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O lugar do documento Q no estudo do Jesus Histórico

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2 DITOS HISTORIOGRÁFICOS DE JESUS DE NAZARÉ

2.1 Fases da pesquisa histórica da vida de Jesus

2.1.5 Quinta fase da pesquisa historiográfica da vida de Jesus

2.1.5.1 O lugar do documento Q no estudo do Jesus Histórico

A maioria dos estudiosos do Jesus Histórico tem defendido a teoria alemã da existência de um documento Q (Quelle). À medida que os estudos avançam, teorias mais refinadas têm sido propostas. Alguns teóricos falam da extensão da fonte, outros da redação, existem aqueles que falam de uma comunidade, ambientação geográfica, estágios de tradição, escrita e até a teologia de Q.

Frente a esses exageros Meier, que é um defensor da existência de Q, adotou uma postura mais equilibrada. Além de reconhecer que vários respeitados exegetas foram capazes de realizar o seu trabalho rejeitando a existência de Q, ele diz:

Não consigo deixar de pensar que os estudos bíblicos experimentariam um grande avanço se os exegetas repetissem todas as manhãs, como um mantra: ‘Q é um documento hipotético, do qual o tamanho, a redação, a comunidade originária, os estratos e os estágios de escrita exatos não são conhecidos’. Esta devoção diária poderia nos poupar de voos da imaginação fadados, em minha opinião, a acabar em ceticismo... Temo que os exegetas estejam tentando conhecer o incognoscível223.

222 Ibid., p.136.

Theissen também mostra coerência ao falar que “é possível imaginar, mas não demonstrar, que algo do material especial de Mateus e de Lucas tenha se originado de Q”224. Porém, como surgiu a ideia de uma fonte Q? Porque alguns estudiosos passaram a defender a teoria de Q? Ela é realmente útil para o estudo do Jesus Histórico? Passemos a ponderar sobre estas indagações, com a prudência que elas exigem, contrariando, respeitosamente, aqueles, à semelhança de Meier e Theissen, que defendem a hipótese da existência de um documento Q no primeiro século da era cristã.

Quelle (fonte) surge na segunda fase do Jesus Histórico, por volta do ano de 1837, quando os alemães Christian Gottlob Wilke e Christian Hermann Weisse, que defendiam ser o Evangelho de Marcos, juntamente com a suposta fonte Q, as mais antigas fontes para o estudo do Jesus Histórico. Esta teoria foi desenvolvida posteriormente por H. J. Holzmann225.

Weisse fundamentou seu argumento em relação à antiguidade de Marcos e uso do mesmo pelos demais evangelhos em duas principais proposições226:

1ª - No evangelho de Mateus e Lucas, encontram-se tradições de um plano comum apenas nas partes que eles têm em comum com Marcos (93% do conteúdo dos evangelhos sinóticos são semelhantes).

2ª - Nas partes em que os três evangelhos possuem em comum, a concordância dos outros dois é medida através de Marcos.

Após admitirem que Marcos seja o evangelho mais antigo227 e a principal fonte de ditos encontrados em Mateus e Lucas, o que explicaria as semelhanças nas três narrativas, surge uma segunda questão: como se explicam as semelhanças encontradas em Mateus e Lucas e que não estão presentes em Marcos? Neste momento surgiu Q. Passou-se a supor a existência de outro escrito tão antigo quanto Marcos para dar suporte às construções das narrativas semelhantes em Mateus e Lucas.

Alguns estudiosos dão os seguintes argumentos em favor de Q como pano de fundo para Mateus e Lucas:

1º - Existe um alto grau de concordância verbal entre Mateus e Lucas.

2º - O primeiro evangelho reproduz o documento Q mais fielmente do que o terceiro. 3º - Existem perícopes semelhantes em Mateus e Lucas.

224 THEISSEN; MERZ, 2002, p. 48. 225 THEISSEN; MERZ, 2002, p. 23.

226 SCHWEITZER, A. A Busca do Jesus Histórico. São Paulo: Novo Século Editora Cristã, 2003, p. 150. 227 É mais fácil defender que Mateus e Lucas ampliaram Marcos do que Marcos ter resumido os dois. Os pontos

fracos dessa teoria são: Mateus foi uma testemunha ocular da maioria dos eventos; Marcos possui alguns relatos mais ampliados do que Mateus e Lucas; a Igreja Primitiva defendia Mateus, como narrativa mais antiga.

4º - Existem expressões raras na Septuaginta e no restante do N.T. que aparecem em Mateus e Lucas.

5º - Há um significativo número de concordância na ordem das perícopes entre Mateus e Lucas.

A outra teoria, que confronta a teoria da existência de Q, admite que Mateus e Marcos serviram de fonte para Lucas. Esta teoria possui duas vertentes principais: a primeira é que Mateus é o escrito mais antigo e a segunda é que Marcos é o escrito mais antigo. No primeiro caso Marcos deriva seu conteúdo de Mateus, e Lucas de Mateus e Marcos (Eusébio de Cesareia defendia que Mateus era o evangelho mais antigo). No segundo caso, Mateus deriva seu conteúdo de Marcos, e Lucas de Mateus e de Marcos. Abaixo ilustrações das hipóteses:

Figura 22 - Mateus como fonte primária

Fonte: Produção do autor.

Figura 23 - Marcos como fonte primária

Fonte: Produção do autor.

Independente de qual seja a hipótese escolhida, o fato é que ambas descartam a necessidade de Q e absorvem toda argumentação em favor de Q. É interessante notar que Mateus e Marcos possuem uma ordem narratológica semelhante (mesmo apresentando algumas poucas variações), o que nos leva a pensar que um dos dois escritores, antes de redigirem o seu evangelho, teve contato com o escrito do seu colega.

Entendemos que uma destas teorias seja mais viável para explicar as semelhanças nos evangelhos sinóticos, tendo em vista que nunca se ouviu falar, na história e na tradição, da existência de um documento “fonte”, que alguns chegam a defender como um documento escrito por Jesus.

Some-se a isso o fato de que em Lucas encontramos uma evidência que aponta para a natureza do material como produto do testemunho de testemunhas oculares, resultante de profunda investigação, ou seja, trabalho de historiador. Se admitirmos que o Evangelho de Mateus tenha sido escrito pelo próprio Mateus, discípulo de Jesus (apesar da crítica sobre a autoria do evangelho) ficaria notório a relação que Lucas pode ter tido com esse escrito, cuja origem estaria vinculada a uma testemunha ocular que escreveu uma “narração coordenada”:

Visto que houve muitos que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem (Lc 1:1-3).

Analisando a suposta Fonte Q, Evangelho de Tomé e o suposto Evangelho da Cruz, Nogueira se posiciona com desconfiança acerca da utilização de tais fontes na tentativa de construção de um Jesus Histórico:

Mesmo entre os que aceitam a existência do Evangelho Q, é controversa a estratificação do mesmo em Q1, Q2 e Q3 [...] Tampouco é consensual sua avaliação (de Crossan) do Evangelho de Tomé como tradição independente e como pertencendo às tradições mais antigas. Igualmente problemática é a hipótese do Evangelho da Cruz228.

Dadas as inconsistências em relação a Q, a presente pesquisa não leva em consideração esta hipótese, no que tange a sustentar que alguns ditos de Jesus tenham sido registrados primeiro em Quelle, vendo com mais coerência as outras hipóteses que descartam a necessidade de Q.

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