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O livro etíope de I Enoque

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1 SOBRE I ENOQUE: ENTRE O CONTEXTO REDACIONAL E A

1.5 O livro etíope de I Enoque

Há três tradições, discutidas pelos historiadores, que descrevem a entrada do cristianismo na Etiópia. Elas nos ajudam a entender como os etíopes tiveram contato com a literatura judaico-cristã. São elas:

1ª - Ligação pré-cristã entre Etiópia e Jerusalém e à introdução imediata do cristianismo através do eunuco etíope (At 8: 27-40).

2ª - Introdução apostólica por Mateus (e/ou alguns outros apóstolos) que veio a morrer na Etiópia e foi enterrado lá.

3ª - Introdução do cristianismo por comerciantes e viajantes, ocorrida por acaso77.

Com base na tradição oral, pesquisas de importantes historiadores etíopes e evidência literária, existem fortes reivindicações para uma relação histórica de longa duração e vínculos religiosos entre a Etiópia e Jerusalém, que remonta ao tempo do rei Salomão. A história começa com a visita da rainha de Sabá para ver a fama de Salomão (1 Rs 10:1-13), momento em que ela engravida de Salomão78. Nascido na Etiópia, Menelik I voltou a Jerusalém, onde foi educado na religião israelita e, em seu retorno à Etiópia, trouxe consigo a Arca da Aliança, sacerdotes e escritos judaicos. Essa forte ligação entre a Etiópia e Jerusalém continuou até a

75 Apesar de não conhecermos um calculo oficial sobre este assunto, Boccaccine nos deu esta informação

durante o Enoque Graduate Seminar em 2014.

76 KNIBB, 2008, p. 7.

77 BAUR, J. 2000 years of Christianity in Africa: an African church history. 2nd ed. Nairobi: Paulines Pub. 2009,

p. 35.

época de Jesus79. É neste contexto que aconteceu a visitação do eunuco etíope a Jerusalém, registrada em Atos 8, que é considerado o primeiro cristão etíope.

Em relação à teoria que defende a implantação do cristianismo na Etiópia através do ministério apostólico de Mateus, ela se baseia em escritos da época de Orígenes80. Segundo Cross, Orígenes diz que “São Mateus foi o apóstolo dos etíopes”81. De acordo com esta tradição, Mateus foi à cidade de Axum onde anunciou a mensagem cristã82, fez discípulos, batizou o rei da Etiópia, mas foi martirizado pelo seu sucessor83.

Estudiosos como Taddesse84 e Baur85 defendem a hipótese de que o cristianismo foi introduzido na Etiópia, a partir da cidade de Axum, porém não através do eunuco ou um dos apóstolos, mas sim por intermédio de comerciantes e viajantes que tinham contato com o mundo greco-romano. O que essas teorias têm em comum é que todas defendem que o cristianismo chegou à Etiópia no primeiro século, no período apostólico86.

Independente de qual seja a teoria correta, o fato é que a institucionalização do cristianismo, posicionando-o como religião-estado, só ocorreu na Etiópia no século IV87. É nesse contexto que aconteceu a produção de cópias e a disseminação de escritos judaicos e cristãos em larga escala no território etíope, entre eles o livro do I Enoque que é considerado um livro autoritativo, de natureza canônica, para a Ethiopian Orthodox Tewahedo Church (EOTC)88.

Algumas práticas dessa Igreja, que possui vínculos profundos com o judaísmo, são: 1ª - crença na existência da Arca da Aliança89;

2ª - construção do templo como “cópia” do I Templo Judaico (nenhuma igreja pode funcionar sem o modelo padrão)90;

3ª - observância do Sábado;

79 Para mais informações ver: ULLENDORF, E. Ethiopia and the Bible. London: Oxford University Press, 1968,

p.115-118; RAPOPORT, L. The lost Jews: last of the Ethiopian Falashas. New York: Stein and Day Publishers, 1979; PROUTY, C.; ROSENFELD, E. Historical dictionary of Ethiopia. African Historical Dictionaries 32. Metuchen, NJ: The Scarecrow Press, 1981, p. 66-67.

80 AYMRO, W; MOTOVU, J. The Ethiopian Orthodox Church. Addis Ababa: The Ethiopian Orthodox Mission.

1970, p. 1.

81 CROSS, F. L. The Oxford dictionary of the Christian Church. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 874. 82 EPHRAIM, I. The Ethiopian church. Boston: H. N. Sawyer Co., 1976, p. 20.

83 ULLENDORF, 1968, p. 21.

84 TADDESSE, T. Church and state in Ethiopia: 1270-1527. Oxford: The Clarendon Press. 1972, p. 22. 85 BAUR, 2009, p. 35.

86 PANKHURST, R. The Ethiopians. The Peoples of Africa. Oxford: Blackwell Pub., 1998, p. 34.

87 KAPLANK, S. The monastic holy man and the Christianization of early Solomonic Ethiopia. Studienzur

Kulturkunde 73. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag, 1984, p.15.

88 Igreja Etíope Ortodoxa Unificada.

89 BAKKE, J. Christian ministry: patterns and functions within the Ethiopian evangelical church Mekane Yesus.

Studia Missionalia Upsalinsia xliv. Oslo: Solum Forlag A.S., 1987, p. 49.

4º - observância da dieta alimentar de acordo com a lei mosaica91; 5º - circuncisão dos meninos ao sétimo dia de nascido92;

6º - purificação ritual;

7º - dois dias regulares para jejum.

Após discutir todas essas práticas esmiuçadamente, Mikre Sellassie conclui que "a existência de tais influências judaicas e práticas profundamente enraizadas na Bíblia Hebraica sugerem que o judaísmo era praticado, pelo menos por um grupo de pessoas, na Etiópia antes da introdução do cristianismo"93.

Segundo comentamos, é só no IV século que o cristianismo se institucionaliza na Etiópia. Isso aconteceu durante o reinado do rei Ezana, na primeira metade do século IV d.C., sob o comando do bispo Fermentius. Este é o primeiro grande momento em que acontece a recepção, transmissão e tradução de escritos religiosos judaico-cristãos para o Ge'ez (etíope clássico), como, por exemplo, a tradução formal das Escrituras94, sem qualquer distinção entre "canônico" e "não canônico"95.

Transformações profundas também aconteceram na língua Ge'ez naquele século devido ao avanço do cristianismo. As principais mudanças foram a introdução de vogais e a inversão do sentido da escrita, que era da direita para a esquerda passando a ser da esquerda para a direita, talvez por influência do grego96.

Os séculos V e VI d.C. também são considerados um marco na história da recepção e tradução. A chegada dos “Nove Santos”97 foi fundamental para o avanço da fé cristã e consolidação da igreja cristã institucionalizada. Para alguns teóricos a tradução do livro de I Enoque para o etíope, juntamente com outros escritos pseudepigráficos, aconteceu nesse período98 e não no século IV. Porém, apesar das diferentes posições, os estudiosos estão de acordo que a tradução de I Enoque para o Ge'ez é anterior ao século VII d.C.

91 PARKINS, P. Life in Abyssinia: being notes collected during three years' residence and travels in that

country. London: Murray, 1968, p. 207.

92 MIKRE-SELLASSIE, G. A. The early translation of the Bible into Ethiopic/Geez. Addis Ababa: Berhanina

Selam Printing Enterprise, 2008, p. 56-58.

93 Ibid., p. 28.

94 A tradução das Escrituras para o Ge'ez aconteceu a partir da LXX. É interessante sabermos que a EOTC não

tem um cânone fechado. Nunca na história aconteceu um concílio que fechasse o Cânone. Existem algumas listas canônicas, dentre elas a mais tradicional contém 81 livros. O mais importante para eles é saber se um livro contém ensinamentos que apoiem a tradição da Igreja. Cf. COWLEY, R. W. The biblical canon of the Ethiopian Orthodox Church today. Stkirchliche Studien, 1974, p. 318.

95 CROSS, 1997, p. 566. 96 PANKHURST, 1998, p. 25.

97 Missionários responsáveis em difundir a fé cristã em larga escala na Etiópia.

98 BRUK, A. A. Reception, transmission and translation of scriptures in the EOTC, South Africa. Journal for

É importante registrarmos que a tradução mais antiga, completa, que sobreviveu do livro de I Enoque é a etíope. É a partir dela que se imagina como era a forma original de I Enoque. Também é salutar sabermos que a cópia mais antiga existente é datada do século XV d.C. e está na British Library99.

Figura 12 - British Library

Fonte: Acervo do autor. Junho de 2014.

O fato de o Livro de Enoque ter permanecido como escrito relevante para o ensino dos cristãos etíopes ocorreu porque diferente da Igreja Católica do Ocidente e do Oriente, que discutiu sobre a importância do escrito enoquita e seu lugar no cânone, culminando com a rejeição do mesmo, tal debate não aconteceu na Igreja Etíope que continuou a ter estima por I Enoque100.

A primeira notícia da existência da versão etíope chegou à Europa no século XVII através de um relatório enviado pelo estudioso Nicholas Peiresc101. Porém, o escrito etíope de Enoque só foi conhecido na Europa em 1773, ocasião em que o viajante James Bruce voltou da Etiópia trazendo três manuscritos. Um foi doado para a Biblioteca Bodleian102, e com base nele Richard Laurence103, Regius (professor de hebraico em Oxford) e o arcebispo de Cashel, publicaram uma tradução do livro em 1822. Em 1838, Laurence publicou uma nova edição baseada no mesmo manuscrito chamada Libri Enoch Versio Aethiopica104.

99 KNIBB, 2008, p. 8.

100 COWLEY, 1974, p. 318-323.

101 FLEMMING, J.; RADERMACHER, L. Das Buch Henoch. Leipzig: Hinrichs, 1902, p. 2. 102 KNIBB, loc. cit.

103 A tradução deles se chama The book of Enoch the Prophet e foi publicada em Oxford (LAURENCE, 1821). 104 LAURENCE, R. Libri Enoch Versio Aethiopica. Oxford: JH Parker, 1838.

Uma vez que a versão etíope foi conhecida, o livro atraiu, de uma forma crescente, a atenção dos estudiosos e, no decorrer do século XIX, numerosos estudos provenientes do texto etíope foram publicados, inclusive uma tradução e edição105 alemã foi produzida por August Dillmann no início de 1850.

Na Inglaterra o ápice da pesquisa sobre I Enoque aconteceu no início do século XX, com a publicação de uma edição do texto etíope de Enoque, realizada por R. H. Charles. A obra dispõe de comparações com o texto grego, bem como tradução e comentário do texto etíope. O material foi reeditado por Charles em 1913, e o resultado foram dois grandes volumes intitulados The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English106. Na década de 70, uma nova edição do texto etíope, intitulado The Ethiopic Book of Enoch, foi publicada por M. A. Knibb.

O personagem Enoque foi considerado na tradição etíope como o primeiro profeta. Os cristãos da EOTC, diferente da posição acadêmica, acreditam que o livro foi literalmente escrito por Enoque e que contém profecias relacionadas a Jesus de Nazaré. O Livro das Parábolas é interpretado buscando relações com o ministério de Jesus. É por causa desse prestígio que o Livro de Enoque tem despertado o interesse dos copistas em toda a história da Igreja etíope, enquanto instituição, comprovado pela grande quantidade de manuscritos de I Enoque espalhados na Etiópia, a maioria deles nunca catalogado.

Apesar de não estar claro que o material encontrado na caverna 7 de Qumran sejam fragmentos do Livro de Enoque em grego, o consenso da maioria dos estudiosos é que o livro etíope de Enoque foi traduzido a partir de uma versão grega completa de I Enoque (o que significa que também continha o Livro das Parábolas), que já estava em circulação pelo menos a partir do século II a.C.107

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