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espaços, pessoas e imagens

1. Os anos 1920 vão chegando ao fim

Recife, terça-feira, 31 de dezembro de 1929. O movimento nas principais ruas do centro da cidade era grande. Diário!... Província!... Commercio! ...gritavam os gazeteiros “pelas ruas da cidade, subindo

e descendo dos bondes em movimento, em perigosas acrobacias”,

apregoando os jornais no final dos anos vinte.1

Nas primeiras páginas, as manchetes destacavam as principais noticias. O Jornal Pequeno salientava “A Sucessão Presidencial”, descrevendo a recepção festiva que os candidatos da

Aliança Liberal, Getúlio Vargas e João Pessoa, tiveram ao chegar ao Rio de Janeiro no dia anterior.2 Noticiava

também, com preocupação, a crise de produtos de primeira necessidade e a alta nos preços da carne na cidade.

Na matéria “O estoque de charque em

Recife reduzido a 200 fardos?”, o

jornalista comentava as dificuldades no abastecimento de alimentos na cidade, informando a respeito da falta de ‘carne

verde’ no mercado e da redução dos estoques de charque.3 O futebol

também ocupava espaço nas folhas. “Os cariocas são os campeões de

futebol no Brasil”, dizia a notícia do Jornal do Recife, ressaltando a vitória

dos cariocas sobre os paulistas pelo escore de 3x1, e destacando a assistência que compareceu ao estádio do Fluminense, calculada em 40.000 pessoas, número bastante expressivo para a época.4

Os periódicos do final dos anos vinte divulgavam também uma outra face da cidade. Era o Recife das prisões por vagabundagem, agressões a facas, pauladas, e dos atropelamentos, ocorrências que faziam parte do cotidiano da cidade. Na coluna Na Polícia e nas Ruas, o Jornal do Commercio destacava a manchete “O quarteto da

Covardia”, noticiando as agressões sofridas pelo popular Manuel

Avelino dos Santos, pardo de 27 anos, atacado por quatro indivíduos quando passava pela rua de Santa Rita, “os quais lhe vibraram várias

cacetadas, no couro cabeludo, evadindo-se após.”5

Para os que desejavam divertir-se nos cinemas , os jornais traziam a programação dos diversas salas de projeção dos bairros do centro, como o Royal e o Helvética, e a dos cines dos subúrbios, como o High Life em Casa Amarela, o Real na Madalena, ou o Odeon em

1. A Rua Primeiro de Março, antiga Rua do Crespo, era uma das mais

movimentadas da cidade nos anos 1920. Autos, bondes, pedestres e outros veículos, que circulavam nos novos ritmos impostos à vida urbana, faziam dessa artéria uma das campeãs em congestionamentos e acidentes na época. (Recife, 1920-1930)

1 No Recife do início do

século crianças,

adolescentes e os homens que vendiam jornais pelas ruas eram chamados de

gazeteiros, por influência do

antigo jornal recifense Gazeta

da Tarde. Ver WANDERLEY,

Eustórgio. Tipos populares do

Recife antigo. Recife, Colégio

Moderno, 1953, 1ª série, p.18. 2 Jornal Pequeno, 31/12/ 1929, p.1. 3 Jornal Pequeno, 31/12/ 1929, p. 1. 4 Jornal do Recife, 31/12/ 1929, p. 2. 5 Jornal do Commercio, 01/ 01/1920, p.2.

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Casa Forte. No Cine-teatro Moderno, na Praça Joaquim Nabuco, bairro de Santo Antônio, anunciado nos jornais como “o cinema da

‘elite pernambucana’ – que só exibe filmes de reconhecido valor artístico”,6 no último dia do ano passava a fita “Delitos de Amor”, com

Corinne Griffith e Edmundo Love. Já no cine Glória, localizado no pátio do Mercado de São José, um dos mais populares da cidade, era exibida, na soirée, a fita “Glorificando a Mulher.”

Contudo, de todos os assuntos, aquele que ganhava maior destaque na maioria dos jornais no final dos anos 1920 era o referente às comemorações pela passagem do ano na cidade e subúrbios, conhecidas na época como festas do “Ano Bom.”

O Jornal do Recife abria sua primeira página com o seguinte título em letras garrafais: “Ano Bom - festas comemorativas da passagem de

ano nesta Capital, subúrbios e Olinda.”7 De acordo com o periódico,“os

locais mais procurados, como sucedeu em anos anteriores, são Olinda, Casa Forte, Belém da Encruzilhada, Largo da Paz, Afogados, Pina e Boa Viagem.” Nessas localidades, além da tradicional missa, variadas

formas de divertimento atraíam o público para as comemorações: coretos com bandas de música, como a do professor Catanho, que tocaria em Água Fria; barraquinhas de prendas vendendo “doces, bolos, frios e

gelados”; presépios familiares ensaiados por senhorinhas da nossa

sociedade, a exemplo do que se apresentaria em Boa Viagem; pastoris profanos, com suas ousadas pastoras e irreverentes ‘velhos’, como o do afamado velho “Canela de Aço”, que dançaria no Pina; mamulengos, como o do dr. Baubau, programado para festa de Casa Forte. Fariam também a alegria dos presentes bumbas-meu-boi, fandangos, salvas de tiros, repiques de sinos, carrosséis, balões, fogos de artifício.

Entretanto, naquela noite festiva, em todas as localidades, o destaque especial era para um outro tipo de “diversão”: a iluminação elétrica. Nas notas correspondentes aos festejos em cada um dos subúrbios, enfatizava-se a luz elétrica, evidenciando o caráter mágico, fantástico, encantador que ela representava para as pessoas da época. Em Belém da Encruzilhada, “a iluminação será feérica, de 50.000 velas”; em Casa Forte, “a campina e a fachada da igreja estarão com iluminação

deslumbrante.” Em Boa Viagem “a fachada da igreja se apresentará feericamente iluminada, oferecendo aspecto deslumbrante.”8 Assim, a

grande atração nessa noite de festa não eram as tradicionais celebrações religiosas ou as conhecidas cantorias e danças da terra, mas sim, a energia elétrica, invenção moderna, fruto do progresso e da civilização, que transformava a noite praticamente em dia.

6 Jornal do Commercio, 01/

01/1920, p.2. No decorrer do trabalho, respeitamos fielmente a pontuação e a gramática dos documentos de época, atualizando apenas a ortografia das palavras.

7 Jornal do Recife,

31/12/1929, p.1.

8 Programação das

festividades de final de ano.

Jornal do Recife,

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19 Em Casa Forte, onde de acordo com os jornais a programação estava

sendo preparada “com esmero” pela comissão de festas, prometia- se aos presentes “uma verdadeira apoteose”: “Cinco minutos antes

da meia-noite será desligada toda a iluminação da Campina, e com o toque do sino da Matriz anunciando a passagem do Ano, serão queimados (...) fogos de bengala em toda a extensão da campina e os clarins do Esquadrão da Cavalaria anunciarão o romper do Novo ano e na torre da Igreja, apresentar-se-á um letreiro com os seguintes dizeres: SALVE 1930!.”9

“Les années folles”, “os loucos anos vinte”, ou “os frenéticos anos vinte”,

como alguns estudiosos que centraram sua investigação nas grandes cidades européias cognominaram o período, iam terminando no Recife com uma festa diferente, onde a luz elétrica, o cinema, os parques de diversão movidos a energia elétrica se disseminavam e passavam a fazer parte não apenas das comemorações mas também do cotidiano das pessoas. Muita coisa havia mudado nesse início de século... E, de acordo com a visão de alguns contemporâneos, mudado rápido demais. A partir do início do século XX, os ritmos da cidade

aceleravam-se. Automóveis começavam a circular pelas ruas, novas formas de comunicação possibilitavam em curto espaço de tempo o conhecimento dos fatos marcantes que ocorriam pelo mundo. Os jornais diários impressos no Recife, como A Província, o Diário de Pernambuco, o Jornal do

Recife, o Jornal Pequeno, Jornal do Commercio, Diário da Manhã, Diário da Tarde, A Noite, A Rua, A Notícia, dentre

outros menores, deixavam o leitor informado dos principais acontecimentos.10

Por meio da imprensa, tomou-se conhecimento, por exemplo, do êxito do aeronauta brasileiro Santos Dumont, que conquistou os céus de Paris com seu balão dirigível em 1901, das tramas políticas que envolveram as eleições dos candidatos mineiros e paulistas à Presidência da República, da passagem do cometa de Halley em 1910. Os leitores acompanharam, também, o

desenrolar dos conflitos que desencadearam a I Guerra Mundial, as lutas internas na revolucionária Rússia de 1917 e a grande mortandade causada no Brasil pela gripe espanhola em 1918, que não poupara nem o presidente eleito Rodrigues Alves. Informaram- se, ainda, sobre as sucessivas crises na exportação do café, seguiram os passos da Coluna Prestes pelo país entre 1924 e 1926,

2. As revistas ilustradas divulgavam os novos padrões de beleza

femininos, associados aos ideais de saúde, juventude e culto ao corpo. (Revista da Cidade, 1928).

9 Idem., Ibidem. 10 Sobre o papel da

imprensa no Recife dos anos vinte, ver SOUZA BARROS, M. A década de 20

em Pernambuco. Recife,

Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1985, pp.179-195.

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e as peripécias de Lampião e seus cangaceiros pelos sertões do nordeste ao longo da década.

Com relação à política, os anos vinte revelavam um processo de exclusão da grande maioria da população das atividades ligadas ao exercício do poder no Estado, assim como no restante do país. Segundo Souza Barros, no Recife dos anos 1920, “a conspiração

estava no ar que se respirava.”11 Eleições suspeitas, alianças e

manobras eleitoreiras entre políticos poderosos, comícios conturbados, reuniões secretas em que se criticava o governo, como a “Conspiração da Rua Nova”, em 1925; encontros furtivos para debater a libertação do proletariado; rebeliões, como a de Cleto Campelo, em 1926; agitações, greves e conflitos de rua, repressão policial violenta, mortes...12 Os chefes políticos, como Rosa e Silva,

Dantas Barreto, Manuel Borba, dentre outros, maquinavam alianças políticas com seus próprios opositores, em um vai-e-vem complicado. Como enfatizou Lemos Filho, “importantes personagens,

responsáveis pelo destino do povo, entretinham-se em reviver a ciranda dos tempos infantis, dando voltas e meias voltas.”13

Enquanto a brincadeira do marré político ocupava os chefes dos partidos, lideranças dos trabalhadores, como Cristiano Cordeiro, Joaquim Pimenta, dentre outros, tentavam fugir ao esquema restrito de participação popular imposto pelas leis republicanas, organizando associações, promovendo comícios, greves, enfrentando a polícia. Entretanto, apesar da crescente importância do movimento e da maior organização dos trabalhadores, a estrutura rígida de poder e os espaços de luta e participação muito limitados dificultavam alterações no quadro político, acabando por apresentar aos trabalhadores alternativas restritas, em que a associação e a barganha política com os tradicionais caciques acabavam por se tornar a opção possível.14

Uma dos motores dessa engrenagem de dominação era o sistema eleitoral. Tendo como critério básico a alfabetização, as leis republicanas excluíam do direito de voto aproximadamente 85% da população total do Estado, terminando por reduzir a participação eleitoral e facilitar o domínio dos coronéis e chefes políticos. A partir da utilização dos mais diversos meios, na maioria das vezes ilícitos, esses políticos controlavam os votos e coagiam os eleitores nas cidades e no interior.15

O episódio da sucessão de José Bezerra é um exemplo dos momentos políticos conturbados que a cidade viveu nos primeiros anos da década de vinte. A morte do governador durante o mandato, sem