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1. LINGUAGENS DA ORDEM: A FORMAÇÃO DOS GRUPOS POLÍTICOS LOCAIS

1.3 LIBERAIS E CONSERVADORES: A LINGUAGEM DA ORDEM

1.3.2 A linguagem que veio do Sul

É necessário certo cuidado ao desenvolver a trajetória dos partidos políticos provinciais, pois o ato de transferir embates políticos da capital para toda a província anularia os conflitos que emergiam em diversas localidades do Espírito Santo. No entanto, não pretendemos demonstrar total divergência entre os dois polos, mas direcionar a algumas possíveis distinções que culminaram nos desdobramentos políticos da crise da monarquia.

No sul, mais precisamente em Itapemirim, os jornais mostram que, enquanto em Vitória estavam em cena os Dionisianos e Capichabas, ali concorriam os grupos rivais Macucos e

Arraias.94 Nota-se que não somente a denominação era diferente, mas também os líderes das facções não eram os mesmos da capital. O grupo político dos Macucos era chefiado pelo fazendeiro coronel João Gomes Bittencourt, enquanto as Arraias possuíam como líder político

92 O Monarchista, nº 3- 20/09/1863. 93 O Monarchista, nº 3- 06/09/1863. 94 O Estandarte, n°17-26/07/1868.

52 o poderoso Joaquim Marcellino da Silva Lima, o futuro barão de Itapemirim.95 No entanto, nos parece que a condução da política no sul da província segundo interesses pessoais se prolongou um pouco mais do que na capital, pois somente em 1863 surgiram os liberais e conservadores naquela região:

Antes que em Itapemirm aparecessem os partidos Conservador e Liberal, quando dominavam os partidos pessoais de Coronel João Gomes, e do Barão de Itapemirim denominados Macucos e Arraias [...] Pouco e pouco foi germinando as idéias políticas, os antigos grupos foram se desfazendo, até que em 1863, banidas as mesquinhas dividas, foram hasteadas as bandeiras constitucionais- conservadora e liberal.96

De acordo com as fontes, a tônica do debate político se modificou em 1863, momento em que as personalidades políticas do sul passam a se chamar liberais ou conservadores. A transição para a denominação dos partidos monárquicos certamente foi motivada por interesses eleitorais na província, ou até mesmo pela necessidade de adequação às agremiações da capital para que os homens do sul entrassem no jogo político local.

Os componentes do grupo de João Gomes Bittencourt assumiram a bandeira conservadora, enquanto os antigos Arraias, antes liderados pelo futuro barão de Itapemirim, se posicionaram como os liberais do sul, desde então chefiados pelo genro do barão, Joaquim Antônio de Oliveira Seabra. Dificilmente as facções teriam desaparecido de forma tão rápida e dado origem aos partidos sem nenhuma correlação com ideais ou projetos políticos. O surgimento repentino pode representar a ausência de enraizamento ideológico dentro dos partidos no momento de sua criação, o que propõe alguns questionamentos, como, por exemplo, o quanto o grupo das

Arraias possuía da política liberal, assim como nos perguntamos sobre quais ideias políticas

conservadoras ganharam a simpatia dos Macucos.

Existem ainda outras possibilidades. A principal é de que os grupos do sul definiram-se em liberais e conservadores em consonância com seus aliados da capital capixaba. Por outro lado, não se pode desconsiderar a autonomia das relações políticas na região, pois os Arraias

95 A disputa entre os dois líderes demonstrou-se também na época em que o imperador visitou a província. Indagava-se sobre o local de hospedagem de Pedro II que, caso escolhesse um dos coronéis, iniciaria ali uma disputa de egos entre os grupos inimigos. A disputa logo foi abafada, pois o imperador resolveu passar a noite no sobrado que pertencia a José Tavares de Brum e Silva. Passada visita do imperador, Arraias e os Macucos continuaram a concorrência política. Além disso, o barão de Itapemirim faleceu neste mesmo período, o que acabou influenciando as divisões políticas locais.

chegavam a admitir que acompanharam seus aliados da Corte, empurrando seus adversários, os

Macucos, para o partido conservador.

A distinção entre projetos políticos na região sul da província passou a ser vista a partir do ano de 1867. Tais diferenças, contudo, demarcaram-se, sobretudo, com a entrada de novos membros na elite política e intelectual vindos de fora da província. Os dois principais redatores da região sul, Clímaco Barbosa de Oliveira e Basilio de Carvalho Daemon, eram membros ativos em seus partidos. Clímaco havia chegado há pouco tempo da Corte, de onde trouxe uma identidade liberal consolidada, enquanto Daemon era um conservador convicto, também com ideias políticas muito definidas desde o tempo em que residia no Rio de Janeiro.

O grupo identificado como liberais no sul da província exibia perfil social variado. As listas de membros do partido publicadas nos jornais indicam que o grupo liberal do sul era composto, como na Corte, por comerciantes, profissionais liberais, bacharéis, mas também por grandes latifundiários da região. O partido contava com a presença de políticos e redatores locais, entre os quais estavam Clímaco Barbosa de Oliveira, redator da Sentinella do Sul, e Joaquim Pires de Amorim, responsável pelo jornal O Cidadão. O primeiro, natural da Bahia, se bacharelou na Faculdade de medicina do Rio de Janeiro. Foi na Corte, porém, que se iniciou na política.97 Quando chegou ao Espírito Santo, na década de 1860, Clímaco Barbosa chocou-se com um partido Liberal de ideias bem mais moderadas do que suas propostas políticas.98 O médico acabou por se tornar singular no seio do partido Liberal da província, pois divulgava, tanto em seu jornal como na Assembleia provincial, na qualidade de Deputado, ideias exaltadas que eram defendidas pelos liberais em 1868 e 1869, durante a formação do Clube Radical na Corte. Essas ideias, contudo, não conquistaram a opinião dos liberais capixabas.

Joaquim Pires de Amorim, Bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo, também pode ser caracterizado como figura à parte na política provincial por defender as ideias liberais junto à Clímaco Barbosa na Assembleia Provincial, sobretudo no que se referia à educação e progresso

97 No Rio de Janeiro publicou a obra Tristes e Íntimas: Poesias, em 1863; em 29 de agosto de 1864, apresentou sua tese A albuminúria, a fim de obter o grau de doutor em medicina. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brasileiro. 7 vs Rio de Janeiro:Conselho Federal de Cultura, 1970. (1827- 1903).

98 Entre os debates de Clímaco Barbosa na Assembleia e nos jornais, destaco a reforma da Instrução Pública e, sobretudo, a educação feminina; as discussões sobre federalismo; e o Radicalismo baseado nas ideias de Jules Simon.

54 na província. Natural de Passo de Veromar, na Freguesia de Santiago de Amorim, em Portugal, Pires de Amorim residiu algum tempo no Rio de Janeiro quando chegou ao Brasil, mas, posteriormente, adquiriu a Fazenda Boa Esperança no sul do Espírito Santo.99

O partido Conservador do Sul, diferentemente do Partido Liberal, possuía maior homogeneidade social. A maioria de seus membros eram grandes fazendeiros, comerciantes, membros da Guarda Nacional e alguns militares. Dentre eles, podemos citar o fazendeiro Francisco Xavier Monteiro da Gama e Francisco Salles Ferreira Junior. Os Monteiro da Gama, cuja família descendia da união de Francisco Monteiro da Gama e Henriqueta de Souza Rios, filha de Bernardino Ferreira Rios, rico negociante mineiro, possuíam grande força política na região sul. Além do prestígio econômico que era proveniente de sua fazenda, a Monte Líbano, Monteiro da Gama acumulou importância política na região.

Apesar da diferença do perfil social de cada partido, o discurso político era muito semelhante. As questões pessoais prevaleciam nos debates reproduzidos pela imprensa, embora se encontre com frequência remissão às discussões políticas da Corte. No sul da província do Espírito Santo, a linguagem política conservadora foi bastante difundida no jornal O Estandarte, redigido por Basílio de Carvalho Daemon. O periódico veiculou intensa crítica dos conservadores capixabas à política progressista e, sobretudo, a Zacarias de Góes e Vasconcellos.100 Diferente do discurso da capital da província, a crítica à política progressista exibida pelo periódico estava muito mais relacionada aos fatos ocorridos na Corte do que no Espírito Santo. Daemon advertia, em seu jornal, que a política progressista levou à crise de identidade dos grupos políticos da Corte.

99 AMORIM, Joaquim Pires. Um dos primeiros habitantes de Cachoeiro. 2. ed. - Cachoeiro de Itapemirim: TIP. Vitoria, 1966. p. 7.

100 Em 1866, quando se iniciou o último gabinete progressista na Corte, presidido por Zacarias de Góes, as turbulências políticas forjaram nova situação partidária. A alternância entre os partidos na Corte como medida de estabilidade política gerou fissuras dentro dos próprios partidos. A situação enfraqueceria o partido Liberal, justificando a volta dos conservadores ao poder. Para Nabuco, a própria posição de Zacarias dentro dos debates dificultava a aprovação de muitas mudanças e de reformas constitucionais, principalmente no que referia ao sistema eleitoral no Império. Os progressistas já demonstravam falta de coesão, principalmente por parte dos liberais históricos, que defenderam inúmeras reformas políticas e passaram a elaborar um projeto político mais substancial, culminando no radicalismo visto em 1869. Os conservadores, no entanto, criticavam a política progressista por meio dos jornais, e ainda, mesmo após subirem ao poder em 1868, acusavam os liberais pela situação pela qual passava o país naquele momento.

Para o redator d’O Estandarte, a política progressista era o principal fator que levava o Império à crise. Os progressistas eram denominados naquele noticioso como políticos prepotentes e “alugados”, pois não era aceitável que conservadores e liberais se misturassem num mesmo partido.101 A linguagem do jornal objetivou destruir moralmente a imagem de Zacarias como chefe do gabinete, acusando-o de mudar seu posicionamento de acordo com interesses próprios ou por ordens de Pedro II. Zacarias recebeu, inclusive, o epíteto de “boneco de molas”.

Assim como em todo o Império brasileiro, a visão da imprensa conservadora sobre o

progressismo era totalmente negativa. As Cartas de Erasmo,102 por exemplo, foram publicadas por José de Alencar para, entre outros objetivos, fundamentar a defesa de uma urgente restauração das forças dos partidos Liberal e Conservador, enfraquecidos pela política de conciliação e pela política progressista. A dinâmica política do final da década de 1860 era caracterizada como anarquista e, curiosamente, como um ato de retrocesso, num claro jogo semântico.103 Alguns artigos do periódico O Estandarte utilizavam uma retórica inflamada ao denunciar a situação de apatia dos deputados provinciais frente à crise ministerial na Corte. A censura à Assembleia Provincial era feita, em sua maioria, por meio de textos de caráter profético, pois codinomes atribuídos aos textos eram nomes de profetas, como, por exemplo, Samuel.104

Sonho ou visão?

Eu vi uma Assembléia Provincial composta de deputados mudos. Vi cada um deles de boca aberta quase a dormir sem saber o que havia a tratar. Vi mais como alugados de uma facção repelida por todo país, apoiarem os mais absurdos projetos daqueles que tem o olho aberto para fazerem progredir o progresso da barriga. Vi mais uma Santa Linguiça apresentar um relatório de factura mista e a caterva dos asnáticos acharem que deviam concordar com todas as estilícias aí escritas. [...] Vi mais levantar-se os agiotas progressistas e darem muitos apoiados pela lembrança da Santa Linguiça em formar uma linha de paquetes com o título: Economia dos Desperdícios. Vi mais fechar- se a Assembléia e ficar tudo no mesmo ser. E então eu acordei do lethargo. Samuel

Os textos escatológicos exibiam “visões futuras” sobre a Assembleia Provincial e a situação política da província. Empregavam a ironia para evidenciar a ausência de discussão no legislativo e a falta de engajamento político por parte dos liberais locais, que se tornavam

101 O Estandarte, nº 3- 19/04/1868

102 ALENCAR, José de. Cartas de Erasmo / José de Alencar. Organizado por José Murilo de Carvalho. Rio de

Janeiro: ABL, 2009.

103 O Estandarte, n° 3- 19/04/1868. 104 O Estandarte, n° 2- 12/04/1868.

56 “agiotas progressistas”, pois, segundo Daemon, privilegiavam seus interesses pessoais em detrimento da ordem do Império.

Por outro lado, os conservadores do sul capixaba defendiam ardorosamente o Poder Moderador, utilizando-se das ideias de Benjamim Constant. Este poder era capaz, segundo a defesa conservadora, de manter a ordem e apartar a monarquia de oligarquias e anarquias. Já conceitos como o de liberdade, na retórica conservadora, assemelhavam-se muito aos sentidos

atribuídos pelos liberais, pois relacionavam a liberdade aos limites de poder: “[...] Ou leva a liberdade a um declínio perigoso, e chega ao abismo medonho da anarquia de 1793 em França; ou conduz a autoridade por um caminho opressor, até que dela faz o despotismo do primeiro Napoleão”105

A liberdade, portanto, na visão de O Estandarte, deveria caminhar junto com a autoridade, a fim de não gerar despotismo e anarquia. Novamente a questão dos limites sobre a liberdade foi empregada em jornais da província, compactuando com uma política de cunho moderado. Outro aspecto importante da linguagem empregada por O Estandarte é a caracterização do Império como governo misto. Haveria três qualificações de poder: primeiramente, a monarquia, representada pelo Imperador; em segundo lugar, a aristocracia, da qual faziam parte o Senado e os cortesãos, e por último, a democracia, caracterizada pela Câmara dos deputados. Mas era da democracia, contudo, que se originava o povo, que, por meio da representação, exercia sua legítima forma de poder no Império.106

No sul da província do Espírito Santo, enquanto a linguagem conservadora assumiu aspecto uniforme por meio das publicações de Daemon, que deu voz ao partido, o posicionamento liberal não pode ser analisado de forma homogênea. Durante os anos finais da década de 1860, os representantes liberais na Assembleia Provincial diferiam, como já dito, da linguagem política Liberal propagada por Clímaco Barbosa, que também utilizava sua folha para criticar os liberais progressistas. A Sentinella do Sul destacava a necessidade da volta dos liberais aos seus preceitos anteriores, momentos antes da Conciliação e do progressismo:

Obreiros desta seita sagrada chamada liberalismo, é tempo de sairdes de vossas tendas para receber a remuneração de vosso trabalho. [...] a caravana

105 O Estandarte, n° 14- 14/07/1868. 106 O Estandarte, n° 14- 14/07/1868.

dos filhos da liberdade levantou pousada e há de no caminho de seus deleitos colher novas vitórias.107

Clímaco pregava em seu jornal uma concepção de liberdade bem mais ampla que os adversários conservadores e, até mesmo, mais intensa do que a que era divulgada pelos liberais da capital da província. Na luta contra o alijamento político após a queda do gabinete, o redator fez um importante “lance” empregando em seu jogo retórico a discussão de direitos civis, políticos e, sobretudo, a cidadania por meio do exercício do voto:

O direito político de todo cidadão é uma arma que ele pode manusear em defesa de uma ideia, e não em defesa de interesses particulares.[...] É na praça pública, diante das urnas, no juiz, na manutenção de seus direitos, no cumprimento de seus deveres, na igualdade perante a lei, que o homem pode dizer - Sou homem, sou cidadão.108

Em seu jornal, Clímaco novamente chama atenção para a necessidade da utilização dos direitos políticos em prol de causas coletivas, e não por interesses pessoais. Além disso, caracteriza o que entende por cidadão como aquele que exerce seu direito de votar e cumpre seus deveres. As ideias de Clímaco, no entanto, não podem ser caracterizadas como o ideal geral do partido, mas sim uma voz isolada.

Como se viu, a linguagem moderada dominava os grupos liberal e conservador do sul capixaba. Não significa, porém, que não houvesse voz discordante. Como se procurou demonstrar, o médico Clímaco Barbosa, por meio da Sentinella do Sul, inoculou ideias mais radicalmente liberais. Os conceitos principais, porém, giravam em torno das identidades partidárias, que tentavam delimitar os marcos de suas diferenças. Consolidavam-se, com efeito, as distinções em torno de certas noções representativas de liberais e conservadores como ordem e anarquia. Embora Clímaco Barbosa assumisse posicionamento mais radical nesse campo semântico, os dois partidos, sobretudo na imprensa, buscaram se caracterizar como bastião da ordem.