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Teórico-impregnação da observação e o princípio de testabilidade teórica

1.3 A IDEIA DE “TEÓRICO-IMPREGNAÇÃO” DAS SENTENÇAS DE OBSERVAÇÃO E

1.3.3 Teórico-impregnação da observação e o princípio de testabilidade teórica

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Em 1960, Feyerabend publicou, no The Philosophical Review, uma resenha na qual criticou a epistemologia hansoniana presente no livro Padrões da Descoberta, de 1958. O primeiro aspecto mencionado no texto aborda o impacto da obra wittgensteiniana no cenário filosófico do século vinte. O anarquista considera que a principal contribuição das

Investigações Filosóficas reside na explicitação do processo envolvido na aquisição da competência em utilizar as palavras nos “jogos de linguagem”. Wittgenstein se apresenta como uma figura central no combate ao modelo positivista, segundo o qual “a interpretação de certas expressões (as expressões descritivas da ‘linguagem observacional’) é fixada de uma vez por todas e é a partir dela que todas as outras expressões adquirem seus respectivos significados” (PKF 1960, p. 247). O próprio pensamento de Hanson acolhe esse contextualismo teórico das “proposições factuais”.

[I]nterpretamos nossas sentenças observacionais com a ajuda de teorias que possuímos (“jogos de linguagem” é a expressão confusa empregada por Wittgenstein) e não de outro modo. Devemos investigar suas possibilidades

conceituais quando buscamos compreender a ciência ou o conhecimento em geral, e não “fatos”, “resultados de observação” e coisas do tipo. (PKF 1960, p. 247).

Assim como o autor do Padrões da Descoberta, ao longo de sua produção intelectual Feyerabend se dedicou a combater a concepção neopositivista acerca da neutralidade teórica das “proposições protocolares”. “Este, se entendo bem, é o cerne do livro em revisão”, ele diz, “e neste âmbito estou em pleno acordo” (PKF 1960, p. 247). Nesse sentido, a aproximação dos dois filósofos é incontestável, assim como o fato de que, à primeira vista, ambos aportaram à ideia de teórico-impreganação na mesma data. “Assim, no mesmo ano em que Hanson (o livro Padrões da Descoberta, de Hanson, apareceu em 1958)”, lemos no Contra o

Método, “formulei minha tese” (PKF/CM3, p. 287). Contudo, tais similaridades não provam sua identidade epistemológica, sugerido por Jones (1978).

Feyerabend apontou seu distanciamento teórico com relação à perspectiva de Hanson no Contra o Método: “Em resumo: os enunciados observacionais não só estão carregados de teoria (as concepções de Toulmin, Hanson e, aparentemente, Kuhn), mas são completamente

teóricos” (PKF/PP1, p. x). Ao mesmo tempo, a diferença de percurso intelectual também foi

reconhecida por ele: “Com efeito, ao passo que Toulmin e Hanson foram inspirados pelas

Investigações Filosóficas, eu principiei, e retornei a elas, por idéias que foram desenvolvidas no Círculo de Viena – e afirmei isso” (PKF/CM3, p. 287). Preston (1997, p. 41) destacou que o principal ponto de afastamento entre os autores está na constatação de que “a própria teoria da observação de Feyerabend exige, na verdade, que as teorias sejam testadas contra a experiência”. Assim, a perspectiva feyerabendiana, em 1960, exigia uma espécie de confronto

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entre hipótese científica e um “conteúdo teoricamente-neutro”.21 “Também penso, em acordo

com a metodologia que foi desenvolvida pelo professor Karl Popper”, o austríaco assumiu, “que este conteúdo da [teoria científica] é composto pelos possíveis falsificadores empíricos [da teoria], em vez de exemplos que poderiam confirmá-la diretamente” (PKF 1960, p. 249).

A ideia de teórico-impregnação da observação defendida por Hanson repele a metodologia falsificacionista de que a experiência funciona como uma instância válida para a indicação da inadequação empírica de uma teoria. Assim, o estabelecimento de conexões entre as posições de Hanson e Feyerabend precisa conciliar a exigência de teste empírico das teorias com a compreensão da modelação teórica dos dados sensíveis. Além disso, a demarcação da posição feyerabendiana sobre a relação entre teoria e observação é repleta de autocríticas. No livro A Ciência em uma Sociedade Livre, ele descreveu os motivos que o levaram a abandonar a vertente perceptiva da ideia de incomensurabilidade apoiada na “compreensão pragmatista” do processo observacional. Embora tenha acompanhado, por algum tempo, a concepção expressa nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein (e retomada por Hanson no escrito de 1958), de que diferentes organizações óticas desencadeiam

formas distintas de “ver como…”, nos anos 1960 Feyerabend rejeitou as conclusões desses

pensadores (1.3.1 e 1.3.2). As passagens seguintes, escritas em 1978, mostram-nos essa mudança de ponto de vista: “Hanson sustentou com vigor essa tese [da teórico-impregnação da observação] e a ilustrou com muitos exemplos em seu Padrões da Descoberta”, Feyerabend reconheceu (PKF/CSL, p. 74, n. 112). “Durante algum tempo considerei que as mudanças conceituais vinham sempre seguidas de mudanças na percepção”, segue ele, “mas abandonei essa idéia em ‘Resposta a Críticos’ [1965], texto das notas 50 e seguintes. Motivo: a idéia não concordava com os resultados das pesquisas psicológicas” (PKF/CSL, p. 75, n. 118).

O núcleo do argumento de Jones (1978) não pode ser frontalmente rebatido. De fato, por algum tempo, Feyerabend acolheu uma relação entre teoria e observação semelhante àquela do Padrões da Descoberta. Com base no trecho acima, essa seria uma possível fonte da ideia de incomensurabilidade de padrões perceptivos. No entanto, com vistas a enfraquecer essa leitura genética, convém reforçar dois aspectos. De um lado, como os dois pensadores anunciaram suas ideias em 1958, não é possível que o escrito de Hanson tenha gerado no pensamento de Feyerabend a possibilidade de incongruências das experiências visuais. Por isso, dificilmente a vertente perceptiva da incomensurabilidade deve se reportar àquele livro. Ademais, a Tese I que Feyerabend defendeu em 1958 – e que, como vimos em 1.2.2, encena a

21 Como veremos na seção 2.2.3, em 1962, Feyerabend já não trabalhava com uma epistemologia da seleção

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protoversão da incomensurabilidade – tem suas origens no trabalho de doutoramento

apresentado em 1951, como mostramos em 1.1.1. Assim, suas resoluções relativas à “dependência teórica” das sentenças observacionais antecedem à publicação do Padrões da

Descoberta. Em segundo plano, na resenha desse livro, publicada por Feyerabend em 1960, encontramos a requisição metodológica de confronto das predições científicas com um solo empírico neutro, Esse requisito se mostrava incompatível com a conclusão hansoniana de “construção teórica” da experiência. No entanto, o trabalho de Jones (1978) sequer ventila esse obstáculo, embora o consideremos central no que tange às relações entre Hanson e Feyerabend. Como veremos em 3.3.1.2, será necessário aguardar publicação do Contra o

Método, cuja primeira edição data de 1975, para termos um conhecimento mais definido sobre a relação entre a tese da incomensurabilidade e a questão da incompatibilidade perceptiva.