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A SO CIEDA DE PO RTUGUESA NO LEA L CO NSELHEIRO

2 O Leal Conselheiro

Co mo auto r, D o m D uarte d eixo u v ário s escrito s so bre temas d iv erso s. M as, sem d úv id a alg uma, suas o bras d e m aio r imp o rtância literária são : Leal Conselheiro e o Liv ro da Ensinanças de Bem Cav algar Toda Sela. A p ro p ó sito d a p rimeira d elas, Ro d rig ues Lap a d iz que “O Leal Co nselheiro ”, d e D o m Duarte, é o Resultad o d a sev era ed ucação que o mo ço p ríncip e tev e em casa d e seus p ais. Desd e tenra id ad e co meço u a ad quirir o co stume d e co nfiar ao p ap el as suas med itaçõ es. N ão acred itav a na infatig abilid ad e d a memó ria; p o r isso fazia ap o ntamento d e tud o , num d ia d irig ia ao s seus irmão s cartas d o co nselho , cheias d e p o nd eração e filo so fia, o utro d ia o cup av a-se d as co res d as p ed ras d as minas d e metal, o utro aind a d issertav a so bre as v alias d o p ão : o utro , so bre o s p rêm io s d ev id o s a certa classe d e criad o s, so bre a misericó rd ia, so bre o s fenô meno s lunares, etc... Era um esp írito curio so e metó d ico , q ue não enjeitav a o estud o e a o bserv ação d as co isas ap arentemente simp les, p o rque co nhecia bem o seu v alo r no g o v erno d a v id a. E sabia que o bo m rei d ev ia o cup ar-se d e tud o ,

d esd e as co isas materiais até às mais transcend entes, em b enefício d o s seus v assalo s”69.

Do m Duarte escrev eu o Leal Conselheiro em d iferentes mo mento s d e sua v id a, e p ro v av elmente o termino u p o uco antes d e falecer. N ão tev e, p o rtanto , o casião d e mand ar rev isá-lo . Talv ez seja esse o mo tiv o d e hav er ap enas uma có p ia manuscrita d o tratad o , a qual se enco ntra em Paris, na Biblio teca N acio nal, so b có d ice núm ero 7:007, e não se sabe co mo fo i p arar naq uela cid ad e. N esta d issertação utilizamo s a ed ição d e o Leal Conselheiro p ublicad a co m atualização o rto g ráfica, intro d ução e no tas d e Jo ão M o rais Barbo sa, co m o p atro cínio d a Secretaria d e Estad o d a Cultura e d a Fund ação Calo uste Gulbenkian.

Seg und o Jo sep h Piel70, o Leal Conselheiro p o d e ser d iv id id o em d uas p artes, d e aco rd o co m o s assunto s aí tratad o s, co nquanto a o bra não ap resente uma unid ad e d e p ensamento , nem tamp o uco d e sistematização literária:

“ N o Leal C o nselheiro d isting uem -se nitid am ente d uas secçõ es: um a que abrang e o s cap s. 1-90, e o u tra o s cap s. 92- 102, a que o cap . 91 serv e d e intro d ução . N a p rim eira, é p o ssív el reco nhecer certo p lano , que se p o d e resum ir esquem aticam ente d a seg uinte m aneira. I-9. D o

69 Rod r i gu es La pa . Dom Dua r t e e Os Pr osa d or es d a C a sa de Avi z s / l , s ear a Nova,

entend im ento e as suas p artes (ap reensiv a, retentiv a, jud icativ a, inv entiv a, d eclarativ a, executiv a e p reserv ativ a); 2 cap s. 10-33, Declaração d o s p ecad o s (so berba, v ang ló ria, inv eja, sanha, ó d io , tristez a, o cio sid ad e, av arez a, luxúria e g ula); 3. cap s. 34-62, D as sete v irtud es necessárias p ara se co m bater o s sete p ecad o s cap itais (fé, esp erança, carid ad e, p rud ência, justiça, tem p erança e fo rtalez a); 4. cap s. 63-80, D efinição d o s sete p ecad o s cap itais e d o s o u tro s (p ecad o s d o co ração , d a bo ca, d a o bra, d a o m issão , e d o “ m ing uad o sentid o ” ); 56. cap s. 80-90, co m o hav end o d e ap ro p riar as “ C asas d o no sso co ração ” a d eterm inad o s fins.”71.

Po r co nseg uinte, essa p rimeira p arte d o tratad o co meça co m um co njunto d e cap ítulo s p reambulares relativ o s à p sico lo g ia d o ser humano , p ara em seg uid a, co mo se fo sse um co ro lário , no s cap ítulo s subsequentes tratar d as v irtud es e d o s v ício s co muns a no ssa espécie, e o que temo s d e fazer p ara praticar as p rimeiras e abo lir o s últim o s d e no ssa v id a.

Jo sep h Piel p ro sseg ue em sua d escrição d e o Leal Conselheiro:

“ a seg und a secção é co nstituíd a p o r um a m iscelânea d e escrito s v ário s, que D . Duarte julg o u d ig no s d e fig urar na sua o bra, e que não tiv era o casião d e incluir na p rim eira p arte. São no v as co nsid eraçõ es so bre as sete v irtud es (cap s.

70 Dom Du ar t e. L e al C ons e l he i r o , E di ção C r í t i ca d e Jos ep h M . Pi el , L i sboa,

91-92); p receito s d e leitura (cap . 94); o exem p lo d as d uas barcas (95); d isp o siçõ es p ara o serv iço relig io so na cap ela real (96-97); a célebre carta em que d escrev e a v id a fam iliar na co rte d e D. Jo ão I (98); reco m end açõ es p ara q uem p retend e trad uz ir d o latim p ara o p o rtug uês (99); um reg im ento d o estô m ag o (100); p receito s p ara se d eterm inar p elo s astro s as ho ras d a no ite (101-102). Finalm ente o cap . 103 serv e d e rem ate à o bra to d a, reto m and o o tem a d o p ró lo g o : Da g uard a d a leald ad e”72.

Co nstam, aliás, d essa seg und a p arte d o tratad o muitas d as trad uçõ es que ele p ró p rio fez (sem, co ntud o , reiv ind icar p ara si o mérito d e as ter feito ), o u mand o u alg uém fazer, d e p assag ens d o s auto res clássico s73 ad mitind o que seu texto abso lutamente não p retend e o fuscar o brilho d o s auto res latino s

“ e co nhecend o m eu saber p ara isto não d ito s e serem assim cum p rid am ente aqui translad ad o s, p o sto o seu m uito bo m e frem o so raz o ar no p o r m im escrito faça g rand e abatim ento , p o rque m ais qu ero ap ro v eitar ao s que o v irem , ca enco brir esta m ing uad a m aneira d e m eu escrev er”74.

Para Do m D uarte, o estilo , a “ fremo sura” d a ling uag em p o uco imp o rtav am, o que interessav a era que o leito r entend esse

71 I dem , i bi d, p . XI V. 72 PI E L, J os eph . o. c. p. XVI .

73 Ar i s t ót el es, Sã o J oã o C as s i a n o, Hug o d e S ão Vi t or , E gí d i o Rom an o, Sã o T om ás d e

Aq ui n o, S an t o Ag os t i n h o, et c.

claramente o que lhe estav a a transmitir75. É ev id ente que ele não d escuid o u d a ling uag em, mas não p o d emo s d izer que fo i um auto r eleg ante e d esenv o lto , p o is, seu estilo literário ap eg av a-se à fo rma culta d e escrev er, à ép o ca, tend o no Latim sua fo nte d e insp iração . N a v erd ad e, a g rand e co ntinuação d e D o m Duarte é o caminho que ele p erco rre p ara cheg ar a seu o bjetiv o aco nselhar, atrav és, d o Leal

Co nselheiro. Esse caminho passa p ela intro specção , send o o

p rimeiro auto r p o rtug uês a escrev er a p artir d e suas reflexõ es, d e suas exp eriências e v iv ências p esso ais, co ncretand o -se a co lo car no p ap el o que v ê e cap ta d e sua realid ad e.

A liás, suas o bras não apresentam um co lo rid o , uma v iv acid ad e, uma fluid ez, o que é natural, tend o em v ista sua p ró p ria m aneira d e ser. Ele escrev e o que sente, o que v ê, o que exp erimenta, não tem a intenção d e ser p o ético o u d e se co mp arar a auto res mais co nhecid o s, não tem aind a a intenção d e ter sua o b ra reco nhecid a entre o s texto s translad ad o s d o s auto res clássico s que inclui em seu “Leal Co nselheiro” .

D. Duarte é ig ualmente m o d esto , reco nhecend o q ue seu co nhecimento e m aneira d e escrev er não se ig ualam ao s d aqueles auto res em que se insp iro u o u que o hav iam influenciad o

75 “Os d es t i n at á r i os m ai s di r ect os da obr a er am a r a i n h a e os cor t esã os. . . o cí r cu l o

n ão s er i a t ã o r est r i t o com o s e s up õe por vez es , p or q ua n t o n ã o som en t e des t i n a a obr a i g ua l m en t e aos s en h or es e g en t e de s ua s cas a s ”, com o é p r eci s o n ã o es qu ecer qu e ch eg ava m a es t ar n a cor t e t r ês m i l pes s oa s ”.

culturalmente. Um lad o interessante que se o bserv a no Leal Conselheiro é que o Rei cita semp re a fo nte em que se apo ia, p ara transmitir q ualquer ensinamento (fato raro em sua ép o ca, p o is o s auto res, em g eral, co stumav am assumir, co m o se fo ssem suas, as id éias d e o utro s), não atribuind o a si p ró p rio o que está a escrev er, salv o no que se refere às trad uçõ es, v isto não mencio nar o s trad uto res, talv ez, p o r achar que não fo sse imp o rtante fazer isso . Entre essas fo ntes, mas a p ar d as mesmas, D . Duarte, em to d a a o bra, relata suas p ró p rias exp eriências.

N ão fo i p o rém, só o amo r à Filo so fia e à literatura clássica que lev o u D. Duarte a red ig ir o Leal Co nselheiro. O Seu o bjetiv o , é aqui também red ig ir uma o bra p ed ag ó g ica, d id ática, d estinad a p rincip almente à classe senho rial, v ersand o , em termo s claro s e acessív eis, a v irtud e d a leald ad e e as co nd içõ es d a recta co nd uta76. O utro s m o tiv o s o imp eliram a fazer isso . Um d eles, talv ez o meno s imp o rtante, tenha sid o o d esejo d e ag rad ar à rainha Do na Leo no r (Fig ura) q ue p o ssuía um caráter aristo crático . A razão p rincip al ele p ró p rio no -la ap resenta:

76 “Os d est i n a t ár i os ma i s di r ect os d a obr a er a m a r a i n h a e os cor t es ãos ( . . . ) O cí r cu l o

n ão s er i a t ã o r est r i t o com o s e s up õe por vez es , p or q ua n t o n ã o som en t e des t i n a a obr a i gu a l men t e a os s en h or es e g en t es d e s u a ca sa , com o é p r eci s o n ão esq uecer q ue ch ega vam a es t a r n a C or t e t r ês m i l pes s oa s ”.

“ E filhai-o p o r um A BC d e leald ad e, ca é feito p rincip alm ente p ara senho res e g ente d e suas casas( a ) que na

teó rica d e tais feito s em resp eito d o s sabed o res p o r m o ço s d ev em o s ser co ntad o s, p ara o s qu ais A BC é sua p ró p ria ensinança. E m ais p o r A se p o d em entend er o s p o d eres e p aixõ es que cad a u m d e nó s há. E p o r B, o g rand e bem que p ercalçam o s seg uid o res d as v irtud es e bo nd ad es. E p o r o C, d o s m ales e p ecad o s no sso co rreg im ento77.

N o utro p asso , o Rei é aind a mais exp lícito :

“ p o d e-se d iz er d e leald ad e, ca p o r d ireito co nhecim ento d e no sso p o d er, v o ntad e, seg uid o e p o ssuind o v irtu d es, e d o s p ecad o s e o utro s falecim ento s co m em end a no s av isand o , se m antém a no sso Senho r Deus e as p esso as que se d ev e g uard ar. E p o rque ao p resente d e sua m ercê tem esta v irtud e o uto rg ad a em estes Reino s entre senho res e serv id o res, m arid o s e m ulheres tão p erfeitam ente, qu e não sei nem o uço m ais m elho r d ela usem , d o s q uais p o is ele d e sua bo a g raça m e o uto rg o u p rincip alm ente reg im ento , m e sinto m uito o brig ad o d e a sem p re m anter e g uard ar a to d o s, e a v ó s m ais p o r o brig ação d e g rand es raz õ es e requerim ento d e m inha bo a v o ntad e. Po rém m e p raz assim d ela ser no m ead o , p o r tal que o no m e d este m eu escrito co nco rd e co m a m aneira em que p o r m ercê d o Senho r Deus m e trabalho sem p re v iv er”78.

77 Dom Du a r t e. o. c. , p. p. 2 3 e 2 4.

a) P or es se p as s os, con fi r m a - s e o ca r át er a r i st ocr át i co da obr a de D. Dua r t e.

O Rei aind a o bserv a que tev e a o p o rtunid ad e d e co nstatar que em seu reino , mais d o q ue no utro s, to d o s o s seus habitantes, senho res e súd ito s, cultiv am a imp o rtante v irtud e d a leald ad e. Ora, co mo tem a co nv icção d e que recebeu d e Deus o p o d er que exerce, fato esse que o o brig a ig ualmente a ser leal p ara co m o Criad o r e para co m o s seus súd ito s, está a escrev er o Leal Conselheiro p ara que essa o bra p o ssa ajud á-lo e a eles p ró p rio s, a co ntinuarem a p raticar essa v irtud e.

O Rei ad o to u o méto d o d o A BC, p o r julg ar que o mesmo iria melho r facilitar a v id a d e seus leito res, d ad o que nem to d o s, co m certez a, tinham prep aração filo só fica p ara p o d er co mp reend er esse tratad o d e mo ral que é o Leal Conselheiro. Tal méto d o co nsiste em, num p rimeiro m o mento , d isco rrer so bre as afeiçõ es e p aixõ es, bo as e más, que influenciam o s seres humano s. Em seg uid a, trata d a imp o rtância d a p rática d as v irtud es p rincip ais, co mo instrumento d e efetiv ação d o bem e, p o r último , alud e ao s erro s (v ício s) co mumente p raticad o s p elo s ho mens, e co mo eles p o d em v ir a ser co rrig id o s, e a satisfação que isso p ro v o ca nas p esso as, quand o elas se sup eram a si mesmas. To d av ia, ele não utiliz a esse méto d o d e maneira sistemática, “ p o rque d estas três p artes misturad amente e não assim p o r o rd em é meu p ro p ó sito d e mais

tratar, co m d ev id a p ro testação d eixand o tud o ao co rreg imento d aqueles a que p ertencer”79.

Po rtanto , D . D uarte escrev eu seu liv ro d e m aneiras d eso rd enad a. A o tratar d e um assunto em d eterminad o cap ítulo , o mistura co m o utro s temas, e d ep o is o reto ma no v amente no utro cap ítulo mais ad iante.

O Rei ig ualmente ad v erte o leito r d e sua o bra, no to cante a co mo d ev erá p ro ced er p ara d ela tirar o melho r p ro v eito :

“ cum p re p ara se m elho r entend er, d e se ler tud o d e co m eço , p asso e p o uco d e cad a um a v ez , bem ap o ntad o , estand o em raz o ad o tem p o bem d isp o sto s o s que lerem e o uv irem . C a lend o -se d o utra g uisa, entend o que ao s letrad o s p arecerá m ais sim p lesm ente feito , e ao s o utro s não tão bo m d e entend er, p o rque tais leituras ao s que sem elhantes não têm bo m co nhecim ento , m ais são p ara serem ensinad o s, que p ara d esp end er tem p o o u se d esenfad ar, co m o liv ro d e histó rias, em que o entend im ento p o uco trabalha p o r o entend er o u se lem brar” ,

e acrescenta, aind a, que

“ ficaria m uito feliz se a lessem g rad ativ am ente, m as a co m p reend o m uito e retirand o d ela o s bo ns ensinam ento ,

que p o r v entura co ntiv esse, e o s p o ssuem em p rática, lem brand o -se eles, d e q ue fo i escrita co m a m elho r bo a v o ntad e, em p ro v eito d o s m esm o : “ p raz er-m e-ia que o s led o res d este tratad o tiv essem a m aneira d e abelha que, p assand o p o r ram o s e fo lhas, nas flo res m ais co stum a d e p o usar, e d ali filham p arte d e seu m antim ento . E não sejam tais co m o aq ueles bicho s que, d eixand o to d as co usas lim p as, nas m ais sujas filham sua g o v ernança. E isto se d iz p o rquanto alg uns, v end o q uaisquer p esso as o u lend o p o r liv ro s aquelas co usas co nsid eram em que p o ssam hav er bo m exem p lo , ensino e av isam ento e que achem e v ejam falecim ento s, p assam p o r eles sem p re resg u ard and o ao m ais p ro v eito so e d ig no d e lo uv o r”80.

O Rei sabia, entretanto , que nem to d as as p esso as iam ap reciar d ev id amente o seu tratad o , uma v ez que tinham o d ireito d e d isco rd arem d e seus p o nto s d e v ista, mas isso era irrelev ante, p o is o que efetiv amente co ntav a é que. N o sso Senho r co nhece o s mo tiv o s que o lev aram a escrev ê-la d e fato esse q ue o co nso la e lhe d á eno rm e satisfação : “porém, bem sei que alguma leitura não pode a todos igualmente prazer, ca têm sobre elo tanta diferença como no gosto das viandas e ouvir dos sons”81

80 Dom Du a r t e, o. c. , p. p. 2 4/ 2 6. 81 Dom Du a r t e, o. c. , p. 26 .