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Pierre Duhem sobre os experimentos na física e suas implicações semânticas

1.1 O CÍRCULO KRAFT, WITTGENSTEIN E PIERRE DUHEM: ELEMENTOS

1.1.3 Pierre Duhem sobre os experimentos na física e suas implicações semânticas

Oberheim (2005) defende que Feyerabend foi conduzido à formulação da ideia de incomensurabilidade pelo trabalho do cientista, filósofo e historiador da ciência francês Pierre Duhem (1861-1916). O principal indício que sustenta a conclusão do estudioso consiste em uma pesquisa minuciosa no exemplar que, em 1949, Feyerabend adquiriu do A Meta e a

Estrutura da Teoria Física (1906), de Duhem.15 Enfim, opondo-se frontalmente à proposta de Preston (1997), ele afirma que foram as concepções duhemianas sobre as mudanças semânticas ao longo do avanço científico – e não a “semântica contextualista” de Wittgenstein – que motivaram a formulação original da incomensurabilidade em Feyerabend:

15 Oberheim (2005, p. 383) insiste que Feyerabend teria adquirido o livro de Duhem no final dos anos 1940, pois

a datação 04/05/1949 pode ser vista no volume depositado no arquivo filosófico de Paul Feyerabend junto à Universidade de Konstanz (Alemanha). Outro aspecto que leva o comentador àquela conclusão é o fato de que as inúmeras anotações que podem ser vistas nas margens das páginas do exemplar foram feitas em alemão, prática que o filósofo abandonou gradualmente ao longo da década seguinte, quando passou a escrever e publicar a maior parte de seus textos em inglês. O hábito de se expressar nesse idioma foi, inclusive, um fator decisivo para fazer Feyerabend permanecer lecionando em Berkeley. No Matando o Tempo ele disse: “Eu preferia falar, escrever e pensar em inglês (ainda prefiro)” (PKF/MT, p. 173).

31 Feyerabend citou Duhem explicitamente no meio da explicação de sua formulação inicial da incomensurabilidade – uma sentença antes de criticar o conservadorismo de Heisenberg e três frases após escrever, “em vez disso, o conteúdo das sentenças deles é determinada pela nova lei da gravitação. Os conceitos modificam seu significado em correspondência a esta nova teoria” […] Preston apresentou o desenvolvimento feyerabendiano da [“protoversão” de Feyerabend da incomensurabilidade] como uma leitura equivocada da teoria do significado de Wittgenstein. Isto está errado. Feyerabend [a] desenvolveu a partir de uma leitura acertada de Duhem. (OBERHEIM, 2005, p. 382-383).

Duhem mostra que conhecer a estrutura do método experimental usado na física é um elemento essencial para compreendermos algumas características importantes do conhecimento científico. Segundo ele, um experimento possui duas etapas interdependentes: a

observação direta dos fatos e a interpretação desses fatos. A segunda fase, e somente ela, exige o conhecimento das teorias que são admitidas como válidas e do modo como elas são aplicadas pelos especialistas. Além dos “fatos”, um experimento científico requer o uso de uma terminologia simbólica específica:

[U]m experimento na física é a observação precisa do fenômeno acompanhada por uma interpretação desse fenômeno; essa interpretação substitui os dados concretos conhecidos de fato por observações abstratas e representações simbólicas que correspondem a eles em virtude das teorias admitidas pelo observador. (DUHEM, 1906/1981, p. 147).

À diferença da experiência comum, um experimento científico correlaciona proposições teóricas com a observação dos fatos. É impraticável conhecer o significado das experiências na física ignorando as premissas das teorias que o pesquisador admite como certas: “[N]ão podemos atribuir [à experiência física] qualquer sentido sem o apoio das mais diversas e avançadas teorias da física” (DUHEM, 1906/1981, p. 148). Ou seja, experiências na física não são mais concebidas simplesmente como um acúmulo de fatos observados − elas refletem o estabelecimento de resultados factuais interpretados teoricamente e convertidos para “um mundo ideal, abstrato e simbólico criado pelas teorias que [o físico] admite como estabelecidas” (DUHEM, 1906/1981, p. 159). Então, a avaliação do experimento exige a realização de uma cuidadosa investigação sobre as teorias que o cientista acolhe como adequadas e que ele usa na interpretação dos fatos observados. O desconhecimento dos pressupostos teóricos de um experimento pode levar à impossibilidade de entendimento do sentido atribuído às sentenças e, com isso, impedir a avaliação do sucesso dos resultados alcançados.

Se as teorias admitidas pelo físico são as que aceitamos, e se assentimos em seguir as mesmas regras na interpretação do mesmo fenômeno, falamos a mesma linguagem e podemos entender um ao outro. Mas este não é sempre o caso. Não ocorre quando discutimos os experimentos de um físico que não pertence à nossa escola; e não ocorre especialmente quando discutimos os experimentos de um físico separado de nós por cinqüenta, cem ou duzentos anos. (DUHEM, 1906/1981, p. 159).

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Em outras palavras, a comparação e a inteligibilidade do conteúdo dessas teorias aos olhos dos pesquisadores de outras tradições exige, mediante a aplicação de novos símbolos, a criação de uma terminologia capaz de fazer as noções teóricas corresponderem umas às outras. O trecho a seguir explicita o núcleo dessa interessante concepção: “Se formos bem sucedidos em fazer isso”, diz Duhem,

a discussão [do] experimento será possível […] Se, ao contrário, não pudermos obter informações suficientes sobre as idéias teóricas do físico cujo experimento estamos discutindo, e se falhamos em estabelecer uma correspondência entre os símbolos que ele adotou e os símbolos fornecidos pelas teorias que aceitamos, as proposições através das quais aquele físico traduziu os resultados de seus experimentos não serão nem verdadeiras nem falsas para nós; elas serão carentes de significado, uma letra morta; aos nossos olhos elas serão […] documentos escritos em uma linguagem indecifrável. Quantas observações acumuladas pelos físicos do passado estão agora perdidas para sempre! Seus autores erraram em não nos informar a respeito dos métodos que empregaram para interpretar os fatos e é impossível transpor a interpretação deles para nossas teorias. Eles lacraram suas idéias em signos dos quais perdemos a chave. (DUHEM, 1906/1981, p. 160).

Oberheim (2005, p. 385) mostra que as análises relativas a mudanças conceituais através do desenvolvimento científico e às dificuldades de entendimento de peritos filiados a comunidades científicas conflitantes são a matriz da ideia feyerabendiana da incomensurabilidade de teorias. Porém, existem algumas dificuldades nessa proposta. De um lado, em nenhuma das várias vezes em que Feyerabend narrou sua rota à incomensurabilidade ele mencionou as aludidas reflexões duhemianas sobre mudanças conceituais ao longo da história da ciência.16 Por outro lado, seguir esse caminho nos obriga a admitir que a reflexão feyerabendiana sobre comparação de teorias foi tratada em “chave historiográfica” desde o início, como ocorre em grande parte das considerações duhemianas. Contudo, a propalada suposição de que Feyerabend sempre abordou a estrutura do conhecimento através de uma metodologia historicista não está correta. “Kuhn usou uma abordagem diferente para aplicar o mesmo termo [‘incomensurabilidade’] a uma situação similar (mas não idêntica)”, o Contra

o Método esclarece. “Sua abordagem era histórica, ao passo que a minha era abstrata” (PKF/CM3, p. 288). Finalmente, ainda que afaste a importância genética da “teoria contextual” de Wittgenstein na formação da protoversão da incomensurabilidade, Oberheim (2005) preserva a compreensão de que as primeiras ocorrências dessa noção trazem um caráter essencialmente semântico. Portanto, a mesma crítica que foi feita à leitura de Preston (1997) também se aplica àquele estudioso. As variações “perceptiva” e “valorativa” do conceito, aludidas por Feyerabend (em 1.2.1.1), são eclipsadas em meio à exclusiva discussão

16 Algumas das passagens onde Feyerabend cita Duhem se encontram em: PKF/PP1, p. 5, 9-10, 13, 47, 104,

144-145, 185; PKF/PP2, p. 20, 91, 93, 97, 193, 224, 244; PKF/PP3, p. 10, 12, 85, 89, 152, 155, 165, 216;

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duhemiana sobre mudanças de significado. Diante disso, observamos que a tentativa de explicar a gênese da ideia de incomensurabilidade de teorias em Feyerabend através da remissão exclusiva às teses de Duhem também não é plenamente satisfatória.