualidade que pode inventar” (Catoné, 1994,

p. 7).

Entretanto, para assim abordar a sexualidade, propomos inicialmente uma delimitação, mesmo correndo o risco de não conseguir fazê-lo, do que iremos chamar de sexualidade. Cabe, para isso, fazermos conceituações, tomando os devidos cuidados, pois como salienta Louro, “(...) as palavras

podem significar muitas coisas. Na verdade, elas são fugidias, instáveis, têm múltiplos apelos...” (Louro, 2003, p. 14). De acordo com os interesses e lugares

onde se procura um significado, encontraremos tratamentos bastante distintos. Ressaltamos a importância desse cuidado porque as formas de referência à sexualidade mudaram ao longo do tempo. O seu conceito tem uma história. A linguagem que usamos está em constante evolução, e vem justamente indicar essa história (Weeks, 2001). Como destaca Orozco (2005), diante dessa diversidade de possibilidades, caberia falar em sexualidades e não em sexualidade.

Primeiramente cabe lembrar que, para que hoje exista interesse e busca pela compreensão da sexualidade, foi necessário percorrer um longo caminho. Tomemos, inicialmente, um pouco da história, do que já foi escrito sobre sexo e sexualidade; suas abordagens, seus discursos e transformações, pois “(...) os

significados que damos à sexualidade e ao corpo são socialmente organizados, sendo sustentados por uma variedade de linguagens que buscam nos dizer o que o sexo é, o que ele deve ser e o que ele pode ser” (Weeks, 2001, p. 43).

Para fazer essa construção das abordagens, discutiremos também, mesmo que brevemente, o conceito de gênero, intimamente relacionado à sexualidade, cujo desenvolvimento encontra-se estreitamente ligado aos movimentos sociais (Heilborn e Brandão, 1999).

Segundo o historiador Laqueur (2001), até o século XVII prevalece o modelo da existência de um corpo biológico único. A diferença sexual não era considerada quando se pensava nas diferenças entre homens e mulheres. O autor localiza nos séculos XVIII e XIX o momento histórico propício para essa mudança e ainda destaca o contexto social como responsável por essa diferenciação, e não apenas os progressos dos estudos científicos na

dissecação de corpos e os conhecimentos anatômicos daí advindos, pois “(...)

só houve interesse em buscar evidência de dois sexos distintos, diferenças anatômicas e fisiológicas concretas entre o homem e a mulher, quando essas diferenças se tornaram politicamente importantes” (Laqueur, 2001, p. 21).

Em seus estudos, o autor observa que nos textos pré-iluministas, o sexo era compreendido como um epifenômeno, e o gênero, atualmente lido como uma categoria cultural, era considerado primário ou “real”. Complementando essa construção escreve:

Foi no mundo do sexo único que se falou mais diretamente sobre a biologia de dois sexos, que era mais arraigada no conceito de gênero, na cultura. Ser homem ou mulher era manter uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural, não ser organicamente um ou outro de dois sexos incomensuráveis. Em outras palavras, o sexo antes do século XVII era ainda uma categoria sociológica e não ontológica. (Laqueur, 2001, p. 19)

Ainda em relação à passagem de um sexo único para a existência de dois sexos, Nunes (2000) aponta os dois sistemas de pensamento relacionados à construção da masculinidade e da feminilidade, que dominaram no Ocidente da Antigüidade tardia à Renascença. São eles: a teoria aristotélico-galênica e a judaico-cristã. A primeira teoria, baseada nos escritos de Aristóteles e Galeno, traz a supremacia masculina na geração do feto, em que, segundo Aristóteles, o homem é o responsável pela transmissão de todas as suas características. Essa supremacia aparece também na analogia dos órgãos masculino e feminino, proposta por Galeno, de forma que os órgãos

femininos eram considerados como inversamente semelhantes aos masculinos, encontrando-se dentro e não fora do corpo.

A segunda teoria apresentada por Nunes teve seu espaço a partir da ascensão e expansão do Cristianismo, que, assim como a teoria aristotélico- galênica, via a mulher como um homem inacabado, imperfeito. A essa supremacia acrescenta-se a possibilidade de salvação da mulher se ela se tornar homem, “(...) onde o deslocamento da feminilidade para a masculinidade

é entendido como um movimento progressivo em direção a um estágio mais alto de virtude” (Nunes, 2000, p. 33).

Somente nos dois últimos séculos, “sexo” passou a referir-se às diferenças anatômicas existentes entre homens e mulheres (Weeks, 2001). Cabe ressaltar que essas mudanças não se deram acidentalmente. Conforme abordamos acima, em Laqueur (2001), Weeks (2001) também ressalta a “(...)

complexa história, na qual a diferença sexual (sejamos homem ou mulher, heterossexual ou homossexual) e a atividade sexual acabaram por ser vistas como de importância social única” (Weeks, 2001, p. 42).

Da mesma forma, Weeks refere-se aos nossos comportamentos sexuais, que ao invés de serem um resultado natural da evolução humana, “(...)

têm sido modelados no interior de relações definidas de poder” (Weeks, 2001,

p.42). Para ilustrar essas relações de poder, o autor destaca as que acontecem entre homens e mulheres. Conforme vimos anteriormente, a sexualidade feminina tem sido definida a partir da masculina, conferindo à primeira um caráter inferior, se comparada à segunda. Outras relações de poder abordadas

por Weeks são os interesses da Igreja e do Estado sobre nossos comportamentos e pensamentos.

Louro (2003) destaca que, a partir dessa diferenciação anatômica, tem- se o argumento de que a relação entre homens e mulheres decorre dessa distinção biológica. Assim, “seja no âmbito do senso comum, seja revestido por

uma linguagem “científica”, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serve para compreender – e justificar – a desigualdade social” (Louro, 2003, p.

21).

Entretanto, essa argumentação torna-se insuficiente, pois não é a característica sexual que determina o que é feminino ou masculino. A discussão passa a girar em torno de um novo conceito: gênero, que vem dizer que é o contexto sócio-histórico que atribui às características sexuais determinado valor, e

para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade, importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se constitui sobre os sexos. (...) não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. (Louro, 2003, p. 21-22)

Partindo da idéia de construção sócio-histórica e cultural da sexualidade, a definição meramente biológica, natural, perde seu espaço, pois as relações de gênero explicam muito melhor questões relativas à sexualidade. Retirando o seu caráter natural, desconstruímos a sexualidade como naturalmente

desenvolvida, herdada, que estabelece a homogeneidade das vivências sexuais. A sexualidade humana não pode ser considerada natural porque não é pré-programada pela natureza. Vergote explica que a sexualidade

(...) pode e deve se formar e ela pode se deformar, como o mostram as perversões e, de maneira mais oculta e mais dolorosa, as neuroses. A sexualidade humana tem evidentemente uma base biológica; por isso há uma maturação neurocerebral, hormonal e fisiológica da sexualidade, exatamente como no animal. Mas essa base é sempre retomada numa formação propriamente psicológica. (Vergote, 2001, p.163)

Considerando essa perspectiva, temos que até o natural é social e culturalmente determinado, pois o que é considerado normal, natural numa determinada cultura, num dado momento histórico, pode ser desvalorizado em outra ou na mesma cultura em momentos diferentes (Loyola, 1999). Conforme Heilborn (1999), nem todos atribuem à sexualidade o mesmo grau de importância. O autor ainda afirma que

mais do que um recurso explicativo baseado em diferenças psicológicas, essa variação é efeito de processos sociais que se originam no valor que sexualidade ocupa em determinados nichos sociais e nos roteiros específicos de socialização com que as pessoas se deparam. (Heilborn, 1999, p. 40)

A sexualidade é, então, uma questão não só pessoal, mas também social, política, o que possibilita diversas formas de se fazer homem ou mulher,

assim, “(...) as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são

sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente. Elas são também, renovadas, reguladas, coordenadas ou negadas” (Louro, 2001, p. 9).

Assim como na religião, várias ciências, cada qual à sua maneira, lançam um olhar sobre a sexualidade, o que torna praticamente impossível uma unicidade conceitual. Loyola (1999) alerta para esse fato, ao apresentar as várias formas de se abordar a sexualidade, o que não impede uma articulação entre elas. Essas abordagens estão relacionadas à estruturação familiar; ao grau de parentesco; ao casamento institucionalmente sacralizado; à constituição da subjetividade individual ou como desejo na visão psicanalítica; ao aspecto biológico/genético para a medicina e também como problema político e moral a ser investigado pela sociologia ou filosofia.

A partir dessas diversas abordagens, vemos que a sexualidade tem sido tema recorrente nas últimas décadas, tanto para as ciências sociais, humanas, quanto biológicas. Heilborn e Brandão (1999) associam esse interesse pelo estudo da sexualidade a uma série de fatores, tais como: desenvolvimento dos métodos anticoncepcionais hormonais, epidemia de HIV/Aids, estudos sobre as relações de gênero, colaboração na construção do sujeito, dentre outros. Os autores explicitam que o olhar de uma única ciência não dá conta da complexidade do campo de investigação da sexualidade.

Independente dessa discussão, a sexualidade é comumente associada ou simplesmente definida como sexo ou relação sexual, encontrando no corpo o canal de expressão, através do qual nos relacionamos com o mundo e com a

realidade à nossa volta. Personificada no corpo, marca a existência de um local de controle, um alvo. Weeks (2001) abre um parênteses observando que,

(...) embora o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o corpo (...) tem tanto a ver com nossas crenças, ideologia e imaginações quanto com nosso corpo físico. (Weeks, 2001, p. 38)

O corpo torna-se então lugar de destaque no “controle” da sexualidade, construída a partir de valores morais, costumes sociais e culturais.

Considerando esse percurso, de um corpo biológico único, passando pelas relações de gênero, e atual destaque dado à sexualidade, a definiremos, então, como uma “(...) série de crenças, comportamentos, relações e

identidades socialmente construídas e historicamente modeladas” (Weeks,

2001, p. 43). É, portanto, o campo social o responsável pelas fronteiras que demarcam quem faz parte ou quem está à margem, quem se adequa ou não às suas normas. O autor complementa:

(...) só podemos compreender as atitudes em relação ao corpo e à sexualidade em seu contexto histórico específico, explorando as condições historicamente variáveis que dão origem à importância atribuída à sexualidade num momento particular e apreendendo as várias relações de poder que modelam o que vem a ser visto como comportamento normal ou anormal, aceitável ou Inaceitável. (Weeks, 2001, p. 43)

A sexualidade se expressa, manifesta no corpo; torna-se alvo de diversos tipos de controle. Veremos adiante a emergência da sexualidade humana e o estudo da sexualidade feminina na psicanálise.