PERFIL ATUAL DO IMPOSTO SOBRE A RENDA DAS PESSOAS FÍSICAS NO BRASIL
2.1 O IRPF145 e a Constituição
2.1.3 Princípio da anterioridade tributária
Esse princípio, intimamente associado ao da legalidade177, proíbe como regra
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geral que um tributo novo ou um pré-existente e majorado seja exigido no mesmo
exercício financeiro179 em que foi publicada180 a lei que o instituiu ou aumentou181. O
objetivo da norma é claro: evitar a surpresa do contribuinte, razão pela qual o princípio é
também conhecido como o da não surpresa. Já Roque Antonio Carrazza vê o postulado
como corolário lógico do princípio da segurança jurídica182.
Os autores costumam apontar a Constituição francesa de 1791 como um dos
marcos da positivação desse princípio, ao exigir, no art. 1 do Título V, que as contribuições
públicas fossem deliberadas e fixadas, anualmente, pelo Poder Legislativo183.
A respeito desse tema, Sacha Calmon Navarro Coêlho preleciona:
“O princípio da não surpresa do contribuinte é de fundo axiológico. É valor nascido da aspiração dos povos de conhecerem, com razoável antecedência, o teor e o quantum
177 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 08-09.177 No caso específico de contribuição de seguridade social instituída ou modificada, a Carta estabelece sua exigibilidade a partir de noventa dias após a publicação da respectiva lei.
178 As contribuições de seguridade social instituídas ou majoradas somente podem ser exigidas a partir de noventa dias após a publicação da respectiva lei (Constituição, art. 195, par. 62 e Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, arts. 74, par. 4a e 75, par. I2)
179 O exercício financeiro coincide com o ano civil, de acordo com o disposto no art. 34 da Lei 4.320, de 17 de março de 1964.
180 Em caso de im posto instituído ou majorado por medida provisória, com força de lei, o que importa é a data da conversão daquela em lei, a teor do disposto no art. 62, parágrafo 2o., da Constituição, na redação conferida pela Emenda 32/01.
181 Constituição, art. 150, III, b, verbis:
"Art. 150 - Sem prejuízo...., é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: III - cobrar tributos:
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;" 182 CARRAZZA, op. cit., p. 125.
183 MORAES, op. cit., p. 99.
dos tributos a que estariam sujeitos no futuro imediato, de modo a poderem planejar as suas atividades, levando em conta os referenciais da lei.” 184
Note-se que, para Coêlho, o princípio da não surpresa do contribuinte não se
restringe à anterioridade tributária mas, antes, compreende uma gama maior de
manifestações. Afirma ele:
“De quatro maneiras o Direito recepciona e realiza o princípio da não surpresa do contribuinte:
a) pelo princípio da anualidade, que predica a inclusão da lei tributária material na lei do orçamento, ou ânua (daí a denominação anualidade);
b) pelo princípio da postergação genérica da eficácia das leis fiscais, do tipo: ‘A lei fiscal só produzirá efeitos após 120 (cento e vinte) dias da sua publicação’;
c) pelo princípio de se fixar especificamente por tipo de tributo ou por espécie
de imposto, um lapso de tempo, para que a lei produza efeitos, tenha
eficácia. É o caso, entre nós, das contribuições previdenciárias, que guardam
um espaço de tempo de 90 (noventa) dias para cobrarem eficácia ( art. 195,
par. 62, da CF);
d) finalmente, através do princípio da anterioridade, da lei fiscal em relação ao
exercício de sua cobrança. Assim, a lei que institui ou majora tributo num
ano, digamos 1989, só pode desencadear o dever do contribuinte de pagar o
tributo, ou a sua majoração, no exercício seguinte, ou seja, no ano de 1990.
e) O Brasil, nos termos da Constituição de 1988, desconhece as fórmulas
descritas em (a) e (b). Adota as previstas em (c) e (d).”185
184 COÊLHO, op. cit., p. 317. 185 COÊLHO, op. cit., p. 317-318.
A expressão “haja sido publicada a lei”, do art. 150, II, b, da Constituição, deve
ser entendida como o ato pelo qual a lei foi tornada pública, de acordo com o que dispõe a
respectiva legislação. No caso das leis e atos normativos federais, a legislação determina a
sua publicação no Diário Oficial da União, hoje já disponível também em meio eletrônico,
sendo acessível em tempo real. Assim, a fim de examinar-se o cumprimento, ou não, do
princípio da anterioridade, é preciso determinar-se o momento, i. é, a data, em que a
respectiva lei foi publicada, ou seja, foi tomada pública ou, mais precisamente, ficou
disponível ao conhecimento público (ainda que ninguém tenha, efetivamente, dela tomado
ciência).
Em outras palavras, a data da publicação, para os fins de atendimento à
anterioridade tributária, é, na verdade, a data da circulação da edição do Diário Oficial em
que foi publicada a lei em questão, assim entendida como a data em que exemplares desta
foram entregues aos assinantes ou colocados à venda ou ainda disponibilizados em meio
eletrônico.
O princípio da anterioridade tributária substituiu, no ordenamento jurídico-
constitucional brasileiro, o antigo princípio da anualidade186, presente em todas as
187 188
Cartas até a de 1967 . Por esse princípio, nenhum tributo poderia ser exigido num
determinado exercício financeiro sem que a respectiva lei orçamentária (também chamada
de lei ânua, o que deu origem ao nome do instituto) expressamente o previsse. Como a lei
186 BALEEIRO, Direito .... p. 74-75. 187 MORAES, op. cit., p. 107.
188 Art. 150, par. 29, 2 parte, do seguinte teor: “Art. 150 - ...
par. 29 - Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra:” (grifo aposto.)
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orçamentária deveria ser publicada no exercício anterior àquele ao qual se referia, a não
surpresa do contribuinte estava garantida.
Com a redação dada à Constituição de 1967 pela Emenda no. 1, de 1969, o
princípio da anualidade foi expurgado do ordenamento jurídico brasileiro190, passando a
exigir-se que a lei instituidora ou majoradora do tributo estivesse em vigor “antes do início
do exercício financeiro”191. Isto é, a Emenda 1/69 introduziu, no Brasil, o princípio da
anterioridade tributária, tal qual nós o conhecemos hoje192. Assim, o disposto no art. 51 da
Lei 4.320/64, que veicula as normas gerais de direito financeiro e que ainda traz o antigo
princípio da anualidade na sua versão clássica, está derrogado, por não ter sido
recepcionado pela atual Constituição.
o
A norma contida no parágrafo 2 do art. 165 da Constituição ora vigente,
contudo, exige que a lei de diretrizes orçamentárias (LDO), que é editada anualmente e que
orienta a elaboração da respectiva lei orçamentária, disponha “sobre as alterações na
legislação tributária”. Seu descumprimento, no entanto, não impede a exigência de tributo
novo ou majorado, desde que a regra da anterioridade seja respeitada.
Em sede de imposto sobre a renda, um tema de grande relevância, relativamente
a esse princípio, é o respeitante à lei de regência do tributo. Até a algum tempo, boa parte
da doutrina e da jurisprudência dominante, inclusive a do Supremo Tribunal Federal - STF,
entendia que a lei aplicável era a vigente no ano em que o contribuinte deveria apresentar a
189 Constituição de 1946, art. 74. 190 BALEEIRO, Direito..., p. 79.
191 Constituição de 1967/69, art. 153, par. 29, 2" parte.
192 Apesar da pequena discrepância entre a redação da Constituição de 1967, na redação dada pela Emenda 1/69 (“lei em vigor”) e a da Carta atual (“le ipublicada").
declaração de rendimentos. A Súmula 584 do STF corroborou tal inteligência193. De acordo
com esse entendimento, o cálculo do imposto relativo ao ano X deveria ser feito com base
nas normas vigentes em X +l; para o que, a lei que as veiculou deveria ter sido publicada
até o final do ano X. Tal lei não seria retroativa, uma vez que precederia o término do ano-
calendário, que coincidiria com o momento da ocorrência do fato gerador194. Na doutrina,
Antônio Sampaio Dória, por exemplo, defendia a tese segundo a qual a lei aplicável não é
a que está em vigor no período formativo da renda mas sim no período da apuração de
sua disponibilidade, pois este seria o fato relevante da tributação195. Fábio Fanucchi, por
seu turno, sustentava que o fato gerador do imposto sobre a renda ocorria em 31 de
dezembro de cada ano, que marcava o final do período-base escolhido pela lei196.
A questão apresenta, a nosso ver, dois aspectos principais:
a) o verdadeiro conteúdo do princípio da anterioridade: i. é, se ele veda a mera
cobrança do tributo no mesmo exercício em que publicada a lei ou se
impede o nascimento do crédito tributário (relativamente ao tributo
instituído ou majorado);
b) p momento de ocorrência do fato gerador do imposto sobre a renda.
Quanto ao primeiro aspecto, apesar de o texto constitucional se referir a "cobrar
tributos", o seu exame acurado, a partir de uma visão sistêmica, não pode levar a outra
conclusão senão a de que o princípio da anterioridade exige que a lei instituidora ou
majoradora seja publicada em exercício anterior àquele em que ocorram os fatos geradores
193 Súmula 584: "Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração."
194 AMARO, op. cit., p. 124.
195 DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio.Direito tributário intertemporal. In: ATALIBA, Geraldo; CARVALHO, Paulo de Barros. (Coord.) VI Curso de Especialização em D ireito Tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, v. 2., p. 510.
196 FANUCCHI, Fábio. O instante do fato gerador do imposto de renda. CEFIR v. 55, p. 29.
do tributo novo ou aumentado. Essa é a única interpretação condizente com o seu escopo
histórico de evitar a surpresa do contribuinte. Admitir-se que o princípio apenas posterga o
pagamento do tributo instituído ou aumentado para o ano seguinte, como sugere uma
interpretação literal do dispositivo constitucional, implica esvaziar-lhe o conteúdo, posto
que o contribuinte estaria impedido de, previamente ao início de cada exercício financeiro,
conhecer, qualitativa e quantitativamente, as obrigações tributárias a que estará sujeito.
Apesar disso, conforme registra Luciano Amaro, até os primeiros anos da década de
1980197 a exegese restrita e literal do princípio da anterioridade tinha muitos adeptos, assim
na doutrina como na jurisprudência198.
O segundo aspecto da questão parece também não oferecer maiores
dificuldades. O imposto incide, via de regra, sobre o total dos rendimentos auferidos pelo
contribuinte durante o ano-calendário. Assim, o fato gerador do IRPF é do tipo
periódico199, pois sua realização se dá ao longo de um espaço de tempo, consistindo na
seqüência de uma série de fatos. De acordo com esse entendimento, não se pode dizer que o
fato gerador do IRPF ocorre nesta ou naquela data mas sim que se desenrola durante um
certo período de tempo, no caso, um ano-calendário. Hugo de Brito Machado, contudo,
após afirmar que o fato gerador do imposto "é da espécie dos fatos continuados"200, admite
que "é razoável dizer-se que também se trata de fato gerador complexo."201, sem no entanto
conceituar nem uma figura nem outra. Sacha Calmon Navarro Coêlho, por seu turno, para
quem o fato gerador do IRPF é periódico, refuta a idéia de que possa ser complexivo, i. é,
197 À época, vigia a Carta de 1967, com a redação conferida pela Emenda no. 1, de 1969, que restabeleceu o princípio da anterioridade (art. 153, par. 29) usando a expressão "nenhum tributo será cobrado....” (grifo aposto.)
198 AMARO, op. cit., p. 124-128. 199 AMARO, op. cit., p. 249-253.
200 MACHADO, op. cit., p. 253 (grifos apostos.) 201 Idem.
aquele cujo processo de formação se aperfeiçoaria com o transcurso de unidades sucessivas
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de tempo, como pretendem Alfredo Augusto Becker e Antônio Sampaio Dória
Analisando-se conjuntamente esses dois aspectos, chega-se à inevitável
conclusão de que o princípio da anterioridade exige que se aplique à apuração do imposto a
legislação vigente antes do início do ano-calendário durante o qual os rendimentos foram
percebidos204. Esse entendimento parece estar pacificado hoje em dia, assim na doutrina205
como na jurisprudência, não se aplicando mais a Súmula 584 do STF206. O governo, por seu
lado, parece ter assimilado a lição e tem evitado, nos últimos anos, alterar o regime do
tributo após o início do ano-calendário correspondente.