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2. A DEFESA DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS EM JUÍZO:

2.2. O RDENAMENTOS J URÍDICOS DO S ISTEMA DE C IVIL L AW

2.2.2. A evolução da tutela coletiva em outros ordenamentos de Civil Law e o

2.2.2.1. Itália

As reflexões dos juristas italianos na década de 1970 foram particularmente relevantes para a internalização, na Itália, dos conceitos referentes à defesa dos direitos transindividuais, uma vez que procuraram conciliar a experiência dos países de Common

Law – notadamente a experiência norte-americana – e as necessidades mais prementes do país naquela época, especialmente no que tange à ampliação do acesso à Justiça. Como a tutela dos interesses difusos e coletivos era uma das vias apontadas pelos autores italianos

para que esse acesso fosse garantido e ampliado76 – e essa necessidade de expansão era compartilhada por diversos outros países –, a doutrina difundida por Mauro Cappelletti teve grande penetração nos países de Civil Law.

Muito embora tal país tenha sido o berço das discussões mais modernas sobre o tema, as ideias debatidas pela doutrina não fizeram eco na legislação italiana, ao menos não imediatamente, tendo as ações coletivas se desenvolvido vagarosamente, naquele país, nas últimas três décadas.

Mas, conquanto as discussões acerca do tema tenham se aquecido na Itália a partir da década de 70, pode-se dizer que a existência de direitos coletivos já era -notada bem antes. O sistema de defesa dos direitos transindividuais na Itália, desde suas primeiras manifestações, esteve ligado intimamente com o movimento sindical – haja vista que o surgimento de associações de ordem operária e patronal, ainda no início do século XX, propiciou estudos sobre os interesses coletivos e a sua tutela conjunta77. A agregação da chamada classe trabalhadora em torno de interesses comuns tornou-se um símbolo para o despertar de uma nova consciência jurídica que ultrapassasse a esfera meramente individual e protegesse os direitos de um grupo de pessoas – no caso, especificamente, dos trabalhadores78.

A evolução legislativa sobre a matéria, no entanto, só veio a ocorrer muito depois, na segunda metade do século XX, durante a efervescência teórica em torno dessas questões. No ano de 1970 entrou em vigor o Statuto dei Lavoratori, em que consta a legitimação dos sindicatos para a tutela dos interesses coletivos, mediante a propositura de ações com o objetivo de fazer cessar a prática de condutas antissindicais e de seus efeitos (artigo 28, Lei 300/1970). As providências permitidas aos sindicatos, em termos de defesa

76 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça...Op. cit., 49-66.

77 Descreve Aluísio Gonçalves de Castro Mendes que em 1911 foi publicada obra “La Tutela degli interessi colletivi” do doutrinador Emilio Bonaudi, em que se aborda o desenvolvimento do conceito de interesses coletivos em outros países como a França e Bélgica. No ano seguinte (1912), foi a ver de Ugo Ferrone publicar a obra “Il processo civile moderno: fondamento, progresso e avvenire”, em que narra as experiências positivas de outros países na área dos direitos difusos e coletivos, mas assume que tal defesa não é possível pelo ordenamento jurídico italiano da época (MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ações

coletivas no direito comparado e nacional...Op.cit., p. 96).

78 Nesse sentido, ainda no ano de 1906, manifesta-se Gioele Solari: “[...] oggo La revisione è invocata in nome di princìpii nuovi, in nome di uma nuova coscienza giuridica inspirata non pur a sentimenti di solidarietà spciale, ma agli interessi specifici del lavoro e delle classi lavoratrici” (tradução livre: atualmente a reforma é invocada em nome de princípios novos, de uma nova consciência jurídica, inspirada não pelo sentimento de solidariedade especial, mas pelos interesses relativos ao trabalho e à classe trabalhadora.). SOLARI, Gioele. Socialismo e diritto privato - Influenza delle odierne dottrine socialiste sul diritto

dos direitos dos trabalhadores representados, entretanto, restringiam-se às tutelas inibitórias79.

Seguindo essa tendência, ainda no auge das discussões sobre a ampliação do acesso à Justiça pela via dos processos coletivos, a doutrina italiana passou a analisar instrumentos de tutela do Meio Ambiente. O fruto desses debates foi a positivação da Lei nº 349/1986, que previa uma série de meios para que legitimados ativos – precipuamente associações80 – passassem a tutelar os direitos da coletividade relativos à matéria ambiental. As providências que poderiam ser pleiteadas em juízo, mais uma vez, restringiam-se às tutelas inibitórias, visando a paralisação de atitudes que atentavam contra o Meio Ambiente ou representavam ameaça de qualquer natureza a sua integridade.

A mesma orientação se seguiu quando da entrada em vigor da Lei nº 281/1998, que tratava da proteção dos direitos do consumidor – positivada na Itália em virtude de clara influência exercida pelos regulamentos supranacionais da União Europeia, notadamente da diretiva nº. 13/199381. Aponta Andrea Giussani que, em princípio, as associações de defesa do consumidor teriam legitimidade para fazer valer em juízo os interesses da categoria, com a finalidade de conseguir uma tutela inibitória82.

79 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. Ação coletivas no direito comparado e nacional...Op.cit., p.

107-108. Neste sentido, manifestou-se também Andrea Giussani, relator da Itália no XIII Congresso Mundial de Direito Processual, atestando que: “Questa impostazione per un verso há permeso di evitare che gli altri

sindicati o addirittura i lavoratori interessati potessero considerarsi litisconsorte necessari nel giudizio rivolto alla repressione della condotta antisindacale ( e quindi di evitareche la tutela si rendesse di fato impraticabile), e há consentito al sindacato dia gire senza bisogno di ricevere mandato dai singoli lavoratori (...)” (tradução livre: Essa previsão tem, por um lado, a intenção de evitar que outros sindicatos, uniões e mesmo trabalhadores interessados possam ser considerados litisconsortes necessários em juízo para discutir condutas antissindicais - e de se evitar que a tutela se torne impraticável -, e tem consentido que o sindicato aja sem que cada trabalhador tenha que lhe conferir procuração). GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de Civil Law e Common

Law...Op. cit., p.166.

80 Assim dispõe o artigo 13 da referida lei, in verbis: Art. 13 – 1. Le associazioni di protezione ambientale a carattere nazionale e quelle presenti in almeno cinque regioni sono individuate con decreto del Ministro dell'ambiente sulla base delle finalità programmatiche e dell'ordinamento interno democratico previsti dallo statuto, nonché della continuità dell'azione e della sua rilevanza esterna, previo parere del Consiglio nazionale per l'ambiente da esprimere entro novanta giorni dalla richiesta. Decorso tale termine senza che il parere sia stato espresso, il Ministro dell'ambiente decide (1).(tradução livre: As associações de proteção ambiental de caráter nacional e que estejam presentes em ao menos cinco regiões são reconhecidas com decreto do Ministro do ambiente com base nas suas finalidades programáticas e de seu ordenamento interno democrático previsto pelo estatuto, e pela continuidade de sua ação e da sua relevância externa, com possibilidade do conselho nacional pelo ambiente manifestar-se sobre o tema. O Ministro do ambiente decide se a associação deve terminar se isso não estiver expresso no estatuto).

81 Tal diretiva tem como tema principal as cláusulas abusivas em contratos celebrados com o consumidor.

Ver http://civil.udg.es/epclp/texts/es/93-13.htm. Acessado em 20dez.2012.

82 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos

países de Civil Law e Common Law...Op. cit., p. 167-168. No mesmo sentido ver HENSLER, Deborah R.;

Foi apenas no ano 2000, com a entrada em vigor da Lei nº 283/2000, que o sistema italiano passou a prever a possibilidade de ressarcimento de danos por meio de ações coletivas. Em um primeiro momento, entretanto, tal ressarcimento limitava-se aos danos coletivos, sendo ainda impossível que a decisão prolatada em uma ação coletiva se prestasse a fundamentar o pedido de ressarcimento dos danos individualmente sofridos – até porque nenhuma dessas leis regulava com precisão os limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas83.

A nota marcante da tutela dos direitos transindividuais até o ano de 2008, na Itália, foi a priorização das providências inibitórias – no lugar daquelas voltadas ao ressarcimento dos danos sofridos pelos indivíduos. A legislação, nesse contexto, fazia menção apenas à defesa dos interesses difusos e coletivos, não havendo previsão com relação à possibilidade da tutela por via coletiva dos interesses individuais. Nessa esteira importa assinalar que a doutrina italiana, durante muito tempo, não se preocupou em diferenciar os interesses difusos dos interesses coletivos, sendo os termos usados como sinônimos até a primeira metade da década de 7084, quando tais conceitos passaram a ser estudados de forma mais aprofundada, resultando em sua diferenciação e maior detalhamento85.

Cumpre observar que, salvo raras exceções, predominou até o ano de 2008 a aplicação das regras do processo civil comum aos processos coletivos, o que permitia à doutrina afirmar que, em termos procedimentais, estes em nada se diferenciavam dos processos individuais – o que consistia em um grave problema para a própria utilização dos

annals of the american academy of political and social science. Sage Publications, Vol. 622, March 2009,

p. 141.

83 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos

países de Civil Law e Common Law...Op. cit., p. 164.

84 FERRARA, R. Commentario breve alle leggi sulla giustizia amministrativa. Padova: A. Romano,

2001, p. 367.

85 Durante o Congresso de Pavia, Andrea Proto Pisani destacou que o termo “interesses coletivos” era

excessivamente amplo e impreciso, sendo lido de formas diversas nos âmbitos do direito administrativo, do direito civil, do direito constitucional e do direito do trabalho. Posteriormente, vieram a ser caracterizados os direitos difusos como aqueles concernentes a uma categoria indeterminada de pessoas e relativos a um objeto que não fosse passível de apropriação exclusiva e individual, e os direitos coletivos aqueles que pertencessem a um grupo de pessoas ligadas entre si por substrato corporativo. Ver, nesse sentido: CARRATTA, A. Profili

processuali della tutela deglio interessi collettivi e diffusi. Torino: Lanfranchi, 2003, p. 94; TROCKER,

Nicolo. Interessi collettivi e diffusi. Roma: Giur Treccani, XVII, 1989, p. 2; DENTI, V. Profili civilistici

della tutela degli interessi diffusi in Strumenti per La tutela degli interessi difussi della collettivitá. Atti

instrumentos voltados à tutela coletiva e à consolidação dos institutos próprios desse tipo de processo86.

Apenas com a entrada em vigor da Lei nº 99 de 23.07.2009, responsável por modificar o artigo 140 do Codice del Consumo (Código de Defesa do Consumidor Italiano), foi possível a tutela dos direitos individuais homogêneos – especificamente no que diz respeito aos consumidores – e, também, a tutela ressarcitória dos danos individualmente sofridos, com base na sentença da ação coletiva87. A inspiração para tais mudanças pode ser creditada ao intercâmbio de experiências entre os países de ordenamento do Civil Law – o Brasil, por exemplo, já previa a defesa dos direitos individuais homogêneos desde o início da década de 90 – e, também, à influência do sistema norte-americano das Class Actions for Dammages. Confirmando essa última influência, a lei supracitada cria uma espécie de fase de certificação para as ações de classe em defesa dos direitos individuais homogêneos na Itália (Artigo 104.6. do Codice del

Consumo88), passando a prever, inclusive, a necessidade de aferição da representatividade adequada89.

86 “In Italy, collective actions are provided for by individual statutes or statutory instruments: occasionally, they lay down special rules of procedures, but if this is not the case, the general, ordinary rules governing civil procedure apply. In other words, unless otherwise stated by the law collective actions are no different from any other civil action, at least from a strictly procedural point of view. The system treats association or the public body granted the right of action as an individual plaintiff: there is no need for opt-in or opting-out mechanisms, since in the eyes of the law individual consumers, workers, and so on have no business taking part in the lawsuit”. (tradução livre: Na Itália, as ações coletivas estão previstas pelos estatutos individuais ou instrumentos legais: ocasionalmente, eles estabelecem regras específicas de procedimentos, mas se isso não for o caso, aplicam-se as regras do processo civil geral. Em outras palavras, a menos que indicado de outra forma, as ações coletivas não são diferentes de qualquer outra ação civil, pelo menos, de um ponto de vista estritamente processual. O sistema legitima associação ou organismo público, garantindo o direito de ação como a um autor individual: não há mecanismos de opt-in ou opt-out, já que, aos olhos dos consumidores, trabalhadores, e assim por diante, não tem interesse em tomar parte na ação). Trecho reportado por Elisabetta Silvestri. HENSLER, Deborah R.; HODGES, Christopher; TULIBACKA, Magdalena (et. alli). The Globalization of Class Action...Op. cit., p. 144-145.

87Art.140-bis. – “(Azione di classe). – O diritti individual omogenei dei consumatori e degli utendi di cui al comma 2 sono tutelabili anche attraverso l´azione di classe, secondo Le previsioni del presente articolo. A tal fineciascun componente della classe, anche mediante associazioni cui dà mandato o comitati cui partecipa, può agire per l´accertamente della reponsabilitá e per la condanna al risarcimento del danno e alle restituzioni”. (tradução livre: Os direitos individuais homogêneos dos consumidores e outros referidos no nº 2 devem ser protegidos através da ação de classe, de acordo com as disposições do presente artigo. Esse membro da classe pode agir, inclusive por meio de associações ou comissões de que participa, pleiteando a responsabilização e condenação por danos e reembolsos).

88 Art.104.6. “All´esito della prima udienza Il tribunale decide com ordinanza sull´ammissibilitá della domanda, ma può sospendere Il giudizio quando sui fatti rilevanti ai fini del decidere è in corso um´istruttoria davanti a um´autorità indiperdente ovvero um giudizio davanti al giudice amministrativo. La domanda È dichiarata inammissibile quando è manifestametne infondata, quando sussite um conflitto di interesse ovvero quando Il giudice non ravvisa l´identitá dei diritti individualo tutelabilisi sensi del comma 2, nonchè quando Il proponente non appare in grado di curar adeguatamente l´interesse della classe”.

(tradução livre: Na primeira audiência o tribunal deve decidir sobre a admissibilidade do pedido com a ordem, mas pode suspender o julgamento, quando os fatos relevantes para a decisão dependerem de fase

Observa-se, assim, que a Itália ainda está entre os países que, atualmente, não contam com um sistema organizado de tutela dos direitos transindividuais, contando apenas, com leis setoriais em matéria de processo coletivo (e.g. regulamentação sindical, direito ambiental, direito dos consumidores). É inegável, entretanto, o desenvolvimento no tratamento da matéria no decorrer da última década - seja por conta da influência dos regulamentos supranacionais da União Europeia, seja em razão do aumento do intercâmbio de experiências no campo da tutela de tais interesses com outros países. Tal evolução merece destaque por ter passado a a regular expressamente e exigir o controle de institutos ainda ausentes em outros ordenamentos, como é o caso da representatividade adequada, o que ainda não ocorre em outros países, como o Brasil.