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O modelo da linguagem-dual de Carnap: elementos principais para análise

1.2 A “TESE DA ESTABILIDADE” E A QUESTÃO DA DEPENDÊNCIA TEÓRICA DOS

1.2.1 O modelo da linguagem-dual de Carnap: elementos principais para análise

O célebre ensaio “A Superação da Metafísica mediante a Análise Lógica da Linguagem”, escrito por Carnap em 1932, traz o esboço da proposta de verificação empírica do conteúdo das proposições científicas. A aplicação dessa metodologia indicaria as sentenças efetivamente válidas para a constituição do solo conceitual das ciências experimentais. Fazendo uso da lógica simbólica como acessório para excluir do campo do conhecimento todo vocabulário que, disposto proposicionalmente, não pudesse ser ligado à experiência, o plano de redução sentencial a “proposições elementares” – que fixariam os significados das demais definições – conduziria a proposições de observação (ou protocolares).

[U]ma seqüência de palavras somente possui sentido quando suas relações de derivação de proposições protocolares [básicas ou primitivas] são fixadas [...] uma palavra só tem significado quando as proposições nas quais pode aparecer são suscetíveis de redução a proposições protocolares. (CARNAP, 1932/1959, p. 63).

A proposta verificacionista afirma que a atribuição de um “significado exato” para as sentenças teóricas decorre da redução de seu conteúdo às informações presentes nas proposições protocolares, cuja relação com eventos observáveis parecia ser de apreensão mais evidente. A aplicação do “critério de verificação” do significado das sentenças possibilitaria a aliança delas com situações experimentais. O sucesso dessa metodologia permitiria distinguir os termos providos de sentido que constituem as ciências empíricas daquelas pseudoproposições carentes de significado recorrentes nas filosofias especulativas tradicionais.

Mas o “empirismo radical” segundo o qual o conteúdo das sentenças científicas seria redutível a termos cujo conteúdo reflete situações físicas precisas foi abandonado por Carnap, com a publicação de “Testabilidade e Significado”, em meados da década de 1930. Ele preserva a ideia de que o significado dos termos deriva da comprovação da veracidade da sentença, porém, aceita a impossibilidade de definir de forma irretorquível o significado de um enunciado. Isto é, a perspectiva da verificação última dá espaço à procura da confirmação gradual do conteúdo de uma sentença na experiência mediante testes. Enfim, essa concepção acerca do conhecimento da significação dos termos científicos é bem mais flexível do que a anterior, sobretudo porque admite a impossibilidade da confirmação absoluta do sentido dos termos científicos. “Não podemos verificar a lei [da física ou da biologia]”, reformulou Carnap,

mas podemos testá-la, testando suas instâncias particulares, isto é, as sentenças particulares que deduzimos da lei e de outras sentenças previamente estabelecidas.

36 Se na série contínua de tais experimentos de teste não se encontrar nenhuma instância negativa, mas o número de instâncias positivas aumentar, então nossa confiança na lei aumentará passo a passo. Deste modo, ao invés de verificação, podemos falar aqui de confirmação gradativamente crescente da lei. (CARNAP, 1975, p. 178).

Predicados poderão ser considerados “observáveis” quando seu significado for testado (e progressivamente confirmado) na experiência partindo do estabelecimento de uma metodologia empírica para tais exames. Eles entrarão naquela categoria se puderem ser atribuídos rapidamente em circunstâncias observacionais adequadas e sob padrões de respostas previamente acordados. Por exemplo, “vermelho” seria um predicado observável de um objeto qualquer para alguém que possui as capacidades visuais inalteradas e que faz observações em um ambiente suficientemente iluminado, podendo concluir acerca do emprego correto do mesmo “após poucas observações” (CARNAP, 1975, p. 194). Contudo, um conceito como “campo elétrico” é refratário a tal abordagem. Embora testes de comprovação possam ser executados, a confirmação do seu sentido exige uma complicada mediação instrumental e inúmeras observações preliminares.

Isso implica que conceitos dessa natureza são carentes de significado? É o caso de negar sentido às teorias científicas que fazem uso de noções teóricas semelhantes àquela, restringindo a terminologia científica a conceitos cujos referentes são entidades observacionais? Ou seria conveniente, por outro lado, admitir a significação do discurso científico – mesmo que falte um vínculo manifesto entre seus conceitos e a experiência?

O ensaio “O Caráter Metodológico dos Conceitos Teóricos”, publicado por Carnap em torno de 1956, desenvolve projeto de redução conceitual. O filósofo esboça estratégias de validar filosoficamente teorias que exigem o emprego de termos teóricos, não obstante o reconhecimento de que tais conceitos não podem ser conectados imediatamente à experiência. O autor não aborda a questão da significação da linguagem observacional, apostando no consenso em torno disso: “Deixarei de lado o problema do critério de significação para a linguagem observacional”, ele escreve, “pois parece haver poucos pontos de desacordo a esse respeito entre os filósofos atualmente […]” (CARNAP, 1956, p. 38). Ele se concentra no problema do sentido dos termos que aparecem nas linguagens teóricas e na fronteira que marca a separação entre as expressões com sentido e aquelas carentes de significado empírico, apresentando-nos uma teoria da linguagem-dual da ciência. Com efeito, há uma divisão do vocabulário científico em duas partes, uma observacional e outra teórica, cada qual refletindo um domínio cognitivo específico.

37 Em discussões acerca da metodologia científica, é costumeiro e útil dividir a linguagem da ciência em duas partes, a linguagem observacional e a linguagem teórica. A linguagem observacional utiliza termos que designam propriedades para a descrição das coisas ou eventos observáveis. Por sua parte, a linguagem teórica contém termos referentes a eventos inobserváveis, a aspectos ou características inobserváveis dos eventos, por exemplo, a micropartículas como os elétrons ou os átomos [...] (CARNAP, 1956, p. 39).

O impasse concerne à admissibilidade dos termos teóricos face às inconvenientes exigências de compromisso ontológico que a aceitação de conceitos como “elétron” pode acarretar. O neopositivista entende que os termos descritivos do vocabulário abstrato das teorias podem ser indiretamente interpretados mediante uma ligação da linguagem teórica ao conteúdo empírico associado à linguagem observacional, cujos predicados designam propriedades ou eventos observáveis. A conexão entre esses dois níveis da linguagem científica ficaria a cargo das regras de correspondência, cuja tarefa é “permitir a derivação de determinadas sentenças de [linguagem observacional] a partir de terminadas sentenças de [linguagem teórica] ou vice-versa” (CARNAP, 1956, p. 46-47). Portanto, a aquisição de significado resulta de vínculos que podem ser estabelecidos entre os termos teóricos e a linguagem observacional. A formulação de mecanismos confiáveis de conectar entre esses dois níveis do vocabulário científico é fundamental para o projeto carnapiano: “[S]em [as regras de correspondência]”, ele anuncia, “os termos do vocabulário teórico não teriam significação observacional” (CARNAP, 1956, p. 47). As regras de correspondência estabelecem relações entre noções observacionais (do tipo “x é mais pesado que y”) e conceitos teóricos (como “massa”). No que tange à obtenção de sentido, portanto, a linguagem teórica apresenta uma dependência intrínseca com relação à linguagem observacional, a qual é usada sem ambiguidade entre falantes de um mesmo grupo.

Não existe nenhuma interpretação independente para [a linguagem teórica] […] Os termos do [vocabulário teórico] recebem apenas uma interpretação indireta e incompleta devido ao fato de que as regras [de correspondência] ligam alguns deles com termos observacionais […] (CARNAP, 1956, p. 47).

Ao lado do estabelecimento de regras para o uso claro dos conceitos, o projeto de dispor o vocabulário científico em dois níveis mostrou uma forte preocupação em não restringir demasiadamente a terminologia da ciência, resguardando os termos que não puderam ter sua referência empírica indicada inequivocamente. O plano de “reconstruir a linguagem da ciência mediante um esquema dualista” estabelecendo “regras de uso suficientemente claras” não incorreu no equívoco de impor “restrições demasiado estritas” para noções que são amplamente úteis no trabalho científico (CARNAP, 1956, p. 69-70). A tese filosófica da linguagem-dual pode ser lida, portanto, como uma tentativa de preservar no

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domínio científico a legitimidade epistêmica dos termos teóricos. Nessa disposição, a aquisição de significado dos termos teóricos decorre da ligação que as regras de correspondência estabelecem entre eles e a linguagem observacional. Assim, a concepção neopositivista tende a aceitar que um vocabulário observacional vale como fundamento

invariável e empiricamente estável necessário à atribuição de sentido aos conceitos teóricos. Como veremos em 1.2.2, a protoversão da incomensurabilidade em Feyerabend advém exatamente de uma negação radical da crença neopositivista na dicotomia entre os níveis observacional e teórico dos enunciados científicos.

1.2.2 A refutação feyerabendiana da “tese da estabilidade”: apresentação e discussão