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A OBJEÇÃO DE ACHINSTEIN À “TEORIA CONTEXTUAL DO SIGNIFICADO” DE

Desde 1962, quando foi explicitamente anunciada, a versão feyerabendiana da incomensurabilidade teórica se tornou alvo de graves objeções. Conforme notou Preston (1997, p. 172), “uma quantidade enorme de tinta foi derramada desde 1962”. Assim, Silva (1996, p. 257-289) resume que essas críticas foram responsáveis por mudanças fundamentais nos pontos de vista do autor. Uma excelente ilustração desse fértil intercâmbio aparece na sofisticada discussão que, em meados da década de 1960, Feyerabend e Peter Achinstein travaram em torno da seguinte questão: toda mudança teórica, por menor que seja, acarreta

simultaneamente uma variação semântica da terminologia científica e, portanto, engendra uma situação de incomensurabilidade conceitual? Esse não é o único caso de objeção que o anarquista recebeu por parte da tradição analítica. Como o artigo “Réplica a Críticos: Comentários sobre Smart, Sellars e Putnam”, incluído no Boston Studies in the Philosophy of

Science de 1965, deixa bem à vista, a interlocução com o referido trio representa capítulo fundamental do aprimoramento das bases da proposta feyerabendiana.5 Todavia, selecionamos o texto “Sobre o Significado dos Termos Científicos”, que Achinstein lançou em 1964, e a réplica homônima que Feyerabend publicou em 1965, porque essa conversação revela falhas nas premissas da defesa da incomensurabilidade conceitual.

Com relação à questão pontuada acima, Achinstein foi taxativo em oferecer uma resposta negativa. Em sua visão, os conceitos das teorias científicas não variam na mesma velocidade da intensa dinâmica científica, como sugere uma leitura radical da “teoria contextual do significado”, explorada em 1.1.2. Então, a determinação da “variação semântica radical” que consagra a ocorrência da incomensurabilidade ou requer um refinamento acerca de suas condições de possibilidade ou é despropositada. “Não está em consideração que mudanças ocorridas em uma teoria sejam tais que faça sentido admitir que as palavras envolvidas assumem, a partir de então, diferentes significados”, escreve Achinstein (1964, p. 507). “A questão é que isto não é a regra”. Assim, não haveria qualquer nível de acordo ou desacordo entre adeptos de tradições sucessivas. Consequentemente, diz Preston (1997, p.

5 Por exemplo, esse debate esmerou tanto a crítica ao princípio de proliferação (2.3.2.2) como a recusa às

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104-105), não seria possível sequer indicar que tais pontos de vista são rivais ou mesmo alternativos. Achisntein (1964, p. 501-502) explicita cinco fatores cognitivos pertinentes no que diz respeito à compreensão da articulação de um termo no interior de uma teoria científica: (1) sua definição explícita, (2) a derivação de uma fórmula que contenha uma expressão denotada por ele, (3) as diversas características ou propriedades do elemento designado por ele, (4) sua função em uma teoria e, finalmente, (5) o escopo de aplicação (os tipos de situação de uso) do termo. Mas, segundo o crítico, alguns termos podem ser compreendidos ainda que não conheçamos todo o sistema teórico no qual ele está incluído. “O termo ‘momento angular’ pode ser entendido de forma independente da teoria de Bohr”, exemplifica Achinstein (1964, p. 503). Ademais, não há relevância, para o domínio de investigação, se ocorrem ou não mudanças no significado de termos que não assumem uma “importância definicional”. “Apenas porque o conhecimento de algumas das características atribuídas a um elemento pode ser exigido para o conhecimento do significado de um termo”, explica ele, “não segue-se daí que cada característica atribuída ao elemento deve ser considerada parte de seu significado” (ACHINSTEIN, 1964, p. 504).

A “teoria contextual do significado” seria uma simplificação da estrutura semântica do vocabulário científico porque não reconhece diferentes graus e situações de variação conceitual. O sentido de alguns termos científicos apenas varia de maneira relevante quando acontece uma mudança profunda no interior da teoria, mantendo-se equivalentes em situações de ajustes teóricos imperceptíveis. Em síntese, parece existir “vários tipos e graus de dependência e independência que um termo pode apresentar relativamente a uma dada teoria na qual ele aparece” (ACHINSTEIN, 1964, p. 509). Ignorar tais especificidades estimula a aparição de imagens distorcidas da dinâmica teórica. A “mudança radical do significado” admitida por Feyerabend e sua derivação na “incomensurabilidade conceitual” ilustram isso.

A tentativa feyerabendiana de superação desses obstáculos veio no ano seguinte, em 1965, com o artigo “Sobre o ‘Significado’ dos Termos Científicos”.6 Apresentando um passo

à frente em sua compreensão sobre a estrutura do vocabulário científico, ele lança mão de um dos seus episódios favoritos (a passagem da mecânica de Newton à teoria da relatividade de Einstein) para retrabalhar a temática da mudança semântica. Inicialmente, somos convidados a considerar três teorias: T (a mecânica clássica), T’ (a teoria da relatividade geral) e T*

(idêntica à mecânica clássica, mas com uma modificação no valor da constante gravitacional nas proximidades da Terra). A transição T → T* não seria uma mudança científica

6 Este texto foi originalmente publicado no volume 12 do Journal of Philosophy. Todavia, tomamos por base sua

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fundamental porque essa troca teórica não exige uma mudança nos termos fundamentais (tais como: distância temporal, distância espacial, força, massa, etc.). Ou seja, T* não é uma

alternativa forte a T, pois a corroboração daquela afeta muito pouco esta. Suas pequenas diferenças quantitativas podem ser eliminadas mediante rearranjos em T. Em outros termos: “T e T* certamente são teorias diferentes”, lemos; “em nosso universo, onde nenhuma região é privada da influência gravitacional, as predições de T e T* não vão coincidir” (PKF/PP1, p. 97). Todavia, Feyerabend já não considera que qualquer nível de mudança teórica ocasiona mudança do significado das teorias: “Mesmo assim, seria temerário dizer que a transição T →

T* envolve uma mudança de significado. Pois, embora haja, por todos os lados, uma diferença dos valores quantitativos das forças”, conclui, “não há razão em afirmar que isto é devido à ação de tipos de entidades diferentes” (PKF/PP1, p. 97). Portanto, como explicou Preston (1997, p. 106), “Feyerabend explicitamente repudiou, a partir daqui, a tese holista extrema de que toda mudança teórica muda o significado [dos conceitos] e tentou formular um critério para mudanças no significado”. A situação é diferente no caso da transição T → T’. Ela implica uma espécie de mudança fundamental na qual, visivelmente, há o confronto entre

alternativas fortes. Afinal, a teoria da relatividade geral provoca uma reformulação nas leis básicas da mecânica clássica, além de redefinir os conceitos básicos (tais como: distância temporal, distância espacial, força, massa, etc.) da teoria newtoniana: “[A] transição T → T’ envolve uma mudança no significado de noções espaço-temporais” (PKF/PP1, p. 100). O trecho abaixo sintetiza a reformulação do núcleo da “teoria do significado” de Feyerabend:

Esta mudança [T → T’] é drástica o suficiente para excluir a possibilidade de elementos comuns de significado entre T e T’. Para ver isso, considere a noção de

distância espacial entre dois eventos simultâneos, A e B […] De acordo com T a distância (AB) é uma propriedade da situação na qual A ou B ocorre; é independente das velocidades assinaladas, dos campos gravitacionais e do movimento do observador. Um observador apenas pode influenciar (AB) através da interferência ativa em A ou B. Qualquer processo por parte do observador que não atinge A ou B deixa a distância intocada. De acordo com T’, (AB) é uma projeção, na estrutura

espaço-temporal do observador, do intervalo tetra-dimensional [AB]. (AB)T’ mudará mesmo naqueles casos nos quais uma influência causal em A ou B está, por princípio, excluída […] Segue-se disso, então, que as diferenças entre (AB)Te (AB)T’ é totalmente tributária aos significados das noções empregadas para explicar suas propriedades. Na terminologia filosófica tradicional: (AB)Te (AB)T’são constituídas pelos princípios de T e T’, respectivamente. Essas entidades não podem ser

descritas, nem mesmo parcialmente, pelos meios que são independentes ou da teoria à época do advento de T’ […] expressei o fato dizendo que ‘(AB)T’ e ‘(AB)T’’ são noções incomensuráveis. (PKF/PP1, p. 100).

A objeção de Achinstein exigiu de Feyerabend uma formulação mais precisa dos critérios de mudança do significado dos termos científicos. Diante disso, o austríaco distinguiu a existência de dois tipos de situações relevantes de mudança semântica: (1)

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quando as regras da teoria posterior mudam a organização dos “tipos” desenvolvidos pela teoria antecedente e (2) quando o alcance dos conceitos dessas teorias não se coaduna. “Faremos um diagnóstico de uma mudança de significado”, Feyerabend redefine,

ou se uma nova teoria acarreta que todos os conceitos da teoria precedente têm extensão zero ou se ela introduz regras as quais não podem ser interpretadas como atribuindo propriedades a objetos nas classes já existentes, mas que muda o próprio sistema de classes. (PKF/PP1, p. 98).

A crítica reconstruída revelou problemas na concepção sobre a estrutura do vocabulário científico decorrente da “teoria contextual do significado” recortada por Feyerabend das Investigações Filosóficas de Wittgenstein. “Em 1965, Feyerabend se dedicou a clarificar sua noção de incomensurabilidade”, comentou Oberheim (2005, p. 371), “sugerindo que duas teorias são incomensuráveis quando os significados dos seus principais termos descritivos dependem de princípios mutuamente inconsistentes”. Portanto, por mais que se afirme que a proposta da incomensurabilidade tenha a filosofia wittgensteiniana como motivação (1.1.2.1), essa influência diminuiu quando os limites dos critérios de mudança semântica pressupostos na “teoria contextual do significado” foram questionados.

3.2 INCOMENSURABILIDADE VERSUS VEROSSIMILHANÇA: DESACORDOS