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4. Invenções modernas e transformações cotidianas

“O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (...), nos pressiona

dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver nesta ou noutra condição(...). É [também], um mundo que amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares da infância, memória do corpo, dos gestos da infância, dos prazeres (...).99

Para Agnes Heller, a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de

98 PECHMAN, Robert. Um

Olhar Sobre a Cidade: Estudo da Imagem e do Imaginário do Rio na Formação da Modernidade. In: Cidade e História.

Salvador, UFBA/Faculdade de Arquitetura/ANPUR,

1992, p. 37.

99 LEUILLIOT, Paul. Apud

CERTEAU, Michel de, op. cit p. 31.

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sua personalidade; nela ele coloca todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade; nela ele coloca todos os sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades, sentimentos, paixões, idéias. A vida cotidiana abrangeria a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação.100

Território por vezes desprezado pelos estudos históricos, os domínios do cotidiano revelam práticas comuns, experiências corriqueiras, “maneiras de fazer” diárias, “solidariedades e lutas que organizam o

espaço.”101 Essa história, por vezes vista como uma “não-história”,

interessa-se pelo aparentemente invisível, por atitudes, reações e sensações, não de forma a regressar a um tipo de estudo que privilegiava o indivíduo como unidade, mas encarando o sujeito enquanto autor de operações e esquemas de ação que representam formas de enfrentar um dado contexto histórico. Nesse sentido, nosso ponto de interesse não se concentra nos indivíduos em si, mas nas suas múltiplas maneiras de atuação, ocultas por trás de uma ordem econômica e política dominante.

Na virada do século XIX para o XX, as modificações advindas da chamada Revolução Científico-Tecnológica, desencadeada inicialmente na Europa a partir da segunda metade do século XIX, trouxeram profundas repercussões para a vida cotidiana das pessoas nas mais variadas partes do mundo. Isso se dava na medida em que os desdobramentos de um movimento expansionista chegaram a atingir lugares distantes e ocultos, firmando a integração global do mercado capitalista.

Alicerçada no desenvolvimento de um conhecimento científico que se consolidava gradativamente, a também chamada Segunda Revolução Industrial possibilitou, de acordo com Hobsbawm, “o desenvolvimento

de novos potenciais energéticos, como a eletricidade e os derivados do petróleo, dando assim origem a novos campos de exploração industrial, como os alto-fornos, as indústrias químicas, novos ramos metalúrgicos, (...) além de desenvolvimentos na área de microbiologia, bacteriologia e da bioquímica, com efeitos dramáticos sobre a produção e conservação de alimentos, ou na farmacologia, medicina, higiene e profilaxia, com impacto decisivo sobre o controle das moléstias, a natalidade e o prolongamento da vida.”102

Estreitamente ligada à modernização técnico-científica, a modernidade chegava e começava a expandir-se por várias partes do mundo. Conceitos controversos, alvos de concepções bastante

100 HELLER, Agnes. O

cotidiano e a história. Rio de

Janeiro, Paz e Terra, 1992.

101 Neste trabalho tomamos

como ponto de apoio teórico as análises de Michel de Certeau sobre o cotidiano. Ver, CERTEAU, Michel de, op. cit pp. 35-43.

102 HOBSBAWM, E. J. A era

do capital. Apud SEVCENKO,

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61 polêmicas, as idéias de modernização e de modernidade são motivo

de debates exaustivos em diversas áreas do conhecimento. Baudelaire, Marshall Berman, Jacques Le Goff, Walter Benjamin e tantos outros contribuíram para o enriquecimento dessa discussão, ao buscarem compreender as inter-relações entre o novo e o velho, o antigo e o moderno.

No ensaio Antigo/Moderno, Le Goff enfatiza que os termos antigo/ moderno são construções de períodos históricos específicos, que nem sempre se opuseram um ao outro. Sua identificação com conotações positivas ou depreciativas variou segundo a época. A partir de um estudo das transformações que os termos antigo, tradicional, novo,

moderno sofreram desde a Antigüidade Clássica até os dias atuais,

o autor acrescenta que a noção de “moderno” passa a assinalar, desde o advento do capitalismo, “a tomada de consciência de uma ruptura

com o passado, sendo identificado com o ‘novo’, em oposição ao

‘antigo’, ‘tradicional’, ‘velho’”.103

Com a Revolução Industrial, de meados do século XIX até o século XX, Le Goff destaca o aparecimento de termos que se transformam em novos pólos de conflito: modernismo, modernização e modernidade. Para ele, a noção de modernismo estaria ligada aos movimentos de ordem literária, artística e religiosa que ocorreram na virada do século XIX para o XX. A modernização se vincularia às estruturas e aos processos materiais, principalmente técnicos e econômicos, e a modernidade, termo lançado por Baudelaire, ter-se-ia imposto no campo da criação estética, da mentalidade e dos costumes.

Mais recentemente, Marshall Berman critica essa bifurcação da vida moderna em dois níveis, o material e o espiritual, encarados enquanto estruturas autônomas, o que acabaria, na sua concepção, por dificultar a apreensão da interdependência e da teia complexa e intrincada representada pelo relacionamento entre os dois níveis. Para ele, ser moderno constituiria uma grande e contraditória aventura, “dir-se-ia

que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até o nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis(...), assim, ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição(...). É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem(...).”104 Significa, portanto, viver em

103 LE GOFF, Jacques.

História e Memória.

Campinas, UNICAMP, 1996, p.172.

104 BERMAN, M. Tudo que é

Sólido Desmancha no Ar.

São Paulo, Cia. das Letras, 1986, p. 14.

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constante perigo, arriscando e convivendo com as contradições. No livro (Des)Encantos Modernos: histórias da cidade do Recife na

década de vinte, Antônio Paulo Rezende analisa as diversas visões

do tema, fazendo uma série de reflexões, enfocando, dentre outras, a obra de Henri Lefèbvre. Rezende destaca que, para Lefèbvre, modernidade significa um momento de reflexão crítica, que deve ser distinguida do conceito de modernismo. O modernismo toma conta das manifestações estéticas; com novas formas de olhar, diferentes imagens, novas palavras, percepções às avessas: “Manifesta-se na

busca constante pelo novo, penetrada por crises, danos e catástrofes.” Já o conceito de modernidade é o produto da reflexão

sobre essas transformações e contradições do mundo moderno. Assim, Lefèbvre afirma que “a história do modernismo não pode ser

escrita sem a do conceito de modernidade e reciprocamente.”105

Baudelaire, cuja obra traz uma reflexão marcante sobre o tema, acreditava que “a modernidade é o transitório, o efêmero, o

contingente (...); assim, a indumentária, o penteado, e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem seu porte, seu olhar e seu sorriso) formam um todo de completa vitalidade. Não temos o direito de desprezar ou prescindir desse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão freqüentes.”106 Com uma visão permeada de

desencanto e de uma atitude de certo conformismo diante da cidade moderna, o herói de Baudelaire, o flâneur, transforma-se em um “abandonado na multidão”, num espectador da paisagem da cidade cujo prazer é morar “na massa, no ondulante... ver o mundo, estar no

centro do mundo e ficar escondido no mundo.”107

Neste trabalho, adotaremos, com certa flexibilidade, a conceituação dos autores exposto, compreendendo a modernidade enquanto etapa histórica, conforme destaca Nestor Canclini; a modernização como um processo socioeconômico que vai construindo a modernidade, e os modernismos enquanto projetos culturais que renovam as práticas simbólicas com um sentido experimental ou crítico.108

Em princípio do século XX a modernização chegava às principais cidades brasileiras. Contudo, é necessário destacar que boa parte das novidades advindas desse crescimento na produção de novos produtos e invenções não foi acessível a todos, indistintamente. Inicialmente, poucos foram os que tiveram condições de experimentar o turbilhão dos novos produtos e as “comodidades” que começavam a chegar à cidade.

Contudo, o acesso aos novos utensílios e serviços não dependia

105 REZENDE, Antônio Paulo.

(Des) Encantos Modernos: Histórias da Cidade do Recife na Década de Vinte.

Recife, Fundarpe, 1997.

106 BAUDELAIRE, Charles.

Sobre a Modernidade. Rio

de JANEIRO, Paz e Terra, 1996, p. 25.

107 BENJAMIN, Walter. Obras

escolhidas III. Charles Baudalaire, um lírico no auge do capitalismo. São

Paulo, Brasiliense, 1994, p. 221.

108 CANCLINI, Nestor García

Culturais híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.

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63 apenas do poder aquisitivo das pessoas, mas

também das escolhas e opções pessoais, uma vez que a aceitação do novo não foi um processo rápido e automático. Resistências e desconfianças acompanharam esse momento de transformação de hábitos e comportamentos. Um bom exemplo disso é a história relatada por Gregório Bezerra, empregado doméstico de uma família de posses no Recife, em meados da década de 1910, quando o discurso sanitarista e higienista estava no auge:

“Cuidava sozinho das minhas tarefas: limpeza da casa (...), por e tirar a mesa (...), lavar os pratos, a pia, o banheiro, a privada (...), e ainda apareceu mais a tarefa nojenta de lavar três vezes por dia as escarradeiras, em número de onze, e igual número de pinicos cheios de merda e mijo fedorentos (...). Minha raiva era grande, porque eu lavava com sabão toda a louça do banheiro, o piso, areava e lavava a bacia da privada duas vezes por dia e, apesar disso, a família latifundiária só

cagava e mijava nos pinicos de porcelana.”109

As resistências ao uso do banheiro e suas instalações eram tão grandes por parte da abastada família que, para livrar-se da ingrata tarefa de limpar os pinicos, o menino Gregório resolveu, não enxugá-los mais, deixando, segundo ele, que “molhassem a bunda das grã-finas.” Sem sucesso na sua tentativa, ele decidiu partir para o conflito e, num ato de desafio, quebrou alguns dos pinicos de porcelana para dessa forma forçar os ricaços a usarem as bacias sanitárias. Parece que nem assim o costume foi alterado, mostrando a força das práticas e hábitos tradicionais em contraste com o “novo.”

Aos poucos, no entanto, os novos artigos e hábitos iam-se popularizando, os transportes e as comunicações tornavam-se acessíveis, diversões transformavam-se em realidade para um número cada vez maior de pessoas. A modernidade chegava de forma diferente, em dimensões imensamente desiguais, mas seus efeitos desconcertantes acabavam alcançando a todos, sobretudo os moradores das maiores cidades brasileiras da época. Como cada um reagiria a esse contato, o que faria com as novas informações recebidas, como incorporaria ou rejeitaria esse novo universo, era imprevisível na época.

De uma forma ou de outra, em ritmo e extensão diversos, todos foram atingidos pelas transformações.110 Segundo Marshall Berman, a postura de

celebração e luta diante do novo, que em parte exercia sedução e em

13. Aparelhos domésticos alimentados a gás, como fogões, aquecedores de água e ferros de engomar, foram responsáveis por grandes alterações na rotina das pessoas da época. (Aparelhos a gaz, 1929).

109 BEZERRA, Gregório, op.

cit pp. 104-105.

110 Sobre o impacto da

chegada da modernidade às cidades brasileiras, mais especificamente ao Rio de Janeiro, ver , dentre outros, SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: História da vida

privada no Brasil 3. São Paulo,

Companhia das Letras, 1998, pp. 514-619. Do mesmo autor, ver também Orfeu estático na

metrópole. São Paulo,

Companhia das Letras 1992. Além de SÜSSEKIND, Flora.

Cinematógrafo de Letras:literatura, técnica e modernização no Brasil. São

Paulo, Companhia das Letras, 1987. SCHWARCZ, Lilia & COSTA, Ângela M. da . 1890-

1914: no tempo das certezas.

São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

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parte amedrontava, seria uma das características da modernidade enquanto experiência histórica individual e coletiva.111

O século XX chegou ao Recife cheio de novidades. Nos anos 20, os reflexos dessa verdadeira revolução no campo da produção podiam ser percebidos pelas propagandas ou reclames112 estampados nos jornais e revistas em

circulação. Eram anúncios que estimulavam o uso dos mais diferentes produtos, divulgavam as máquinas que facilitavam a execução de tarefas domésticas e traziam conforto ao lar, ou simplesmente que divertiam as pessoas. A chegada dessas novidades, algumas mais outras menos acessíveis ao conjunto da população, provocaria grandes alterações na vida cotidiana da população da cidade, assim como estava ocorrendo em outras partes do mundo.

No entanto, os usuários desses novos produtos e utensílios domésticos não podem ser analisados como simples receptores, que cedem de forma conformada e obediente aos apelos de um mercado que avança ganancioso em busca de cada vez mais adeptos. Segundo Michel de Certeau, a operação de consumo caracteriza-se por “suas astúcias (...),

suas ‘piratarias’, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios, mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos.”113

Para Certeau, ao se servirem de inventividades próprias, os consumidores metaforizam a ordem dominante, fazendo-a funcionar em outro registro. Longe de ser simples marionetes nas mãos do jogo imposto pelo mercado, eles usam ‘golpes’, práticas inventivas, e escapam silenciosamente à conformação que a razão técnica lhes tenta impingir. Com suas táticas e operações multiformes, “eles desenham as astúcias de interesses outros e

de desejos que não são nem determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem.”114 Essas artes de fazer, anônimas e silenciosas,

difíceis de captar, precisam ser consideradas nas análises e trabalhos que abordam o consumo e usam como fonte a propaganda.

Símbolo máximo do século XX, a luz elétrica, que havia sido a grande estrela da Exposição Universal de Paris em 1900, começa a se difundir e a se tornar acessível a alguns segmentos da cidade do Recife na década de 1920, quando lojas, residências, escritórios e consultórios passaram a contar com iluminação elétrica.115 Em 1927, o Jornal do Recife publicava

anúncio da General Eléctric, o qual nos dá pistas sobre o poder aquisitivo daqueles que começavam a ter acesso à luz elétrica. Sob o título “A luz é

o conforto do pobre”, a publicidade destacava os benefícios da energia

elétrica, demonstrando que já havia certa popularização das instalações elétricas, inclusive entre os trabalhadores da cidade:

111 BERMAN, Mashall. Tudo

que é sólido desmancha no ar; a aventura da modernidade.São Paulo,

Companhia das Letras, 1986.

112 A palavra “reclame” era

usada na época para referir- se a toda sorte de publicidade feita por meio de cartaz, anúncio ou prospecto; tipo de observação publicada em periódico com fins publicitários ou informativos. Ver dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.

113 CERTEAU, Michel de. A

invenção do cotidiano.

Petrópolis, Vozes, 1994, p. 94.

114 Idem, p. 45. 115 As experiências com a

iluminação elétrica vinham sendo realizadas no Recife sem sucesso desde as últimas décadas do século XIX. Foi na virada do século, com a construção por Delmiro Gouveia, no Derby, do mercado Coelho Cintra e instalação de uma série de divertimentos que permaneciam funcionando durante a noite, como barraquinhas de prendas e jogos, cafés, dentre outros, que se viu na cidade, pela primeira vez, a iluminação elétrica instalada em um espaço público mais amplo.

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65 “Os operários também poderão ter boa iluminação, alegrando os seus

lares, dando-lhes uma boa aparência, comprando as econômicas,

duráveis e baratas lâmpadas Edison Mazda.”116

Não foi rápida a introdução da luz elétrica nas residências. Não era fácil para as empresas convencer a população das vantagens do seu uso, em substituição a velas, lamparinas e candeeiros. As resistências e a antidisciplina de que fala Certeau estiveram presentes durante todo esse processo. Uma outra propaganda, também da General Electric, dá a idéia de que uma verdadeira “batalha” foi instituída no sentido de convencer a população quanto às vantagens desse tipo de energia que, de acordo com o anúncio, “não faz fumaça, acenderá sem fósforo, e não se derreterá.” Numa espécie de história em quadrinhos, os exércitos da rainha Edison Ideal, monarca de um país chamado Lampol, representados por tropas de lâmpadas, batem-se contra o inimigo das terras da Sombrilândia, cujos ministros, formados por velas e candeeiros, atarantados diante da batalha que se travará, “fumaçam e cospem

azeite e querozene.” No final da historieta, diante do “ataque inteligente” do exército de lâmpadas, velas e candeeiros fogem

em disparada, “vencendo a sapiência da General Electric.”117

14. (General Electric, 1926). 116 Jornal do Recife, 01/01/1927, p. 27. 117 Jornal do Recife, 07/11/1926, p. 9.

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Utensílios domésticos movidos a eletricidade eram anunciados diariamente nos jornais da cidade. Geladeiras Frigidaire e General Electric, “cujo uso equivale a um

resistente escudo para a defesa da saúde”, eram vendidas

em lojas da Avenida Rio Branco. Vitrolas ortofônicas, que garantiam executar “plenamente qualquer número de música

e cantos clássicos e regionais”, podiam ser adquiridas na

Casa Odeon, na Rua Nova 285. Outros aparelhos elétricos que ofereciam à dona de casa “limpeza, economia e eficiência

em casa”, como ferros de engomar, ventiladores, chaleiras,

bules e até acendedores de cigarro, eram oferecidos pela loja Souza Ferreira, localizada também na Rua Nova.

Esse conjunto de novos utensílios passou a interferir diretamente na realização das tarefas domésticas, impondo novas formas de fazer, intervindo no processo de preparação e conservação dos alimentos, esvaziando gestos que eram praticados cotidianamente, transformando donas de casa e empregados domésticos em simples observadores, que olhavam a máquina enquanto essa desempenhava uma tarefa que fora sua. Walter Benjamin ressalta que “o conforto isola, [mas], por outro lado, ele aproxima da mecanização os

seus beneficiários. Surge uma série de inovações que tem uma coisa em comum: disparar uma série de processos complexos com um simples gesto.”118 O ato de atender o telefone, acender a luz, o clique do fotógrafo são

exemplos da mudança que as novidades técnicas começaram a impor à percepção sensorial das pessoas da época.

Segundo Luce Giard, a industrialização dos produtos e utensílios trouxe muitos benefícios, como o aumento das condições de higiene e conforto e a facilitação do trabalho: “Muitas tarefas repetitivas e diárias foram aliviadas ou simplificadas,

graças a essas inovações. Mas tudo isso também teve seu preço: equilíbrios antigos foram rompidos na transmissão das habilidades (...) e na gestão do tempo.”119 Gestos e costumes tradicionais não foram rompidos simplesmente

com a chegada de novos utensílios e aparelhos eletrodomésticos às residências, mas em função da transformação de toda uma cultura material e de uma nova ordem que começava a se estabelecer: a lógica da sociedade de consumo. Esses artigos de utilidade doméstica começam a mudar não apenas os hábitos diários, mas também o espaço interno das casas e o próprio gosto estético das pessoas. O tamanho das cozinhas e de outros cômodos das residências foi alterado, a arrumação dos móveis mudou, destacando os novos aparelhos, instalações de fios e pontos de luz passaram a ser uma necessidade. A decoração das residências do Recife ganhava novos 15. O ambiente das

cozinhas domésticas foi alvo de muitas mudanças. Os anúncios de geladeiras, inspirados nos modernos ideais de higiene e limpeza, prometiam a conservação dos alimentos, trazendo saúde aos seus usuários. (Adriano Ferreira e Cia, 1930).

118 BENJAMIN, Walter. Obras

escolhidas III. Charles Baudalaire, um lírico no auge do capitalismo. São

Paulo, Brasiliense, 1994, p.124.

119 GIARD, Luce. A invenção

do cotidiano. 2 Morar, cozinhar. Petrópolis, Vozes,

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67 elementos, como os abajures, as lâmpadas multicores para as árvores de

Natal, comercializadas pela firma Bezerra Autran e Cia., além de ventiladores, rádios, fonógrafos e outros aparelhos que passaram a compor a ambientação e a exigir espaços específicos, dependendo do seu uso.

No entanto, se, por um lado, os aparelhos elétricos como geladeiras, cafeteiras, vitrolas e rádios facilitavam as tarefas domésticas e traziam as notícias do