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O CONCEITO DE JUSTIÇA SOCIAL

4.4 A Justiça Social na doutrina cristã

Um dos principais responsáveis pela sistematização da doutrina cristã sobre

Justiça foi, sem dúvida, o teólogo e padre dominicano napolitano686 Tomás de Aquino

(mais tarde canonizado como São Tomás de Aquino.) Conforme preleciona Roberto

Aguiar, Tomás de Aquino operou a síntese entre o pensamento grego, principalmente o

aristotélico, e a doutrina cristã687. Diz Aguiar:

"Talvez pelo fato de o pensamento de Aristóteles ser 'realista', serviu melhor para a emergência de um saber operatório que, de forma eficaz, podia ordenar e dar sentido ao mundo, ao homem e às suas práticas sociais, ao mesmo tempo em que possibilitava a união do Deus cristão com a 'causa não-causada' de Aristóteles."688

No mesmo sentido, Alf Ross aponta que Tomás de Aquino foi muito hábil em

interpolar o pensamento cristão na teoria aristotélica, mormente no que tange ao direito

natural. O trabalho de Aquino teria consistido, na verdade, em substituir a vaga idéia

panteística de uma razão natural da tradição grega pelo Deus do cristianismo. Por outro

lado, a distinção aristotélica entre o homem sensitivo e o homem racional amoldou-se à

perfeição às dicotomias corpo/alma e vida terrena/vida etema da doutrina cristã689.

No que tange especificamente à Justiça, Tomás de Aquino tomou como

fundamento básico às idéias de Aristóteles, a quem, por respeito, se referia como o

Filósofo. A partir dos esquemas do Mestre, São Tomás criou um modelo triparti te-de

Justiça que sobrevive até hoje. Segundo Ubiratan Borges de Macedo, Aquino teria

686 Aquino teria nascido, em 1225 ou 1227, em Fossa Seca, no território do então Reino de Nápoles, conforme AQUINAS, THOMAS (SAINT). In: HERBERMANN, Charles G. et. al. (Ed.) Caíholic

Encyclopedia. New York, NY: Encyclopedia Press, 1913. Copyright da edição on line por Kevin Knight,

2000. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen> Acesso em: 30 jan. 2001. 687 AGUIAR, op. cit., p. 38.

688 Idem.

689 ROSS, A lf., op. cit., p. 242.

transformado a Justiça geral ou legal de Aristóteles em virtude específica por meio de um

"tortuoso raciocínio", criando na prática uma terceira modalidade desta categoria690.

Assim, as espécies de Justiça particular que eram duas no modelo aristotélico,

distributiva e corretiva, se transformam, com Tomás de Aquino, em três, a saber: Justiça

distributiva, Justiça comutativa e Justiça legal, a novel espécie, mais tarde denominada

pela doutrina como Justiça Social. Nas palavras de Macedo, "a tripartição dos

comentaristas, ao esgotar as possibilidades de combinação entre todo e parte, criou um

obstáculo à aceitação da idéia de justiça social. Esta, ou era a justiça geral ou, no máximo

um novo nome para a distributiva, por não haver possibilidade lógica de uma nova relação

entre todo e parte."691

Para Tomás de Aquino, a Justiça distributiva consiste em dividir o todo

comum proporcionalmente ao mérito de cada um, isto é, segundo a proeminência da

posição que cada indivíduo ocupa na comunidade. Este mérito ou proeminência da posição,

por seu turno, pode ser medido de várias maneiras diferentes, de acordo com os valores

dominantes, ou seja, segundo a espécie de Sociedade: oligárquica, aristocrática,

democrática, etc. Assim, na Justiça distributiva, o meio-termo é determinado com o uso da

proporcionalidade entre coisas e pessoas; i.é, o que importa é quanto cada pessoa merece

receber do todo comum. Nesta linha de raciocínio, se alguém receber mais do que deveria,

690 MACEDO, op. cit., p. 80. 691 MACEDO, op. cit., p. 81.

686 AQUINAS, St. Thomas. Summa Theologica. 2. ed. rev. Traduzido para o inglês pelos Padres da Província Dominicana Inglesa. 1920. II/II, q. 61, a. 2. Copyright da ed. on line 2000 por Kevin Knight. Disponível em: http://www.newadvent.org/summa/. Acesso em: 24 jan. 2001. St. Thomas Aquinas é a forma como São Tomás de Aquino é denominado em inglês.

a Justiça distributiva fará com que o plus lhe seja retirado e repartido entre as demais

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pessoas .

Já a Justiça comutativa faz com que nas relações entre indivíduos (ou até entre

o Estado e um indivíduo, como na punição de um crime) cada parte receba o que lhe é

devido. O exemplo clássico é o contrato de compra-e-venda, em que o vendedor deve

entregar ao comprador a coisa vendida e o comprador deve pagar ao vendedor o preço

acordado. Aqui, ensina Aquino, é preciso haver igualdade entre as coisas, melhor seria

dizer-se prestações, atribuídas a cada parte, de sorte que estas se equivalham e, no final, o

patrimônio de ambos permaneça na mesma situação anterior. Assim, se qualquer das partes

entregar mais ou menos do que deveria, a aplicação da Justiça comutativa fará com que a

igualdade quebrada seja reestabelecida.693

Por fim, a Justiça legal relaciona o homem com o bem comum694, sendo

(aquela) a "suprema virtude", pois direciona todas as demais (virtudes) para o bem

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comum

Para Aquino, a Justiça como um todo poderia ser definida como o hábito pelo

qual um indivíduo, mediante um desejo perpétuo e constante, dá a cada um o que lhe é

devido. Com tal formulação, Tomás procura confessadamente conciliar o conceito de

Justiça de Aristóteles com o expresso no Digesto696.

Conforme já visto, a Igreja Católica Romana passou a utilizar formalmente a

expressão Justiça Social a partir de 1931, com a Encíclica Quadragésimo Anno, do Papa

693 AQUINAS, op. cit., II/II, q. 61, a. 2. 694 AQUINAS, op. cit, II/II, q. 58, a. 7. 695 AQUINAS, op. cit, II/II, q. 58, a. 6. 696 AQUINAS, op. cit., II/II, q. 58 a. 1.

Pio XI. Conforme anota Macedo697, a expressão Justiça Social é empregada na

Quadragésimo Anno ora como sinônimo da tradicional Justiça Distributiva, ora como

princípio geral da economia e de ação social, ora desempenhando função típica da Justiça

Comutativa. Assim, é facíl percerber-se a enorme dificuldade com que os teóricos católicos

se defrontaram na missão de tentar enquadrar a Justiça Social na sistemática tomista.

Como que em resposta a tais dificuldades, Pio XI volta a carga em 1937 com

uma nova Encíclica, a Divinis Redemptoris, em cujo parágrafo 51 afirma698

“Na realidade, além da Justiça Comutativa existe também a Justiça Social que impõe seus [próprios deveres, aos quais não podem se subtrair nem patrões nem operários. É da ■ essência da Justiça Social exigir de cada um tudo quanto é necessário para o bem comum. Mas, assim como em relação ao organismo vivo não se provê ao todo, sem se prover a cada uma das partes e a cada membro com tudo quanto lhes é necessário ao exercício de suas funções, assim também não se pode cuidar do organismo social e do bem da Sociedade como um todo a menos que se dê a cada uma das partes e a cada membro, isto é, a cada homem na sua dignidade de pessoa humana, tudo aquilo que é necessário para exercer suas funções sociais. Se a Justiça Social for praticada,, o resultado será uma intensa atividade na vida econômica como um todo, com tranqüilidade e ordem...)”699

A partir destas duas Encíclicas, os teólogos católicos se agruparam em tomo de

três grandes posições distintas700:

697 MACEDO, op cit„ p. 95.

698 PIUS XI. Divinis Redem ptoris: Encyclical Letter on Atheistic Communism.Promulgada em 19 mar. 1937. par. 51. Versão em inglês. Tradução não identificada. Disponível em: http://www.newadvent.org/ docs/pil ldr.htm Acesso em: 30 jan. 2001.

699 Tradução livre do autor da presente Tese. Texto em inglês: "In reality, besides commutative justice, there is also social justice with its own set obligations, from which neither employers nor workingmen can escape. Now it is o f the very essence o f social justice to demand for each individual all that is necessary for the common good. But just as in the living organism it is impossible to provide for the good of the whole unless each single part and each single individual member is given what it needs for the exercise o f its proper functions, so it is impossible to care for the social organism and the good o f the society as a unit unless each single part and each individual member - that is to say, each individual man in the dignity of his human personality - is supplied with all that is necessary for the exercise o f his social functions. If social justice be satisfied, the result will be an intense activity in economic life as a whole, pursued in tranquility and order..." 700 MACEDO, op. cit., p. 96-98.

A primeira posição é representada por aqueles que, como Bernard Häring e

Johanes Messner, entendem a Justiça Social como uma nova espécie de Justiça, que veio

se juntar às três anteriores (Justiça Geral ou Legal, Justiça Distributiva e Justiça

Comutativa.) Para Messner, por exemplo, a Justiça Social se caracterizaria por atribuir a

cada grupo social, e a seus membros, a parte a que fazem jus no resultado do esforço

comum, de acordo com a participação de cada um.

Outros dois teólogos que também compartilharam esta posição, ainda que com

fundamento distinto, foram os padres jesuítas Donat e Isidro Gandía, ainda na década de

1930. Na visão destes, a Justiça Social não se confundiria com nenhuma das três espécies

então reconhecidas. Assim, a Justiça Distributiva veria o homem como parte; a Justiça

Geral ou Legal pressuporia a existência do Estado e a Justiça Comutativa seria "cega", na

medida em que não leva em conta as qualidades das pessoas envolvidas. Por seu turno, a

Justiça Social veria o homem como um todo, compreenderia obrigações naturais, anteriores

e superiores ao Estado e tomaria em alta relevância as características individuais dos seres

humanos. Este entendimento iria ser retomado anos mais tarde pelos adeptos da assim

chamada Teologia da Libertação. Para Isidro Gandía, Justiça Social era "a virtude pela

qual a Sociedade, por si ou por seus membros, satisfaz o direito de todo o homem ao que

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lhe é devido por sua dignidade de pessoa humana."

Na segunda posição se perfilam os estudiosos que vêem a Justiça Social

ocupando o espaço da Justiça Geral ou Legal de São Tomás de Aquino. Seus maiores

expoentes são Jacques Leclerq, Jean Yves Calvez e Joseph Höffner, dentre outros. Para

estes, as espécies de Justiça seriam três: Justiça Social, Justiça Distributiva e Justiça

701 GANDIA, Isidro apud MACEDO, op. cit., p. 96.