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Síntese de dois pressupostos metodológicos: consistência e invariância do significado

2.2 RESOLUÇÕES FEYERABENDIANAS SOBRE A DINÂMICA CIENTÍFICA NO

2.2.1 Síntese de dois pressupostos metodológicos: consistência e invariância do significado

“Feyerabend inicialmente introduziu o termo ‘incomensurável’”, afirma Oberheim (2005, p. 376), “como parte de uma crítica [à] teoria de redução de Nagel e a teoria da explicação [hempeliana]”. Contudo, preferimos pensar, como Tsou (2003), que a tese da incomensurabilidade combate dois princípios que repercutem o ideal de monismo teorético defendido pelos membros do Círculo de Viena.21 O aludido par de requisitos metodológicos contido no modelo de explicação nomológico-dedutivo de Hempel e na teoria reducionista de Nagel tem como objetivo: (1) a consistência lógica entre novas teorias e as concepções confirmadas e (2) a permanência dos significados dos termos científicos ao longo das mudanças teóricas. Assim, a racionalidade do progresso científico consiste na subsunção

dedutiva dos sucessos explicativos e na incorporação lexical dos conceitos empregados pelas teorias sucessivas. Nessa ótica reducionista, a ampliação do conhecimento científico assume um perfil empírico-cumulativista cuja marcha avança ininterruptamente, ampliando, gradual e continuamente, em seu domínio de atuação, o conteúdo factual das teorias. “[O] fenômeno de um domínio autônomo da ciência ser absorvido, ou ‘reduzido’, a outra disciplina”, vemos no

A Estrutura da Ciência, “é uma característica irrecusável e constante da história da ciência moderna e não há motivo para supor que essa redução não continuará ocorrendo futuramente” (NAGEL, 1960, p. 299).

A primeira regra básica dessa “visão ortodoxa” sustenta que teorias sucessivas precisam ser consistentes entre si, de modo que “a explicação é obtida por dedução no sentido lógico estrito” (PKF/PP1, p. 46). O princípio de dedutibilidade da relação de sucessão entre teorias pode aparecer como a seguinte condição do programa nageliano: “O objetivo da redução é mostrar que as leis ou os princípios gerais da ciência secundária são simplesmente conseqüências lógicas das suposições da ciência primária” (NAGEL, 1960, p. 301). Outra exposição do mesmo requisito, também nomeado condição de consistência, concerne ao vínculo que a primeira das condições formais de adequação da explicação proposta no modelo

nomológico-dedutivo de Hempel estabelece entre o fenômeno a ser explicado (explanandum) e a teoria a partir da qual será feita a explicação (explanans). Para que o explanans seja uma base adequada para o explanandum, os enunciados descritivos e os fenômenos que serão explicados devem ser derivados da classe de informações que compõem a teoria utilizada para

21 Um dos principais projetos filosóficos do grupo vienense era o estabelecimento de bases epistêmicas comuns

para todas as áreas do conhecimento, o que também pode ser caracterizado por um ideal de monismo teorético. No Manifesto publicado em 1929 os neopositivistas afirmavam o “objetivo da ciência unificada” (CARNAP; HAHN; NEURATH, 1929/1986, p. 10).

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explicar o fenômeno (HEMPEL; OPPERHEIM, 1948, p. 137).22 O outro pressuposto sugere a

permanência semânticados termos descritivos das teorias sucessivas, ou seja, “a explicação não deve modificar o significado dos principais termos descritivos do explanandum” (PKF/PP1, p. 46). Na versão nageliana, a condição de invariância do significado pode surgir de duas formas:

[O]s axiomas, hipóteses especiais e leis experimentais da ciência envolvida em uma redução devem estar disponíveis como sentenças explicitamente formuladas, cujos diversos termos constituintes possuem significados claramente fixados por regras de uso codificadas pelos procedimentos estabelecidos apropriados por cada disciplina. (NAGEL, 1961, p. 345).

Ou:

[A]s expressões próprias de uma ciência possuem significados que são fixados por seus próprios procedimentos e que são, portanto, inteligíveis nos termos de suas próprias regras de uso, tenha esta ciência sido reduzida ou não a alguma outra disciplina. (NAGEL, 1960, p. 301).

A proposta reducionista é duplamente impraticável. Há situações quantitativas e

qualitativas nas quais relações dedutivas entre teorias científicas não podem ser realizadas. Além disso, a adoção da condição de consistência e da condição de invariância do

significado também apresenta inconvenientes metodológicos. Tais regras impedem a formulação de arcabouços conceituais alternativos e impedem a emergência de teorias mutuamente inconsistentes. “Princípios que encorajam a uniformidade na ciência”, reformula Tsou (2003, p. 214), “têm o duplo efeito de proteger teorias altamente aceitas e retardar a descoberta de novas teorias que são potencialmente melhores que as teorias em voga”. A seção 2.2.2 abaixo explicita os pressupostos dessa concepção empírico-cumulativista e revela o pressuposto ontológico da epistemologia de Feyerabend. Os tópicos 2.2.2.1 e 2.2.2.2

22 É importante sublinhar que Hempel não concorda com essa interpretação. “Com efeito”, escreveu Hempel, “o

modelo de explicação [nomológico-dedutivo] concerne tão-somente à relação entre o explanans e o explanandum; e não acarreta qualquer implicação relativa à compatibilidade de princípios explanatórios distintos que devem ser admitidos sucessivamente em um dado campo das ciências empíricas. Em particular, ele não implica que uma nova teoria explicativa apenas pode ser aceita sob a condição de ser logicamente compatível com aquelas aceitas anteriormente” (HEMPEL, 1965, p. 347, n. 17). Entretanto, para Hempel (1970, p. 70-71), a ocorrência desse padrão explanatório, no qual a lei geral estabelece inferencialmente a predição do fenômeno, além do rigor formal, conta com o aporte “inconteste” da história da ciência, o que também vale como ferramenta de compreensão da teoria hempeliana: “Algumas explicações científicas obedecem ao esquema [nomólogico-dedutivo] de um modo bastante exato. É o que acontece, particularmente, quando certos aspectos quantitativos de um fenômeno ficam explicados por derivação matemática a partir de leis gerais de cobertura, como no caso da reflexão em espelhos esféricos parabólicos. Outro exemplo é a célebre explicação proposta por Leverrier (e independentemente por Adams) das irregularidades peculiares ao movimento do planeta Urano, que não podiam ser justificadas pela atração gravitacional exercida pelos outros planetas então conhecidos. Leverrier suspeitou que elas fossem devidas a um planeta exterior ainda não observado e calculou a posição, a massa e outras características que esse planeta deveria possuir para, e acordo com a teoria de Newton, dar razão quantitativa das irregularidades constatadas. Sua explicação foi sensacionalmente confirmada pela descoberta, na posição prevista, de um novo planeta, Netuno, que tinha exatamente aquelas características calculadas por Leverrier. Aqui também a explicação tem o caráter de um argumento dedutivo cujas premissas incluem leis gerais – no caso, as leis newtonianas do movimento e da gravitação – e enunciados que especificam os valores particulares ao planeta perturbador de várias grandezas”.

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sintetizam as objeções históricas e epistêmicas do filósofo àquelas normas. Em 2.2.3, resumimos a proposta pluralista que, logo em 1963, ele oferece como opção metodológica à ideia de “unificação metodológica” do grupo vienense.