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A REPRESENTAÇÃO DA Á FRICA NAS CIÊNCIAS HUMANAS : O CASO DA G EOGRAFIA ESCOLAR

Mapa 21 África do Sul: 1994

2.2 A REPRESENTAÇÃO DA Á FRICA NAS CIÊNCIAS HUMANAS : O CASO DA G EOGRAFIA ESCOLAR

Existe um conjunto de intelectuais que vêm dedicando suas energias a tecer reflexões a respeito das representações da África nas ciências humanas13. Entre 1890 e 2003, diversos foram os livros publicados, os debates teóricos, metodológicos e educacionais desenvolvidos que trataram da temática aqui levantada. Em meio a esse debate, escolhemos o caminho que discorremos a seguir. A respeito da África, Ki-Zerbo (1982, p. 21) escreve:

[...] Já foi o tempo em que nos mapa-múndi e portulanos, sobre grandes espaços, representado esse continente então marginal e servil, havia uma frase lapidar que resumia o conhecimento dos sábios a respeito dele e que, no fundo soava, também como um álibi: “Ibi sunt leones” Aí existem leões. Depois dos leões, foram descobertas as minas, grandes fontes de lucro, e as “tribos indígenas” que eram suas proprietárias, mas que foram incorporadas às minas como propriedades das nações colonizadoras.

Esse fragmento ajuda-nos a desmistificar o que o leitor encontrará no decorrer deste trabalho a respeito do continente africano. Isso porque a colocação acima demonstra um posicionamento contrário aos olhares coloniais racistas a respeito da África. Inúmeros são os artigos e produções a respeito desse tema, como a já citada coletânea organizada pela Unesco no decorrer das décadas passadas. Seguindo essa linha de raciocínio, sabemos que, para entender a África no livro didático, é preciso ler a respeito das representações, em particular, dos conteúdos escolares de Geografia. Estamos considerando como representações escolares as imagens e os textos presentes nos livros escolares. Estes serviram-nos de subsídio para o entendimento dos diferentes momentos da presença dos conteúdos sobre esse continente no material escolar. As análises das representações textuais e iconográficas nos ajudaram a entender o que foi a África no livro escolar. Sobre os conteúdos presentes nos livros didáticos, Chartier (1991, p. 06) escreve que eles passam pela “luta das representações”, ou seja, por

13 Diversos são os trabalhos sobre a África nas ciências humanas. Utilizaremos alguns desses no decorrer de

nosso trabalho, como o de Anjos (1989 e 2007), Silva (1994, 1996 e 2003) Fanon (1973), Ki-Zerbo (1982), Mourão (1993 e 1995), Munanga (1993), Serrano (1988) e Uzoigwe (1991), dentre outros.

interesses diversos a respeito de como e por que determinados conceitos e temas devem ser ou não abordados no livro escolar. Essa categorização será importante para nossa reflexão, pois, segundo Chartier (1991, p. 183), essa é “uma relação de força entre as representações impostas pelos que detêm o poder de classificar e nomear e a definição, de aceitação ou de resistência, que cada comunidade produz de si mesma”. No decorrer da tese discutiremos algumas das batalhas que o conteúdo escolar referente ao continente africano travou nas páginas dos livros didáticos. Outra base que nos ajudou a pensar a imagem da África nos compêndios foi o conceito de “economia-mundo”, de Wallerstein (1989, p. 29). Segundo ele, as primeiras violações na África ocorreram como um processo lento e regular, que começou em 1450 com o tráfico humano.

Com base em Ki-Zerbo (1982), Chartier (1991) e Wallerstein (1989), pesquisamos as representações escolares da África em textos e imagens de livros didáticos. Ao investigar a respeito da presença do continente africano no livro didático, podemos ter indícios da maneira como ela se dá, de como ela fez e faz parte de um jogo de interesses políticos e culturais, além do fato de que representar e ser representado esteve e está envolvido numa batalha de força e poder no território da Geografia escolar e de outras disciplinas. Isso porque nos livros escolares estão as contradições políticas, os interesses econômicos, as classificações, categorizações culturais, as formas e modelos escolares que fazem parte das “luta das representações” (CHARTIER, 1991, p. 06) de diversos grupos sociais, o que envolve negociações, embates, estratégia e confrontos a respeito do conteúdo específico da disciplina escolar Geografia, especialmente a África.

Buscando analisar as representações textuais e iconográficas nos livros escolares, encontramos um conjunto de pesquisas. Por exemplo, a dissertação de Castellar (1996) propõe que, na construção da noção de espaço e sua representação cartográfica com crianças, jovens e adolescentes nas séries iniciais, são necessários diversos exercícios pedagógicos para alcançar o resultado esperado. A presença das iconografias nos livros é algo a ser considerado no texto, conforme a análise conduzida por Barthes (1990, p. 33), que argumenta sobre a existência de “um valor repressivo em relação à liberdade dos significados da imagem; compreende-se que seja ao nível do texto que se dê o investimento da moral e da ideologia de uma sociedade”, o que demonstra que nos livros escolares existem uma organização e um direcionamento político da visão dos seus respectivos autores. Assim, o conjunto texto- imagem delineia, para Barthes (1990), os passos e a transmissão das ideias de quem escreveu o livro, assim como os direcionamentos que este deseja colocar.

Também a respeito do uso de imagens nos livros escolares, concordamos quando Ferro14 (1981, p. 15) assevera que elas “marcam-nos para o resto da vida. Sobre esta representação, que é para cada um de nós uma descoberta do mundo, do passado das sociedades, enxertam-se em seguida opiniões, ideias fugazes ou duradouras”. Esse fragmento pode ajudar nas análises do material iconográfico presente nos livros didáticos. Por sua vez, Kossoy (2003, p. 79) escreve que, na interpretação das imagens “fixas ou acompanhadas de textos, a leitura das mesmas se abre em leque para diferentes interpretações”. Elas podem ser econômicas, políticas e culturais, permitindo sempre uma leitura e interpretação plurais, coincidindo ou não com o ponto de vista do autor do livro escolar. Isso porque as imagens presentes nos livros escolares fazem parte do conhecimento do passado e do presente a respeito daquela disciplina, combinando conhecimento e conteúdo.

Da mesma forma é preciso considerar que o conjunto de informação textual, a iconografia, a legenda e o título fazem parte de um segmento maior, que é o livro escolar. As representações visuais contidas nos manuais, assim como as palavras, fazem parte do processo de ensino-aprendizagem na Geografia escolar, na forma de construir novos significados a respeito do mundo. Como tratado por Bittencourt (1993, p. 29), o “mundo das imagens” nos livros didáticos tem sido objeto de poucos estudos entre nós. Sobre as ilustrações e a maneira pela qual determinados segmentos sociais têm sido representados nos livros didáticos atuais, existem raros trabalhos.

Sabendo do conjunto de reflexão a respeito das imagens nos livros escolares, levamos em consideração, neste momento, o fragmento anterior de Bittencourt (1993), que nos dá auxílio a respeito das imagens presentes nos compêndios escolares, uma vez que as obras que selecionamos apresentam um número de imagens significativas. Aliás, é importante registrar que o conteúdo do livro escolar, como nossa principal fonte de pesquisa, tem sido tema de estudo nos últimos anos por diferentes disciplinas escolares. Dessa forma, convém resgatar alguns exemplos de como o conteúdo africanista foi abordado por alguns pesquisadores na Geografia. Ou seja, localizar historicamente o objeto, para um melhor entendimento e desenvolvimento do trabalho, até porque se acredita que tal matéria tenha passado por mudanças e rupturas, como veremos no decorrer desta tese.

A discussão sobre o livro didático, além de permitir um leque de possibilidades, torna possível um alinhamento com outras áreas do conhecimento, como História, Antropologia,

14 Acreditamos que as imagens nos livros didáticos podem se comunicar imediatamente com o leitor, nesse caso

por exemplo. Pode-se pensar o livro didático do ponto de vista das diferentes linhas de pesquisa em que está inserido, do seu projeto editorial, de seu conjunto iconográfico, ou mesmo investigar as diferentes concepções da disciplina escolar que ele propaga, suas propostas didáticas e a adequação da linguagem utilizada ao público-alvo e sua faixa etária. Da mesma forma, o trabalho pode ser desenvolvido pela interpretação dos saberes escolares presentes no texto, pela análise do currículo e/ou dos programas, sua formatação e pela presença do Estado em forma de leis.

No que tange aos compêndios, é preciso registrar suas especificidades e direcionamentos, pois alguns autores trataram especificamente do campo do ensino, outros da pesquisa e houve igualmente aqueles que uniram as duas áreas. Notamos a possibilidade de diferentes recortes sobre o tema do livro didático. Em particular, Sodré (1966; 1983 p. 36) faz um retrospecto histórico de quais seriam os livros didáticos mais importantes para a educação pública até a década de 1960. Segundo Sodré (1983, 36), disciplinas escolares possuem manuais e outros materiais de apoio. Cada obra possui seu plano de trabalho, passando pela metodologia, pelo recorte temporal, pelos títulos, linguagens, propostas educacionais, dentre outros elementos do ensino. Hallewell (1985) discorre a respeito dos diversos debates sobre materiais escolares, num trabalho que busca sistematizar a produção, distribuição e catalogação do compêndio no Brasil. Johnsen (1993, p. 29) discute a possibilidade de análise por meio das disciplinas escolares. Ele dividiu sua análise em três planos, a saber: a ideologia nos livros didáticos; o uso dos livros didáticos; e o desenvolvimento dos livros didáticos. Nesse estudo, há uma análise dos conteúdos, como educação, escola, aluno, sociedade, entre outros, a serem selecionados até a sua publicação. Em Choppin (2004, p. 549), “a história dos livros e das edições didáticas passou a constituir um domínio de pesquisa em pleno desenvolvimento, em um número cada vez maior de países”, como será discutido mais à frente. Com o passar dos anos, notamos que existem pesquisas e incentivos direcionados ao desenvolvimento da história do ensino e suas disciplinas.

Para aprofundar o trabalho a respeito do manual escolar, buscamos o instrumental metodológico desenvolvido por Pinheiro (2005, p. 92). Este teve como fontes documentais as dissertações e teses no campo de ensino de Geografia no Brasil, no período de 1967 a 2003. Sua pesquisa demonstra que existem diversos estudos a respeito do livro didático, passando pelo currículo, pela abordagem que o livro faz sobre a Geografia urbana e a Geografia rural, pelo ensino da Geografia escolar, pelos gêneros dos trabalhos, por seus focos temáticos e pelas linhas dos grupos de pesquisa.

Já o trabalho desenvolvido por Bittencourt (1993, p. 1) aborda “a história do livro didático no processo escolar brasileiro”, visando a ultrapassar o debate sobre o saber escolar que ocorre de maneira fragmentada, atingindo sua utilização em sala de aula. Percebe-se no mesmo trabalho que existiam diversos caminhos de investigação com relação ao livro didático. Bittencourt (1993) propõe a análise da editora como direcionadora ou não dos conteúdos escolares, do autor e seu posicionamento em relação ao contexto político e cultural, juntamente com o texto e os diferentes elementos iconográficos. Outro trabalho é o de Castellar e Vilhena (2010, p. 143), que apresentam outro indicativo possível para pesquisa: as análises das estruturas que fazem parte da organização dos interesses e estruturas educacionais do livro escolar. As autoras escrevem que no processo de elaboração do livro didático, “o trabalho em equipe ocorre ao longo da construção do projeto na escolha adequada das ilustrações, fotografias, composição e paginação [...] editora/editoria devem estar em sintonia” para que o produto final saia impresso como planejado (CASTELLAR; VILHENA, 2010, p. 143). Ao mesmo tempo, são diversas as exigências para sistematização do material escolar: organizações e necessidades pedagógicas que passam pela área do saber escolar nas mãos do mercado editorial e pelas diretrizes educacionais. A respeito dessas possibilidades também trata Choppin (1980, p. 19), que considera o livro didático “um instrumento pedagógico inscrito em uma longa tradição, inseparável tanto na sua elaboração como na sua utilização das estruturas dos métodos e das condições do ensino de seu tempo”.

Diferentes discussões sobre o os livros na Geografia escolar ocorrem, como propõe Rua (1992), demonstrando a não autonomia na construção do conhecimento pelo professor com manual escolar em sala de aula. Ele diz que “o livro didático não funciona apenas como instrumento auxiliar para conduzir o processo de ensino e transmissão do conhecimento, mas como modelo-padrão do conteúdo” (RUA, 1992, p. 149). Entendemos que, para ele, o professor não tem a possibilidade de construir o conhecimento independente do compêndio escolar.

Há outros recortes relativos aos conteúdos da disciplina escolar de Geografia nos livros didáticos, por exemplo o trabalho de Assis Neto (1995, p. 4), que tratou da questão ambiental analisando a dicotomia entre a Geografia física e humana, suas características e problemáticas. Na mesma linha, a pesquisa de Mantovani (2009, p. 26) enfocou a avaliação do PNLD como parte de uma política pública para a educação implementada no livro didático. Segundo a autora, tal organismo foi utilizado para seleção, distribuição e utilização do material nas escolas públicas brasileiras. O trabalho de Levon (2009, p. 15-16) aborda o

ensino de Cartografia nos manuais publicados entre 1824 e 2002, a partir dos “meridianos, paralelos, ângulos, mapas, representações, orientação, dados e demais construções”. A dissertação de Dias (2009, p. 91) debate sobre a “realidade latino-americana”, pois para ele existe uma justificativa de categorização na ideia de América Latina.

Assim, nesse breve apanhado das discussões a respeito da produção bibliográfica sobre o livro didático, vemos que são diversos os caminhos a serem percorridos. Interpretações, funções, interesses e contextos geográficos podem ser atribuídos a cada um desses percursos de análise. Nenhum deles tratou especificamente do ensino sobre a África. Acreditamos que nossa problematização vem contribuir para o debate a respeito do ensino na Geografia escolar. Porém encontramos trabalhos de História que trazem esse debate à tona. Por exemplo, a dissertação de Júnior (2008), Imagens da África, dos africanos, que analisou as representações sociais dos africanos nos livros didáticos de História do Brasil; e a tese de Oliva (2007), Lições sobre a África, que apresenta como nos manuais utilizados no Brasil e em Portugal para ensino de História foram elaboradas diferentes imagens, abordagens e recortes temáticos a respeito da África. A ausência do debate a respeito das imagens de mapas e textos que tratam do território africano nos livros na Geografia escolar estimula nossa investigação.

Mas a produção de livros didáticos vem sendo feita por alguns poucos africanistas. O filósofo anglo-ganês Kwame Appiah (1997) desenvolveu alguns debates a respeito das imagens dos africanos nos livros de História. Appiah (1997, p. 21) alerta para alguns pontos relativos à colonização racista de controle imperial pelos europeus. Segundo ele, para alguns intelectuais, o modelo de ensino constituído pela Europa foi importante; para outros, foi constituído de teorias, conceitos, crenças, saberes e categorizações que precisam ser pensadas antes de tomá-las de empréstimo. Já o trabalho de Vincke (1985) explica como o continente africano apareceu em publicações escolares belgas de língua francesa entre os anos de 1880 e 1984. Em seu estudo, a população africana foi categorizada por meio de pensamento raciológico, com as justificativas específicas do pensamento europeu. Assim, sentimos maior necessidade de verificar como tais saberes foram divulgados nos manuais brasileiros.