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Lições whorfianas: a ideia de “resistências padronizadas”

3.3 A REMODELAGEM DA TESE DA INCOMENSURABILIDADE NO CAPÍTULO

3.3.1 O legado de Anscombe: entre Whorf e Piaget no capítulo XVI do Contra o Método

3.3.1.1 Lições whorfianas: a ideia de “resistências padronizadas”

À primeira vista, o compêndio Linguagem, Pensamento e Realidade27 mostra um combate acirrado contra a concepção segundo a qual o processo comunicativo se restringe à expressão proficiente das ideias através da fala. Nessa visão, o uso da linguagem é um “sistema de lógica natural” de estrutura evidente a todos os falantes. “O homem natural”, lemos, “[s]upõe que a fala é uma atividade na qual se é livre e não se encontra qualquer impedimento” (WHORF, 1942/1971, p. 283). Entretanto, aquele escrito ajuíza que apenas o estudo linguístico especializado é capaz de derrubar o mito de que o pensamento é indiferente às normas de estruturação das orações do idioma no qual pensamos.28 A linguagem não é mais entendida somente como uma habilidade de descrever ideias, as quais seriam comuns a todos os seres racionais, independentemente da circunstância comunicativa. Na verdade, mais do que formalizar sintática e semanticamente a competência comunicativa, a “gramática” de um idioma organiza a percepção de fenômenos e enquadra as experiências perceptivas. “[O] sistema lingüístico”, sustenta Whorf (1942/1971, p. 241), “não é apenas um instrumento que

27 Pautamos nossa exposição do Princípio da Relatividade Linguística basicamente por seis textos que

constituem o Linguagem, Pensamento e Realidade: “Discussão da Lingüística Hopi” (1937), “Ciência e Lingüística” (1940), “A Lingüística como uma Ciência Exata” (1940), “Línguas e Lógica” (1941), “Linguagem, Mente e Realidade” (1942) e “Categorias Gramaticais” (1945). Assim, para buscar interpretar a forma como as ideias de Whorf influenciaram a composição feyerabendiana da incomensurabilidade, sentimo-nos impelidos a usar textos não citados por Feyerabend.

28“[A lógica natural] implica, equivocadamente, que o pensamento é uma atividade óbvia e reta, idêntica a todos

os seres humanos, e que o idioma não é mais do que a expressão correta” (WHORF, 1942/1971, p. 283). “Quando os lingüistas foram capazes de examinar […] um grande número de idiomas de modelos amplamente diferentes”, afirmou Whorf (1940/1971, p. 240-241), “experimentaram a interdição de que certos fenômenos que haviam sido considerados universais”.

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reproduz idéias, mas é […] o verdadeiro formador das idéias, o programa e guia da atividade mental do indivíduo”. “Recortamos a natureza seguindo linhas que nos são indicadas por nossa língua nativa”, conclui o autor. Portanto, a atividade reflexiva segue regras impostas externamente pelos padrões constitutivos do idioma e a descrição dos eventos sofre constrangimentos de ordem linguística. Mas, para perceber a correção dessa ideia, convém deslocar nossa perspectiva dos idiomas derivados de dialetos indo-europeus (como o grego e o latim), com os quais temos mais familiaridade.

A “nova ideia” veiculada pelo princípio de relatividade linguística se torna mais convincente quando miramos, através de uma abordagem antropológica, o idioma nativo indo-americano do Arizona falado entre os Hopi. A estrutura básica dos idiomas de raiz europeia (inglês, francês, português, etc.) nos instrui a efetuar uma divisão bipolar dos acontecimentos, dispondo-os entre as classes “substantivos” e “verbos”. Dizemos “Você

dedilhou o violão!” e separamos o agente da oração e os contextos (temporal e causal) que

envolvem o evento. Todavia, a estrutura das sentenças hopi indica uma compreensão distinta dos elementos constitutivos da realidade. “[O] observador hopi”, o autor sustenta, “concebe os acontecimentos de uma forma diferente a como concebem aquele cuja língua nativa é o inglês” (WHORF, 1942/1971, p. 123). A linguagem hopi não expressa os fatos como sequências temporais atribuindo de forma inequívoca a função (coisa ou ação) de cada uma de suas partes. Especificamente, privilegiando o “tempo psicológico” da ação quando estrutura sua oração, um hopi pensa levando em consideração a duração de um fenômeno.29 “O hopi pode ter verbos sem sujeitos”, esclarece Whorf (1942/1971, p. 294), “e isso concede a essa língua um grande poder como um sistema lógico para compreender certos aspectos do cosmos”.

A “lógica natural”, gradualmente incorporada ao longo da aprendizagem da linguagem, consiste na crença de que as conexões lógicas conhecidas são inevitáveis: “[S]entimos que [a fala e o pensamento] abarcam leis de pensamento evidentes por si mesmas e iguais a todos os homens” (WHORF, 1942/1971, p. 268). Mas a metodologia da investigação linguística – principalmente focada na estruturação de modelos das normas que definem plano fonético – derruba essa forma simplista de explicar o processo comunicativo. De um lado, modelos fonéticos definem o exato padrão de sons que moldam o idioma. “[A]

29 Uma análise detalhada deste assunto encontra-se no ensaio “Algumas Categorias Verbais do Idioma Hopi”,

em Whorf (1938/1971, p. 131-144). “Na língua hopi são verbos ‘onda, chama, meteoro, fumaça de cigarro, pulsação’, mas os acontecimentos de uma duração necessariamente breve não podem ser verbos […] Como podemos ver, o hopi tem uma classificação dos acontecimentos (ou distinções lingüísticas) bastante estranha à nossa compreensão, já que o faz mediante o tipo de duração dos acontecimentos” (WHORF, 1940/1971, p. 244).

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criação de palavras novas não é um ato imaginativo”, lemos, “mas uma utilização estrita de materiais já sujeitos a um modelo” (WHORF, 1942/1971, p. 287). Por outro lado, estudos empíricos indicam que o “óbvio” em uma concepção pode ser “absurdo” em outra. “Pessoas que empregam gramáticas radicalmente diferentes percebem-se guiadas por suas gramáticas respectivas a tipos diferentes de atos observacionais, externamente similares”, afirmou Whorf (1940/1971, p. 250). “[P]ortanto”, ele conclui, “não são equivalentes como observadores, afinal têm que chegar a pontos de vista diferentes sobre o mundo”. Diante disso, há o risco eminente de incompreensão dos conceitos com os quais trabalham as diferentes culturas, lição aplicada também ao domínio científico. “Na verdade, a língua hopi não possui uma palavra equivalente ao nosso ‘velocidade’ e ‘aceleração’”, segundo esclarece Whorf (1949/1971, p. 246). “Um cientista de outra cultura”, ele defende, “não encontrará palavras que se encaixem”.

Há uma base linguística em todo processo mental, isto é, “o pensamento também segue uma rede de caminhos determinados em cada língua” (WHORF, 1942/1971, p. 288). Até mesmo a maneira como a natureza é concebida não escapa à força organizadora da linguagem: “As línguas não apenas diferem na forma de construir suas orações, mas também em como separam a natureza para assegurar os elementos a colocar em tais orações” (WHORF, 1942/1971, p. 269-271). Enfim, as “gramáticas” organizam a percepção e o modo

como concebemos a disposição da realidade. Desde o nível fonético até o grau referencial, a estrutura linguística que seguimos impõe restrições (por exemplo, impedindo a proposição de novos fonemas) e resistências quanto a diferentes formas de expressão. Em suma, toda

linguagem natural parece encerrar uma cosmologia.

A proposta central da compilação Pensamento, Linguagem e Realidade, de Whorf, consiste na afirmação de que a linguagem que usamos para expressar nossas ideias não é apenas um meio para descrever eventos. A “gramática” dos idiomas, conforme argumenta o linguista, molda os fenômenos e transporta consigo uma visão de mundo. “Cada idioma”, sublinhou Whorf (1942/1971, p. 278), “incorpora certos pontos de vista, certas resistências modelares a outros pontos de vista amplamente divergentes”. Assim, a ocasional incongruência de concepções não seria unicamente resultante de uma falta de habilidade comunicativa. Teria como explicação o fato de que linguagens desconexas organizam a realidade segundo padrões estruturais incompatíveis. Em posse disso, Feyerabend aporta nesta conclusão: “Se essas resistências se opuserem não apenas à verdade das alternativas às quais resistem”, lemos, “mas à presunção de que uma alternativa tenha sido apresentada, então teremos um exemplo de incomensurabilidade” (PKF/CM3, p. 229). Portanto, a proposta de

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que teorias científicas não compartilham de “medidas comuns” significa, no contexto do capítulo XVI do Contra o Método, que encontramos “resistências padronizadas” no processo

de transição teórica. Como as “linguagens naturais” descritas por Whorf, no seu texto mais conhecido, Feyerabend retoma ideia de que teorias científicas comportam uma ontologia. Elas não somente auxiliam na organização das experiências, mas determinam o campo dos fenômenos e especificam quais espécies de eventos podem e não podem ocorrer (PKF/CM, p. 217). Portanto, uma das justificativas da interpretação realista das teorias no Contra o

Método recorre às conclusões linguístico-antropológicas de Whorf.