• Nenhum resultado encontrado

Literacia em saúde mental

No documento Literacia em saúde mental em adolescentes (páginas 39-45)

PARTE I ENQUADRAMENTO TEÓRICO DO ESTUDO

CAPÍTULO 1 LITERACIA OU LITERACIAS

3. Literacia em saúde mental

A saúde e a doença mental são, com toda a certeza, as áreas da saúde que mais alterações têm sofrido ao longo das últimas décadas, quer nos diferentes domínios profissionais e científicos, quer ao nível da opinião pública, geralmente (des)informada pelos conteúdos veiculados nos media. A esse propósito escrevem Loureiro e colegas:

“(…) prevalecem imagens quase sempre despidas de credibilidade, que reduzem as doenças às transgressões, crimes e violência, como se assim se conseguisse explicar, per si, todas as adversidades do nosso quotidiano e consequentemente as partes menos sadias do relacionamento e confronto connosco próprios e com os outros” (2012c, pp 162).

Desta forma, se a saúde mental é um bem de valor inestimável e uma prioridade de saúde pública, ao mesmo tempo que a doença mental é um contingente da condição humana com pesadas implicações em termos humanos sociais e económicos, torna-se fundamental derrubar as barreiras do estigma e descriminação que impedem milhões de pessoas em todo o mundo, não fugindo Portugal à regra, de receber o tratamento de que necessitam e que merecem.

O estigma faz prevalecer simultaneamente uma visão preconceituosa das doenças e dos doentes, fortemente enraizada cultural e socialmente, repercutindo-se na relação com os doentes ao nível dos comportamentos discriminatórios no quotidiano, mas também na relação do indivíduo consigo mesmo, caraterizada pela ocultação de sintomas e recusa na procura de ajuda, quando paira um eventual processo de doença (Loureiro et al., 2012c).

O conceito de LSM surge tendo subjacente o conceito mais abrangente de literacia em saúde, anteriormente definido.

Enquanto a importância da literacia em saúde tem sido amplamente aceite, a área de conhecimento sobre a LSM só recentemente foi explorada.

Em 1997, Anthony Jorm e os seus colaboradores apresentaram o conceito de LSM entendido como ‘conhecimento e crenças sobre as perturbações mentais que ajudam o seu reconhecimento, gestão e prevenção’ (Jorm et al., 1997).

Nesta investigação pioneira realizada no final dos anos 90, Anthony Jorm e os seus colaboradores abordaram este desafio sob a perspetiva da importância do investimento em competência em saúde mental.

Os autores apontam para um conjunto de dimensões integradas no conceito de LSM: capacidade de reconhecer as perturbações mentais específicas ou diferentes tipos de

stress psicológico; conhecimentos e crenças sobre causas e fatores de risco para as doenças mentais; conhecimento e crenças sobre as intervenções apropriadas de autoajuda; conhecimento das intervenções profissionais disponíveis; atitudes que facilitam o reconhecimento e a adequada procura de ajuda; e ainda, o conhecimento sobre procura de informação em saúde mental (Jorm et al., 1997).

Contudo, nestes últimos anos, o conceito tem vindo a evoluir ao nível dos seus componentes. Atualmente inclui: a) conhecimento de como prevenir as perturbações mentais; b) reconhecimento do despoletar da doença; c) conhecimento das opções de ajuda e tratamentos disponíveis; d) conhecimento de estratégias de autoajuda para os problemas menos graves; e e) competências para prestar a primeira ajuda a outras pessoas em situação de crise ou em desenvolvimento de uma perturbação mental (Jorm, 2012).

Com a criação deste conceito, os autores pretenderam colocar em evidência uma dimensão fundamental da saúde habitualmente negligenciada, uma vez que o público em geral tem pouco conhecimento e crenças erradas sobre as perturbações mentais, contrariamente ao que sucede com outros problemas de saúde graves, tais como o cancro e as doenças cardíacas).

A partir da definição é possível compreender as consequências que podem resultar dos reduzidos índices de LSM. Se pensarmos no impacto devastador da doença mental sobre os adolescentes e jovens, as suas famílias e o ambiente social, percebemos a sua extraordinária relevância. A LSM é crucial para aumentar o conhecimento do público sobre a saúde e doença mental constituindo um pré-requisito para o reconhecimento precoce e intervenção atempada nas perturbações mentais, evitando o adiamento da procura de ajuda enquanto os sintomas se agravam continuamente (Scott & Chur- Hansen, 2008).

Os comportamentos de procura de ajuda podem ainda ser influenciados pela falta de conhecimento sobre a disponibilidade dos serviços de saúde mental, os profissionais disponíveis para apoio e, sobretudo as opções de tratamento disponíveis (Cotton et al., 2006).

Em consequência, fatores como a falta de um diagnóstico correto, opções de tratamento inapropriadas ou insuficientes e baixos níveis de LSM constituem uma combinação desastrosa e contribuem para a existência de falhas significativas ao nível da intervenção, tendo como consequência o envolvimento no sistema de justiça juvenil, uso de substâncias e comportamentos auto lesivos (Wacker, 2009).

Amorim Gabriel Santos Rosa

Como veremos de forma mais pormenorizada em capítulo subsequente deste trabalho, o risco de desenvolver uma perturbação mental ao longo da vida é enorme. Desta forma, a grande maioria da população mundial terá, certamente, contacto com alguém com problemas de saúde mental. O seu reconhecimento é essencial na medida em que influencia as atitudes e os comportamentos para com estas pessoas (Jorm, 2000). Além disso, a LSM é importante enquanto determinante de comportamentos de procura de ajuda na medida em que o desconhecimento das doenças mentais, dos seus sintomas e das formas de tratamento adequadas estão relacionados negativamente com o uso dos cuidados de saúde, fazendo aumentar consideravelmente os encargos tanto em termos económicos como sociais (Wacker, 2009).Por esta razão, mas também pela diminuição significativa da qualidade de vida dos doentes, o conceito de LSM tem vindo a ganhar uma atenção crescente nos últimos anos.

Neste sentido, Parlslow e Jorm (2002) sugerem a adoção de um modelo que reconhece o papel do conhecimento, crenças e atitudes na promoção e reforço de comportamentos relacionados com a saúde e a procura de ajuda.

Estudos recentes têm evidenciado que os níveis de LSM são baixos independentemente da população considerada (Chen et al., 2000; Loureiro et al., 2013a; Loureiro et al., 2013b; Reavley & Jorm, 2011). Embora as pessoas consigam distinguir satisfatoriamente o que é ou não é ‘normal’, o reconhecimento dos distúrbios específicos está distante do desejável.

As pessoas têm baixa compreensão e são incapazes de identificar corretamente as perturbações mentais, não compreendem os fatores causais subjacentes, têm medo daqueles que percebem como doentes mentais, têm crenças erradas sobre a efetividade do tratamento, são frequentemente relutantes em procurar ajuda profissional e não sabem como ajudar os outros (Jorm, 2000; Jorm et al., 2005; Jorm, Kitchener, Kanowski & Kelly, 2007a; Lauber et al., 2003; Priest et al., 1996).

Em adolescentes, uma revisão de estudos recentes sobre LSM conclui existirem dificuldades significativas no reconhecimento das perturbações mentais e na identificação dos seus sintomas chave, traduzindo-se, na prática, por comportamentos de procura de ajuda desajustados das necessidades, com desvalorização as ajudas profissionais e preferência por fontes informais como o grupo de pares ou a família (Rosa, Loureiro & Sousa, 2014b). Contudo, tratando-se de um grupo com reduzido nível de interação com o sistema de saúde, apresenta um potencial de intervenção elevado, sobretudo porque faz uso das tecnologias de informação como a internet, sendo uma das fontes privilegiadas de procura e acesso à informação em saúde (Loureiro et al., 2012c).

O reconhecimento das perturbações mentais, um dos componentes principais da LSM, é considerado um fator importante, porque a incapacidade para identificar uma doença em si próprio ou no outro pode resultar em atrasos significativos na procura de tratamento adequado, a utilização de medicação inapropriada ou dificuldade no acesso aos profissionais de saúde (Jorm, 2000; Jorm et al., 2006).

Durante as últimas décadas, dezenas de estudos de tipo transversal foram realizados a nível internacional, visando avaliar os diversos componentes da LSM: crenças, atitudes, estigma e discriminação e ainda, reconhecimento das perturbações mentais e das suas causas, comportamentos de risco e de procura de ajuda, entre outros.

Em Portugal, até 2010, os estudos realizados para avaliar as questões relacionadas com a LSM eram escassos. Destes, destacamos dois (Loureiro et al., 2008; Loureiro et al., 2009). O primeiro, realizado com uma amostra aleatória de 834 adultos residentes na região de Coimbra, e o segundo realizado com uma amostra de 617 adolescentes e jovens, sendo o recrutamento feito a partir de amostras aleatórias de escolas de Coimbra. Os resultados destes estudos pioneiros no nosso país mostraram, entre outros fatores, baixa compreensão e dificuldade em distinguir as perturbações mentais, sendo a diferenciação vaga e baseada na bipolaridade resultante da comunicação social; crenças negativas sobre as doenças e os doentes mentais, baseadas quase exclusivamente nos mitos da perigosidade, imprevisibilidade e incurabilidade; baixa compreensão dos sinais e sintomas, etiologia e tratamento adequado e relutância em procurar ajuda profissional. Em 2010, o governo português, através da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) financiou um projeto acolhido pela Unidade de Investigação em Ciências da Saúde da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, liderado pelo Professor Luís Loureiro, designado «Educação e sensibilização para a Saúde Mental: um programa de intervenção escolar para adolescentes e jovens». Este programa tinha como um dos principais objetivos, a avaliação da LSM de adolescentes e jovens portugueses. O estudo foi realizado em escolas de 3º ciclo e secundárias da zona de abrangência da Direção Regional de Educação do Centro, sendo a amostra constituída por 4938 adolescentes e jovens, tendo sido utilizado como instrumento de colheita de dados o QuALiSMental (Questionário de Avaliação da literacia em saúde mental) de Loureiro et al. (2012). Os resultados deste estudo foram publicados e divulgados em diversos artigos (e.g. Loureiro et al., 2012b; Loureiro et al., 2013a; Loureiro et al., 2013b), sendo as suas conclusões enquadráveis no referido anteriormente: dificuldades de reconhecimento dos problemas retratados nas vinhetas; e níveis modestos de literacia nos restantes componentes da LSM. Estas conclusões são, até certo ponto, concordantes com os

Amorim Gabriel Santos Rosa

resultados de alguns estudos transversais realizados noutros países (Lauber et al., 2003; Stuart & Arboleda-Flórez, 2001; Wolff & Stuber, 2002; etc.) com amostras de adultos e jovens; com os resultados das metanálises de Cotton et al. (2006); Kelly et al. (2007); Rickwood et al. (2005), incidindo sobre adolescentes e jovens; ou com os resultados do inquérito nacional sobre reconhecimento das doenças mentais e crenças sobre o tratamento, realizado na Austrália (Reavley & Jorm, 2011).

Amorim Gabriel Santos Rosa

CAPÍTULO 2

No documento Literacia em saúde mental em adolescentes (páginas 39-45)