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Mapa 21 África do Sul: 1994

3 MANUAIS ESCOLARES, COMPÊNDIOS E LIVROS DIDÁTICOS: O CASO DA

3.3 D IRETRIZES EDUCACIONAIS DE 1890 A 1930

Na passagem do Império à República, os interesses em controlar a difusão dos saberes nos compêndios escolares estavam na base do controle da distribuição das obras. Esse modelo de fiscalização foi aos poucos se fortalecendo. Segundo Bittencourt (1993, p. 72), “Esta foi uma tendência iniciada nos anos finais do Império que passou a prevalecer na fase republicana, inclusive para as escolas primárias”. Notamos que existem diversas formas de se pensar a respeito do conteúdo dos livros, pois nesse período o Estado atuava controlando o saber escolar, divulgando assim na obra didática o que era de seu interesse.

Em particular, os livros de Geografia traziam informações relativas a dados físicos, humanos e políticos de diferentes territórios. Elas se apresentavam na forma de nomenclaturas, dados, tabelas, lista de objetos, descrições e ilustração de lugares, paisagens, nomes de rios, cidades, estados e explicações gerais.

De certa forma, a política de controle do compêndio e seu conteúdo foi primordial para a afirmação do Estado imperial e republicano como órgão responsável pelo saber da disciplina escolar. Em um registro a respeito do ensino e a educação no Brasil, José Veríssimo (1890) dedica sua atenção às disciplinas escolares. Em particular a respeito da Geografia escolar, Veríssimo (1890, p. 92) registra:

Nesta matéria, a nossa ciência é nomenclatura e em, geral cifra-se à nomenclatura da Europa. É mesmo vulgar achar entre nós quem conheça melhor essa que a do Brasil. A Geografia da África, tão interessante e atrativa, a da Ásia ou da Oceania e até da América, que após a nossa é a que mais interesse nos devia merecer, mesmo reduzida a essa estéril denominação, ignoramos completamente. E o pior é que nosso conhecimento dos nomes de diversos acidentes geográficos da Europa nos torna orgulhosos e prestes sempre a ridicularizar os frequentes desacertos dos europeus, principalmente franceses quando se metem a tratar das nossas coisas. Percebe-se nas críticas de Veríssimo (1890) que a Geografia poderia fazer outra leitura da realidade além da catalogação, enumeração de conteúdos enciclopédicos eurocêntricos com caráter essencialmente aquisitivo e verbalista. Ele também chama a atenção para a Geografia da África como um caminho para uma nova metodologia e forma de olharmos para o próprio Brasil. Porém veremos que os conteúdos publicados nos livros escolares continuaram, na República, os mesmos do período imperial. E com a leitura desse autor

acreditamos que a disciplina Geografia precisa ser entendida e problematizada em conjunto com o livro didático no seu recorte – para a presente pesquisa, o recorte é a África. Nessa perspectiva podem ser abordados alguns aspectos, entre os quais o momento em que se difundiu o tema da África na disciplina escolar Geografia.

No início do período republicano, a Geografia escolar tinha como indagações os temas do seu conteúdo, fato imbricado ao método de ensino adotado. Os debates e propostas de cunho teórico e metodológico estavam ligados à passagem do regime político. Sobre esse assunto, Isller (1973, p.72-73) observa que o conteúdo da Geografia escolar se manteve com a carga descritiva, de visão enciclopédica, mnemônica, mantendo a base científica da época anterior. Fazia parte desse período a reprodução do conteúdo por modelos de memorização.

É preciso considerar que tais ideias fizeram parte de um determinado período do pensamento geográfico europeu no Brasil. A Geografia escolar aqui implantada fazia parte de um modelo que vinha se desenvolvendo na Europa, carregado de uma herança colonial de conquistas e anexações territoriais inscrita em um interesse e uma configuração política, como diria Wallerstein (1989), de uma economia-mundo, assim como os intelectuais, professores e autores de livros didáticos possuem suas filiações e distinções acadêmicas. Inclusive as teorias de pensamento eurocêntrico que marcaram seus registros nos livros escolares no ensino de Geografia.

Como veremos no próximo capítulo, defendemos que tais pensamentos e propostas são as causas da presença das teorias raciais no meio acadêmico brasileiro e possivelmente no contexto dos livros, até porque tais saberes faziam parte de um modelo legitimador de diretrizes que vinham se construindo e tomando forma no Brasil, em particular nas teorias geográficas de Estado, território, população, civilização e poder. O que podemos dizer de antemão é que houve uma homogeneidade em explicar a África abordando a formação dos seus Estados e sua população com inspiração nos cânones do cientificismo europeu.

Durante a Primeira República, de 1890 a 1930, foram cinco as reformas educacionais implementadas no Brasil. A primeira delas, a reforma Benjamin Constant, vigorou de 1890 a 1901; a segunda, a Epitácio Pessoa, foi de 1901 a 1911; a terceira, Rivadávia da Cunha Corrêa, de 1911 a 1915; a penúltima, Carlos Maximiliano, de 1915 a 1925; e a última, Luiz Alvez Rocha Vaz, teve lugar em 1925.

Em 19 de abril de 1890 foi criado o Ministério da Instrução, Correio e Telégrafos, para o qual Benjamin Constant Botelho de Magalhães foi nomeado ministro. A reforma Benjamin Constant teve como objetivo fornecer aos alunos do nível básico capacitação para entrar no

ensino superior. Dessa reformulação fizeram parte os conteúdos de Ciências Naturais, Matemática, História e Geografia, entre outros, que em princípio capacitariam os alunos a continuar nos estudos acadêmicos. Ela foi constituída por vários decretos, inclusive o Decreto nº 981 do Artigo 81 (BRASIL, 1890), no qual se insere o conteúdo sobre o continente africano nos livros escolares. De acordo com o documento, devemos encontrar o seguinte conteúdo referente à África nos livros indicados para o primeiro ano:

Africa: divisão política em geral da América. Limites e posição astronômica. Grandes cidades. Producções mais importantes.

Exercícios chartográhicos sobre os continentes, no principio a vista e depois de cor, procedendo sempre dos traços geraes para particulares (BRASIL, 1890).

Percebe-se aí uma proposta da Geografia clássica, apresentando dados matemáticos e descritivos. De acordo com Nagle (1976, p. 147-148), as contribuições teórico-metodológicas de 1890 a 1920 passaram pelos planos de estudos que prestigiavam tão somente as disciplinas tradicionais (Línguas, Matemáticas, Ciências, Geografia e História). Notamos que nesse período a Geografia dos livros escolares tinha as mesmas características de quando foi inserida nos currículos, com caráter descritivo, parte da proposta teórica da época.

A esse respeito, Gatti Júnior, (1998, p. 21) escreve que “no Brasil até os anos 20, os livros didáticos eram, em sua maioria de autores estrangeiros e publicados no exterior especialmente na França e Portugal”. O que, por sua vez, estava relacionado ao modelo escolar e ao seu público. Os conteúdos propunham avaliações por meio de exames que exigiam a memorização e mesmo a reprodução das lições. Tais dizeres contrariam a posição positivista, de alcançar profissões liberais. Haidar (1972, p. 149), nesse sentido, afirma que

adiamentos e concessões fizeram com que os resultados práticos das medidas decretadas não correspondessem às generosas intenções do reformador Benjamin Constant, e os estudos secundários continuaram, por muito tempo na República, a padecer dos mesmos males que afligiam durante todo o Império.

A leitura dos livros didáticos desse período revela que seus conteúdos eram de caráter aristocrata, enciclopédico, verbalista, com uma estrutura curricular única e integral que deveria ser aplicada por meio da exposição e recitação, do ditado de pontos e da reprodução das lições. Como já salientado, a lei que definiu esses conteúdos tinha fortes influências europeias, uma tendência do momento colonial. Na passagem do século XIX para o século XX, a educação no Brasil apresentava uma afinidade com os modelos sociais e valores

difundidos pelo continente europeu, bem como com suas opções teóricas, filosóficas e metodológicas.

A política educacional proposta por Benjamim Constant abandonava as bases chamadas humanísticas, implantando as modernas disciplinas científicas. Ela abrangia a educação primária, secundária e ensino superior, indo do técnico ao artístico23. Um dos lemas do positivismo era a dinâmica social aliada ao progresso e à propriedade privada, à família, dentre outros valores. Os programas escolares brasileiros de Geografia da época estão relacionados com a filiação segura de Benjamin Constant aos ideais positivistas e filosóficos comteanos de bases enumerativas, matemáticas e descritivas.

De acordo com o Programa de Ensino do Colégio Pedro II (Programa de Ensino do Colégio Pedro II, 1893, p. 10) a África deve ser estudada no segundo ano, em três horas-aulas semanais, a partir dos seguintes conteúdos:

Geographia política e econômica, superfície, população, divisão, e forma de governo de um Estado. População geral do globo.

As religiões

Povos selvagens, bárbaros e civilizados. Raças humanas. Barbaria e Sahara.

Egito, Núbia e Abissínia.

África Ocidental e Colônia do Cabo. África Oriental e Central.

Issler (1973, p.105) desenvolve algumas análises a respeito dos conteúdos propostos nas reformas desse período. O autor salienta: “parece que o interesse [em estudar povos selvagens, bárbaros e civilizados] é o único aspecto que vincula a elaboração do programa de Geografia aos positivistas”. Em indagação à proposta, quem seriam os povos selvagens? O que opõe os bárbaros aos civilizados? Essa pergunta será respondida no desenvolver desta tese.

As mudanças na diretriz educacional produziram uma diminuição do número de séries escolares do ensino secundário. Reduziu-se também o número de aulas para o ensino de Geografia escolar, mas o conteúdo a ser ministrado permaneceu o mesmo. No entanto podemos dizer que tal proposta não trouxe grandes mudanças ao ensino da Geografia escolar e ao tratamento do continente africano. A Geografia escolar perdeu terreno para outras

23 As escolas públicas estavam organizadas da seguinte forma: o ensino primário abrangia as crianças dos 7 aos 9

anos; o ensino secundário as de 9 a 11 anos; o superior as de 11 a 13; havia ainda outro curso superior para estudantes entre 13 e 15 anos. Para maiores detalhes, ver Colesanti (1984, p. 13) e Rocha (1996, p. 198).

disciplinas, passando a ser ministrada nos três primeiros anos. Segundo Rocha (1996, p. 209- 210), as principais mudanças dessa reforma foram a “aplicação do regime de equiparação, sendo este estendido a todas as escolas estaduais e particulares de ensino secundário”. As mudanças ocorreram no sentido de reduzir conteúdos, mas as bases se mantiveram.

Por se aproximar das teorizações propostas por Delgado de Carvalho (1925), a década de 1920 foi um momento de grandes mudanças na forma de pensar a realidade brasileira. Suas ideias propunham uma Geografia mais científica, a Geografia Humana, tendo como ênfase os países europeus, o que reforçava as concepções no início do período republicano. O retorno aos modelos europeus de ensino mantinha e reforçava as propostas eurocêntricas. Uma delas era o estudo das questões da região natural, sem grandes memorizações de nomes e dados, porém com a mesma estrutura e conteúdos anteriores24. Na obra Geografia Regional do Brasil, o autor trata do conceito de região natural a partir dos antigos gregos Estrabão e Heródoto, passando pel francês Vidal de La Blache, para incorporar tais discussões às regiões brasileiras de então:

A “região natural” é uma área geográfica (de delimitação mais ou menos precisa) que compreende um certo número de feições fisiográficas características, permitindo considerá-la como unidade geográfica integral, criada pela Natureza. (CARVALHO, 1943, p. 16)

Até a reforma de Luiz Alvez Rocha Vaz em 1925, que foi um marco importante no ensino da Geografia escolar, não houve mudanças substanciais nas diretrizes educacionais do Brasil desde a reforma de Benjamin Constant. Entretanto, nesse período, houve uma tentativa de romper com o modelo comteano e suas características positivistas25. Nesse mesmo período, inicia-se a concepção de uma nova Geografia escolar, com características ditas modernas. As propostas teóricas de Delgado de Carvalho (1925) incluíam os debates econômicos, políticos e sociais. Mas percebe-se que a chamada Geografia Moderna mantinha o padrão de cópia, só que agora do modelo norte-americano. A obra do professor Carvalho (1925) significa a ruptura no campo das políticas educativas na década de 1920, período em que se inicia a chamada Geografia moderna no Brasil.

De acordo com a documentação do MEC, em 1929 o Estado criou um órgão específico

24 Segundo Pereira e Zusman (2000, p. 54), esse novo material “atua como divulgador das formulações da Escola

Geográfica Francesa sem, contudo, abandonar os pressupostos teóricos estabelecidos anteriormente por Ratzel”.

25 Foi nesse período, de acordo com Rocha (2010, p. 3), na chamada Geografia moderna, início dos anos 1920,

que se abandonou o modelo clássico francês da Geografia escolar baseado na nomenclatura e descrição da paisagem.

para legislar sobre políticas do livro didático, o Instituto Nacional do Livro (INL), contribuindo para dar maior legitimação ao livro didático nacional e, consequentemente, auxiliando no aumento de sua produção. No início da Primeira República, foram diversos os autores de livros escolares no Brasil. Nossa escolha pelo livro de Tancredo do Amaral (1890) como representante desse período deve-se à importância da obra, que abrangeu um grande número de alunos.

Muitos dos autores de livros didáticos da época eram, como ainda hoje o são, os famosos professores com a prática de tornar didático e atraente o conteúdo a ser ensinado. Além de um bom domínio de sua ciência, espera-se que o autor de livros escolares apresente talento para a chamada “transposição didática”, termo usado por Chevallard (1985). Isso é fundamental para o livro ser aceito entre professores, alunos e escola, além de ser importante para que o Estado o legitime.

Lembremos alguns nomes de autores de livros escolares que também publicaram e tiveram seus livros utilizados nas escolas do Brasil nesse período: M. Said Ali (1905), Carlos de Novaes (1908), José Nicolau Raposo Botelho (1909), Feliciano Pinheiro Bittencourt (1910), Joaquim Maria de Lacerda (1912), A. de Rezende Martins (1919), Olavo Freire (1921), Geraldo Pauwels (1923), Mario da Veiga Cabral (1923), Delgado de Carvalho (1923), Lindolpho Xavier (1929), Antônio Figueira de Almeida (1931) e Mario da Veiga Cabral (1931), num total de 14 autores. Consideramos esse um número significativamente alto, num momento em que o país passava por uma mudança de regime político – do Império à República –, e o acesso à escola era restrito a uma pequena porção da sociedade: apenas a elite econômica frequentava a escola.

Existia na época, e perdura ainda hoje, uma grande preocupação quanto à escolha de editora, sendo esta encarregada da impressão, distribuição, editoração e divisão dos livros, que eram de grandes tiragens. Nesse período, as relações profissionais e pessoais entre conselheiros, diretores, autores e editores eram muito próximas, o que será tratado mais à frente, quando abordarmos a personalidade de Tancredo do Amaral.

A maioria dos autores de livros escolares citados acima tiveram suas obras reeditadas. Como o livro Geografia do Brasil, de Mario da Veiga Cabral, que foi editado pela primeira vez em 1923 e continuou a ser publicado pela editora Jacintho até a 16ª edição, em 1946. Porém nem todos escreviam a respeito da Geografia de outras partes do mundo ou demais “continentes”, como América do Norte, Ásia ou África. A maioria dos autores referia-se particularmente ao Brasil. Outro fator a ser registrado é que a maioria deles eram professores

da disciplina História e Geografia, pois na época não havia no Brasil a separação formal entre essas duas áreas do saber. O curso de Humanidades oferecia o diploma para ambas as áreas do conhecimento. A divisão formal entre História e Geografia só veio acontecer em meados dos anos 1950 na USP, fato que será tratado mais adiante nesta tese.

Entre as principais editoras responsáveis pelas obras mencionadas, estavam Tipografia do Centro, Melhoramentos, Livraria Francisco Alves, Companhia Editora Nacional, Livraria Jacintho, A Noite, Livraria Garnier, Livraria Ferin e Laemmert & Cia. O número significativo de editoras mostra que a comercialização do livro escolar era algo rentável. Independentemente da questão da necessidade ou não de mudanças políticas, editoriais ou de conteúdo, a produção de livro escolar era atravessada por uma visão empresarial voltada a um negócio rentável.