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1.3 Cidadania: conquista de direitos

2.2.2 Jornalismo como narrativa

É a partir da narrativa que compreendemos a maioria das coisas do mundo, de acordo com MOTTA (2005). Mas a narração “não constitui, porém, uma simples repetição de um acontecimento; ao contrário, a sua construção cria uma nova realidade” (MOUILLAUD, 2002, p. 489), uma releitura da realidade ou ainda uma reinvenção criativa do real. (LADEIRA MOTA, 2012, p.11).

Não há estudo da narrativa sem a definição dos personagens de uma história. O livro Morfologia dos Contos Maravilhosos (2010) de Vladimir Propp, autor russo, definiu a função do personagem como significativa para o desenvolvimento do conto na sua totalidade. Propp, que foi o precursor dos estudos narrativos, prendia-se à irredutibilidade da ordem cronológica: o tempo, a seus olhos, é o real e é necessário enraizar o conto no tempo.

Compreender o personagem como um herói nos leva às narrativas míticas de Joseph Campbell que, no livro O Herói de Mil Faces (2007), que desde 1949, quando da publicação do referido livro, nos mostra que cabe ao personagem principal de um relato sintetizar os vários momentos de uma transformação pela qual deve passar para realizar uma missão. Cabe ao herói partir, aceitar o destino, buscar seu caminho, enfrentar numa segunda etapa as lutas e obstáculos decorrentes de sua decisão, e retornar, vitorioso ou derrotado, trazendo consigo histórias e a memória dos enfrentamentos e com elas, as lições aprendidas.

Para o pesquisador Muniz Sodré (2009), a narrativa pode ser vista também como um ato comunicativo, caracterizado pelo compartilhamento de experiências e vivências dos grupos sociais. Assim, a Narratologia, como uma teoria interpretativa da sociedade pelo estudo da construção de sentidos nas relações humanas, ultrapassa a aparente barreira entre o que é fático e o que é fictício, uma divisão que até hoje ainda separa Jornalismo e Literatura. Relatos factuais ou imaginários, ambos são narrativas. Para os historiadores e os jornalistas, a narrativa se prende ao acontecimento, ao mundo dos fatos visíveis. Já os narradores de contos populares e da literatura não se atêm aos fatos, mas constroem narrativas impregnadas de valores estéticos e morais.

Vale destacar que os relatos jornalísticos estão impregnados de subjetividades, mesmo quando têm uma aparência objetiva. Da mesma forma, as narrativas ficcionais, como novelas e filmes, são algumas vezes mais realistas que o próprio jornalismo, ao buscar ângulos de percepção do real que guardam uma grande verossimilhança com o cotidiano das pessoas. “Importante é observar a intencionalidade dos narradores, e verificar se exploram o fático para causar o efeito de real ou se usam a ficção para provocar efeitos emocionais. E observar que a forma narrativa está mais presente do que nunca nos objetos midiáticos” (LADEIRA MOTA, 2012, p. 212).

É o jornalismo que dá notícia de sua própria realidade, ao construir cotidianamente um tipo de narração: a narrativa jornalística, que se nutre dos fatos e das pessoas, e constrói, mesmo que em mosaico, uma leitura sobre a existência humana. Luiz Motta (2005) lembra ainda que “os acontecimentos relatados dia após dia pelo jornalismo estão imersos em grandes narrativas maiores que recobrem de novos sentidos o fragmentado” (MOTTA, 2005, p. 32) Como uma colcha de retalhos, que costurando retalho em retalho, se compõe uma peça única, mas com marcações de diferentes cores, tamanhos e texturas. Assim é o jornalismo, que alinhava os retalhos do dia e cria sentidos mais complexos.

Reunindo informações dispersas sobre um mesmo tema ou assunto (que podem estar separados por intervalos, de dias, semanas ou meses no noticiário), o analista junta as pontas, encontra os conectivos e encadeamentos narrativos, os antecedentes e consequentes, recompõe a serialidade, a sequência e a continuidade da intriga, como o leitor faz corriqueiramente (MOTTA, 2013 p. 97)

O jornalismo nos remete ao mundo real, enquanto a narrativa nos remete ao mundo da subjetividade.

O desafio do analista para identificar o narrativo nesse texto duro, fragmentado e inconcluso é muito maior porque o texto é seco, não têm a pretensão de encadear sequências integrais nem de compor uma intriga no sentido integral do termo. Da mesma forma, a maneira de analisá-lo como narrativa. Jornalistas não contam estórias, reproduzem fielmente a realidade como espelho, diz o jargão jornalístico. (MOTTA, 2013, p. 96)

2.2.2.1 O narrador

Quem é o dono da voz que narra? Segundo Motta (2013) para Paul Ricoeur (1995) é aquela que se dirige ao leitor (ouvinte ou espectador) apresentando-lhe o mundo.

O narrador é o agente que enuncia a narrativa, seu ato de enunciação e as instruções de uso que repassa ao seu interlocutor (...) é ele que dispõe do poder de voz para organizar, encadear, posicionar, hierarquizar, dar ao seu interlocutor pistas e instruções de uso por meio das quais indica como pretende que seu discurso seja interpretado. (MOTTA, 2013, p. 211)

Para incorporar a questão das vozes à composição narrativa, prossegue o autor, é necessário vinculá-la às categorias do narrador e da personagem: o mundo contado é o mundo da personagem contado pelo narrador. A partir daí, diz o autor, é possível deslocar a noção de mimese da ação ou da intriga para a personagem e o seu discurso. Com isso, a enunciação torna-se o discurso do narrador, enquanto o enunciado torna-se o discurso da personagem.

O narrador, ou o locutor da voz narrativa, é uma projeção fictícia do autor real. A partir do conceito de polifonia, desaparece a consciência autoral única porque o narrador passa a dialogar com seus personagens tornando-se ele próprio uma pluralidade de centros de consciência irredutíveis a um denominador comum.

O conceito de contraponto torna todas as vozes narrativas simultâneas: a organização polifônica é dialógica e a intriga parece constituir-se mais em uma matriz de intriga que em uma intriga uniforme. A voz pertence menos à intriga que ao problema da comunicação na medida em que ela se dirige a um leitor.

Sempre ouvimos que a vida imita a arte, para dizer que a realidade é também o espaço do lúdico e imaginativo. Pois como tal o jornalismo, enquanto atividade que tem a façanha de contar histórias da vida, também a representa, numa atividade de representação e reinvenção. Segundo Motta (2005), o jornalismo é uma atividade mimética: representa a vida, as ações dos homens, relata os dramas, as tragédias, as sagas e as epopeias contemporâneas. Os jornalistas nos apresentam nossos heróis, falam de nossos desafios e conquistas. Por meio do jornalismo acompanhamos a história do país e do mundo.

O texto em si é o principal meio da narrativa uma vez que o foco da narração acontece no interior do que está produzido. Ladeira Mota (2012) ressalta

que é na articulação discursiva dos acontecimentos que os significados surgem, a partir do contexto das palavras, personagens, contos, conflitos, clímax e pontos de virada, de como começa, como desenvolve e termina.

No âmbito da narrativa, existem três narradores principais (MOTTA, 2013, p. 13). Em posição estratégica enquanto enunciador de estórias, cada qual assume uma hierarquia de voz. De acordo com posição de poder decorrente da relação que cada um deles mantém com a estória. O primeiro deles é o narrador- empresa. O dono da bola, porque é dono do jornal, está fora da história (sua narração ocorre no plano extra-diegético). O segundo narrador é o jornalista enquanto categoria, não um indivíduo, mas como ator profissional. O terceiro é o narrador personagem que é a fonte das matérias. Jornalista e fonte estão no plano intra-diegéticos da narrativa.

A instituição é o primeiro narrador, porque “enuncia uma estória na qual não tomou parte, não testemunhou nem apurou diretamente” (MOTTA, 2013, p.14). O jornalista é o segundo narrador, ele conta a história: apura, seleciona, dispõe e hierarquiza ações, conflitos, personagens, cenas e enredo. Já o terceiro narrador detém menor poder de voz que os demais.

Motta (2013) previu três níveis, destacando, portanto, uma hierarquia de poder, que se direciona de fora para dentro. Ele propôs um esquema para ilustrar esses planos.

Terceiro-narrador: narrador- personagem (intra-diegético)

Segundo-narrador: narrador-jornalista (intra-diegético, dentro da história)

Primeiro-narrador: narrador-jornal

Fonte: Gonzaga Motta (2013)

O poder opera predominantemente de fora para dentro. Flui no sentido longitudinal, do primeiro-narrador para o segundo, e deste para o terceiro. Mas, esse poder não se exerce de forma linear, de fora para dentro somente. Ao contrário, conforme argumentei, o poder simbólico é continuamente negociado, podendo refluir de dentro para fora dependendo do capital político de cada ator e a correlação de forças em cada situação de comunicação. O segundo e o terceiro narradores possuem cada um sua força política própria, e manobram astutamente artimanhas que põem consciente ou inconscientemente em prática um contra-poder em cada momento. Eles podem ceder ou conquistar o direito de voz e a visibilidade, o direito de tornar pública a sua própria versão. Cada um deles tem seus interesses específicos, sua competência e capital político, tem relativa consciência dessa posição de força, cede ou avança conforme seja mais forte ou mais fraco cada dia, em cada disputa específica (MOTTA, 2013, p.14).

Enquanto primeiro narrador, o veículo tem a finalidade de atrair a audiência, de vender, se relaciona com o mercado da informação. Então seus atributos devem ser de sedução, convencimento, persuasão. Opera no âmbito dos interesses comerciais, políticos e institucionais. Já o jornalista, segundo narrador, é subordinado ao primeiro. Sua performance enunciativa vem da própria história contada por ele, e da capacidade para selecionar e posicionar os atores sociais e transformá-los em personagens (protagonista, antagonista, adjuvantes, heróis, vilões, etc.). Ele negocia permanentemente com o jornal e com as fontes. As fontes das matérias ou personagens ocupam a terceira voz narrativa. Estão submetidas ao poder da empresa e ao do jornalista, que podem publicar ou não suas informações, mas eles também buscam os jornalistas por interesses próprios. E as três vozes, conforme disse Luiz Motta (2013)

No decorrer do processo de enunciação de cada assunto reportado, esses três narradores levam a cabo uma negociação simbólica e política com os outros narradores pelo poder da voz. (MOTTA, 2013, 109)

2.2.2.2 Enunciação e enunciado

Enunciação e enunciado são alvos de outros destaques também. Muniz Sodré (2009) informa que na Grécia antiga, havia distinção entre a ‘verdade do necessário’ e a ‘verdade do verossímil’. A verdade do necessário pertencia à ciência, à lógica, onde a “verdade do enunciado independe de quem enuncia.” Já a verdade do

verossímil “inclui o sujeito da enunciação, isto é, aquele que diz ter sua própria fala em conformidade com a verdade”. (SODRÉ, 2009, p. 46)

O jornalismo crê, enquanto campo, que a verdade pertence ao enunciado, ao fato, as vozes testemunhais, ao texto, a invés da enunciação, ou seja, no próprio jornalista. Contradizendo essa crença, a prática exige que o discurso do jornalista seja crível para que o público lhe outorgue o reconhecimento de verdade. Então, assim sendo, “a verdade é uma propriedade do enunciado”, resultante do encadeamento do sujeito com o predicado, ou do enunciado com o objeto. “Adequando-se o enunciado à coisa real, obtém-se uma verdade material – e não apenas formal, como na lógica pura”. (SODRÉ, 2009, p. 186)