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Popper sobre o aumento da verossimilhança das teorias científicas

3.2 INCOMENSURABILIDADE VERSUS VEROSSIMILHANÇA: DESACORDOS

3.2.1 Popper sobre o aumento da verossimilhança das teorias científicas

O Timeu de Platão desenvolve uma complexa reflexão sobre a ordem e o nascimento do mundo, “o que há de mais belo dentre as coisas geradas” (29a-b). Ao mesmo tempo, especula a propósito do esquema modelar e inteligível que alicerçou a disposição do “céu em universal” (28a-b). O pensador ateniense sugere que o projetista do universo arquitetou proporcionalmente a estrutura cósmica em “partes perfeitas” (24c, 27a-b). O demiurgo dispôs convenientemente a forma dos corpos celestes espelhando as proporções matemáticas (tais como igualdade e semelhança) do círculo, entendida como a figura geométrica simétrica, infinita, eterna, divina (32e-33b-c). Buscando explicar em bases numéricas a harmonia, a perenidade, a beleza, a simetria e a simplicidade da constituição cósmica, Platão aciona critérios matemáticos para compreender a determinação da feição uniforme do movimento astronômico: “[O demiurgo] conferiu [ao cosmos] o movimento mais indicado para sua forma esférica”, lemos no Timeu. “Por essa razão, fê-lo girar uniformemente em torno de si mesmo, impondo-lhe o movimento circular e privando-o dos outros seis, para que não lhes sofresse as influências” (33d-34a-b). Todavia, a constatação observacional do “movimento retrógrado” de alguns “astros errantes” e a variação na luminosidade de planetas (como Marte e Vênus) sugeriam irregularidades no movimento circular dos astros. Tal “desajuste empírico” violava a expectativa por órbitas ciclicamente uniformes e unidirecionais das trajetórias dos corpos celestes rentes à esfera estelar fixa.

Essa apreciação do problema do formato das órbitas celestes na Antiguidade pode valer como um primeiro passo em direção à compreensão da concepção popperiana do desenvolvimento científico.14 O episódio sugere que o avanço científico se origina a partir de um problema, o qual emerge imediatamente após experiências frustrarem uma previsão. Os pensadores gregos guardavam a expectativa ontológica de que as estrelas orbitassem seguindo princípios matemáticos. Porém, os astros não cumpriam a aguardada regularidade dos movimentos circulares. A necessidade de formulação de soluções explicativas surge, pois, do

primeira re-edição do livro Feyerabend eliminou boa parte desse “material lakatosiano” (PKF/CM2, p. 8). Portanto, nas duas últimas edições do Contra o Método, em 1988 e 1993, a parte exclusivamente voltada para a questão da incomensurabilidade fica por conta do capítulo XVI, ao passo que em 1975 o encontrávamos no XVII. O autor esclareceu em uma nota ao A Conquista da Abundância: “O capítulo 17 da primeira edição e o 16 da terceira edição do meu livro Contra o Método contêm uma descrição mais detalhada da teoria de Whorf” (PKF/CA, p. 56, n. 17). Expomos um resumo do ponto de vista do linguista Whorf e sua relação com a incomensurabilidade em Feyerabend na seção 3.3.1.1.

14 Decidimos usar esse episódio porque, no capítulo XV do Contra o Método, Feyerabend o emprega para

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desencontro entre observação e teoria. É assim que, segundo o autor de Conjecturas e

Refutações, acontece a proposição de teorias:

Admite-se que as expectativas (portanto, as teorias), podem preceder, historicamente, até mesmo os problemas […] A ciência, contudo, origina-se

unicamente em problemas. Os problemas só aparecem quando as expectativas malograram, ou quando as teorias nos trazem dificuldades e contradições […] (POPPER, 1982, p. 247).

Após isso, as consequências experimentais das hipóteses articuladas deverão ser submetidas a situações de avaliação empírica. Assim, o objetivo de ampliação racional e contínua de nossas capacidades cognitivas mediante confronto com a experiência é o elemento característico e distintivo da investigação científica. “Pode-se dizer”, lemos, “que o critério que define o status científico de uma teoria é sua capacidade de ser refutada e testada” (POPPER, 1984, p. 66). Nenhuma outra forma discursiva humana apresenta essa postura

crítica e progressiva. Mitos, especulações filosóficas, preceitos religiosos ou produções artísticas podem conter sementes de conhecimento. Mas não teremos uma abordagem legitimamente científica até que tais ideias sejam submetidas à avaliação experimental rigorosa. “As teorias”, afirma Popper (1984, p. 80), “são transferidas não como dogmas, mas acompanhadas por um desafio de que sejam discutidas e, se possível, aperfeiçoadas”. O tipo de teste crucial para discriminar entre alternativas genuinamente informativas e sentenças falsamente científicas consiste em tentativas de refutação das conjecturas através do estabelecimento preditivo de suas consequências experimentais: “Se a observação mostrar que o efeito previsto definitivamente não ocorreu”, lemos, “a teoria é simplesmente refutada: ela é

incompatível com certos resultados passíveis de observação” (POPPER, 1984, p. 66).

Os erros são revelados pela crítica sistemática de nossas suposições. A correção ou abandono delas mostram que a dinâmica científica descobre os pontos falhos das teorias e as abandona quando elas entram em desacordo com os testes. O progresso científico deriva exatamente dessa postura crítica e racional do pesquisador diante da tentativa de responder teoricamente o desacordo entre o conhecimento disponível e situações observacionais. No entanto, o autor de A Lógica da Pesquisa Científica sustenta que é possível estabelecer se uma alternativa representa um “passo à frente” com relação às alternativas antes mesmo de submetê-la a testes empíricos. Há critérios formais de avanço teórico que sinalizam quais

atributos uma conjectura deve apresentar para ser genuinamente científica. “[P]odemos saber

se uma teoria será melhor do que outra”, Popper (1984, p. 243) frisa, “mesmo antes de testada – desde, naturalmente, que os testes não a refutem”. Com efeito, uma hipótese é

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averiguação empírica. Ela será preferível porque traz um maior conteúdo testável e aparenta um crescimento de força preditiva e explanatória. “Em suma”, diz Popper (1984, p. 243), “preferimos teorias interessantes, ousadas e altamente informativas às que são rivais”.

O conteúdo de uma teoria consiste na conjunção das afirmações de duas ou mais sentenças particulares altamente confirmadas. Seja: Ct(a) – o conteúdo de uma afirmativa a –, Ct(b) – o conteúdo de uma afirmativa b – e Ct(ab) – o conteúdo da conjunção Ct(a)+Ct(b). Apesar de Ct(a) e Ct(b), isoladamente, apresentarem maior chance de serem verdadeiras, Ct(ab) é intuitivamente mais rica em conteúdo afirmativo. Pode-se dizer também que Ct(a)≤Ct(ab)≥Ct(b), embora probabilisticamente a relação dos sinais seja inversa: p(a)≥p(ab)≤p(b). O desenvolvimento racional da ciência ocorre quando são selecionadas teorias com maior conteúdo e com menor probabilidade, porque, quanto mais provável a ocorrência de uma sentença, menor a quantidade de informações veiculada por ela. A pesquisa científica não deve almejar estabelecer teorias com alto índice de corroboração porque seus testes se limitam às poucas predições derivadas do seu elevado grau de corroboração. Ao contrário, a construção de conjecturas deve aspirar a proposição de teorias com os seguintes traços: (1) elevado conteúdo informativo, (2) baixo grau de probabilidade e (3) alto nível de testabilidade e refutabilidade.

A seleção de hipóteses rivais acontece através da medição do grau de

verossimilhança delas. Nesse caso, T2 é comparativamente “melhor” do que T1 quando: (a) T2 faz assertivas mais precisas do que T1, ou seja, quando elas resistem a testes também mais precisos; (b) T2 explica mais eventos do que T1; (c) o detalhamento das explicações de T2 é maior do que o detalhamento das explicações de T1; (d) T2 resiste aos testes que refutaram T1; (e) T2 sugere novos testes, não derivados de T1, e resiste a eles; e (f) T2 reúne ou relaciona entre si problemas que T1 considerava isolados. Tais exigências significam que a eleição entre concorrentes deriva da comparação entre o conteúdo empírico das hipóteses, sendo potencialmente preferível aquela cujo grau de informações é mais vasto. E mesmo que T2 não resista a testes futuros, pode-se sustentar sua superioridade com relação a T1, afinal o “grau de verossimilhança” de T2 (Vs(T2)), que é inversamente proporcional ao seu conteúdo de falsidade (CtF(T2)), é maior do que o “grau de verossimilhança” de T1 (Vs(T1)). Ou seja, Vs(T1)<Vs(T2), ou, CtF(T1)>CtF(T2). Assim, a ideia de progresso científico através do

aumento da verossimilhança das teorias insiste que nos aproximamos gradualmente da verdade na medida em que as teorias propostas e testadas se ajustam melhor aos fatos. Isso ocorre quando teorias mais recentes (1) explicam o que as anteriores explicaram com êxito, (2) cobrem os fatos que as precedentes falharam em explicar e (3) passam incólumes pelos

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testes que afastaram a velha teoria. Para cumprir esse “ideal regulador” da investigação racional, as condições de simplicidade, testabilidade e sucesso empírico devem ser satisfeitas. Quanto à primeira, afirma-se a predileção por ideias que expliquem o maior número de fenômenos empregando o menor número de leis teóricas. A segunda condição requer que a nova teoria cubra o grupo de eventos que ela se propõe explicar e adicione consequências empíricas novas e testáveis ao conhecimento acumulado. Conforme Popper (1984, p. 267), “ela será melhor testável do que a teoria precedente, pois explicará tudo o que a teoria anterior explica, possibilitando, adicionalmente, novos testes”. Finalmente, o sucesso empírico mostra que a alternativa proposta consegue resistir, ainda que temporariamente, a testes decisivos de refutação.

A concepção popperiana de progresso científico através do aumento da

verossimilhança das teorias reflete o projeto acumulacionista segundo o qual os estágios mais recentes do conhecimento devem englobar as informações obtidas nos estágios anteriores, adicionando ao domínio gnosiológico uma lista inexplorada de situações de avaliação empírica. Assim, os diferentes estágios da ciência podem ser “comparados” através da constatação da proposição de teorias “mais próximas à verdade”. Como vimos ao longo de 2.2.2, a tese da incomensurabilidade proposta por Feyerabend em 1962 rejeitou a concepção cumulativista ligada aos ditames neopositivistas. De modo similar, no início da década de 1970, a proposta de Feyerabend se voltaraá contra o ideal de conhecimento defendido pelo autor de Conjecturas e Refutações (3.2.2).

3.2.2 “Uma interessante ilusão epistemológica” – Feyerabend crítico de Popper

Há três ocasiões claras nas quais Feyerabend combate a ideia popperiana de “acréscimo de verossimilhança” através da tese da incomensurabilidade teórica: na parte conclusiva do “Consolando o Especialista” (1970), no capítulo XV do Contra o Método (1975) e no ensaio de abertura Problemas do Empirismo, preparado em 1980. Em todas elas o austríaco argumenta que o incremento cognitivo não cumpre as normas epistemológicas de inclusão de conteúdo. Isto é,

existem muitos casos nos quais uma transição para uma nova teoria envolve uma mudança em princípios universais e, assim, rompe com os vínculos lógicos entre a teoria e o conteúdo de sua predecessora. Isto não preocupa cientistas, que possuem muitas formas de selecionar entre pontos de vista “incomensuráveis”, mas entra em confronto com a versão técnica (verossimilhança; aumento de conteúdo) […] nem sempre os conteúdos aumentam; ocasionalmente eles degeneram ou são assumidos de uma forma ad hoc. (PKF/PP2, p. 23).

Em 2.3.2.2, tratamos das objeções de Feyerabend ao “argumento funcional” de Kuhn em favor dos “períodos normais” da pesquisa científica. Essa era a parte “anti-Kuhn” do

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artigo feyerabendiano incluído na coletânea A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. A parte “pró-Kuhn” reflete o acordo entre eles acerca da estrutura da ciência, especialmente quanto à demonstração da improcedência da ideia do “incremento da verossimilhança” das teorias face à ocorrência da incomensurabilidade teórica.15

Agora quero defender Kuhn […] Mais especificamente, tenho interesse em sustentar tanto que a ciência é, e deveria ser, mais irracional do que […] Feyerabend1 (o autor

popperiano das seções precedentes deste ensaio […]) [está] preparado para aceitar […] [O] modelo popperiano de uma aproximação à verdade desmorona [porque] existem teorias incomensuráveis […] Naquelas discussões, ambos concordamos que teorias mais recentes, apesar de frequentemente serem melhores e mais detalhadas que as precedentes, não eram necessariamente mais ricas a ponto de tratar de todos os problemas para os quais as predecessoras haviam obtidos respostas definitivas e precisas. O avanço do conhecimento ou, mais particularmente, a substituição de uma teoria ampla por outra, envolve tanto perdas quanto ganhos […] Vimos também a extrema dificuldade de comparar teorias sucessivas segundo os padrões usuais, a saber, por uma investigação das classes de conseqüências. (PKF/PP2, p. 148, 152-153).

Feyerabend utilizou algumas imagens16 com vistas a demonstrar a inadequação da

teoria da verossimilhança. A Fig. 1 indica, de acordo com 3.2.1, que T’ suplanta T em virtude desses três aspectos: T falha no domínio F; T’ explica com a mesma precisão o campo S, correspondente à parte de sucesso de T; e T’ oferta uma série consequências adicionais (A) que não tinham lugar enquanto T predominou. Comparativamente, T’ seria preferível a T por pelo menos três razões: (i) não incorre nos mesmos erros que refutaram a antecessora, (ii) engloba os êxitos explicativos da precedente e (iii) apresenta novas situações de problemas e pesquisa anteriormente não contempladas. Da mesma maneira, as variantes da Fig. 2 também sinalizam que a predileção por T’ parece decorre de dois motivos. A Fig. 2a indica que que T’

incorpora todo o conteúdo de T e amplia o campo de investigação. A Fig. 2b mostra que T’

não falha em cobrir domínio F, fonte dos fracassos de T, e que T’ estabelece o caráter não- científico de F. Assim, T’ representa um avanço com relação às teorias precedentes porque demarca melhor os campos de atuação da ciência, subsume o conteúdo científico de T e faz predições inéditas.

15 Hoyningen-Huene (2005, p. 164) avança um pouco mais: “Por fim, há um ponto substantivo de concordância

[entre Kuhn e Feyerabend] que é extremamente importante. Apesar das várias diferenças entre seus conceitos de incomensurabilidade, e as conseqüências que se seguem dessas diferenças, ambos consideram que a incomensurabilidade anula a possibilidade de interpretar o desenvolvimento científico como uma aproximação à verdade (ou aumento de verossimilhança). Tal imparcialidade da verdade deriva das mudanças ontológicas que acompanham a troca teórica incomensurável. Tais mutações não são simplesmente refinamentos da, ou adições à, antiga ontologia, de modo que esses desenvolvimentos podem ser vistos como cumulativos. Ao contrário, uma ontologia substitui outra (na tese de Feyerabend essa substituição é necessariamente radical, ao passo que, para Kuhn, pode ser aleatoriamente localizada)”.

16 As imagens foram reproduzidas tendo como modelo as figuras impressas no “Consolando o Especialista”

(1970) e no capítulo XV do Contra o Método (1975). As figuras 1 e 3 aparecem no texto de 1970, ao passo que as figuras 2a, 2b e 4 constam no livro de 1975.

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T’ T

Fig. 1 Fig. 2a Fig. 2b

Mas algumas situações de mudança científica rejeitam a compreensão do avanço teórico como uma sobreposição do conteúdo de T e T’ e do compartilhamento dos enunciados observacionais desse par. “Entretanto, há situações que pedem uma avaliação comparativa sem satisfazer as condições expostas acima”, Feyerabend afirmou em 1970. “Um julgamento que envolva a comparação das classes de conteúdo é, neste contexto, evidentemente impossível. Por exemplo, não podemos afirmar que T’ está mais próxima ou mais afastada da verdade do que T” (PKF/PP2, p. 153). Em contraste com a Fig. 1, a Fig. 3 revela um caso em que o conteúdo e os enunciados de T e T’ não se sobrepõem. Há um tipo de “golfo epistemológico” separando as leis, conceitos ou explicações das teorias sucessivas. Por seu lado, a Fig. 4 ilustra uma situação de assimetria de conteúdo entre hipóteses concorrentes. Opondo-se à Fig.2, ela indica uma transição científica na qual o conteúdo das teorias sucessivas não é absorvido. Essa mudança não adiciona novas informações ao conhecimento já disponível. Ademais, ela abandona o domínio de pesquisa precedente e redefine os termos empregados nas explicações e descrições dos fenômenos. “A descoberta de algumas entidades não existem”, o autor sublinhou, “pode forçar o cientista […] a usar novos conceitos ainda que as antigas palavras permaneçam em uso por muito tempo” (PKF/CM, p. 119). Além disso, o espaço D na Fig. 4 consiste no âmbito de fatos tratados por T que são mencionados por T’, embora de modo distorcido. No Contra o Método, tal situação é descrita com estas palavras: “O aparato conceitual da teoria [nova], o qual vai lentamente emergindo, logo

começa a definir seus próprios problemas, e os problemas, fatos e observações anteriores são ou esquecidos ou postos de lado como irrelevantes” (PKF/CM3, p. 217). Portanto, o modelo

reducionista de acúmulo dos méritos explanatórios e de adição de situações experimentais projetada pelo modelo popperiano de aumento de verossimilhança malogra em situações de profunda redefinição teórica. A “exigência de que o conteúdo de verdade da teoria mais antiga

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como concebido enquanto essa teoria reinava suprema pode ser incluído no conteúdo de verdade de sua sucessora é violada em qualquer dos casos” (PKF/CM3, p. 219).

Fig. 3 Fig. 4

Feyerabend também recorre a episódios históricos para definir que a explicação do

progresso científico enquanto aumento de conteúdo das teorias não passa de uma “uma interessante ilusão epistemológica” (PKF/CM3, p. 218). O exemplo da formulação da teoria einsteiniana e a consequente redefinição conceitual dos termos clássicos – que, como mostramos em 2.2.2.2 e 3.1, o autor já havia discutido em 1963 e 1965 – é citado nos mencionados textos de 1970 e 1975. O filósofo afirmou:

Como exemplo de duas teorias incomensuráveis, discutamos brevemente a mecânica celeste clássica (MC) e a teoria da relatividade restrita (RR) […] (RR), como tendemos a dizer, não se limita a convidar-nos a repensar o comprimento, a duração e duração inobservados; ela parece encerrar o caráter relacional de todos os comprimentos, massas e durações, observados e inobservados, observáveis e inobserváveis. Ora, a extensão de uma nova teoria T a todas as suas conseqüências, incluindo relatos observacionais, pode mudar tanto as interpretações das conseqüências que delas desaparecem das classes de conseqüências de teorias anteriores. Essas teorias anteriores serão, então, incomensuráveis com T. A relação entre MC e RR é um caso ilustrativo. O conceito de comprimento empregado em RR e o conceito de comprimento pressuposto na MC são diferentes. São ambos

relacionais, e muito complexos […] Mas o comprimento relativista (ou a forma relativista) envolve um elemento ausente no conceito clássico e é, em princípio, excluído dele. Envolve a velocidade relativa do objeto em consideração em algum sistema de referencia […] Tomada seriamente, essa disparidade conceitual contamina até as situações mais “ordinárias” […] Será, portanto, sem sentido esperar que derivações suficientemente extensas possam fazer-nos voltar às idéias mais velhas. As classes de RR e MC relacionam-se entre si como na [Fig. 3]. Não se pode fazer uma comparação de conteúdo nem julgamento de verossimilhança. (PKF/PP2, p. 153).

A passagem acima é essencial para compreensão da estrutura da tese da incomensurabilidade em Feyerabend. Ela reitera que teorias gerais não são simples ferramentas preditivas do domínio observacional, mas comportam uma “cosmologia”. Assim, como o filósofo notou com a Tese I de 1958 (1.2.2) e defendeu em 1962 no seminal “Explicação, Redução e Empirismo” (2.2.2), no início da década de 1970 ele também insistiu que trocas científicas podem forçar um abandono de pressupostos ontológicos, fator que altera

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a própria descrição dos fenômenos. Com efeito, pretendemos mostrar que o capítulo XVI do

Contra o Método, integralmente dedicado ao conceito de incomensurabilidade, consiste em uma tentativa de fundamentar, por diferentes meios, a “interpretação realista” das teorias científicas (3.3).

3.3 A REMODELAGEM DA TESE DA INCOMENSURABILIDADE NO CAPÍTULO XVI