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Lugar de enunciação das mulheres negras, em primeira pessoa

3.3 Enunciação coletiva: eu e nós políticos

3.3.2 Lugar de enunciação das mulheres negras, em primeira pessoa

na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação [...] o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados [...] que neste trabalho assumimos nossa própria

fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa (GONZALEZ, 1980). A partir do que discuti até este ponto, sistematizo alguns dos funcionamentos destes lugares de enunciação coletivos de mulheres negras. A partir deste lugar, negam-se os estereótipos negativos, que seriam os sentidos, as representações que outros fazem de mulheres negras e que põem para circular quando falam por mulheres negras. Em contrapartida, afirmam-se imagens e representações que seriam de mulheres negras sobre elas mesmas: outras referências de feminilidade e negritude, de negritude feminina, de feminino negro. Na retomada de mulheres negras que tiveram preponderante participação nas lutas históricas; no destaque às posições de liderança social e comunitária, seja nos terreiros religiosos ou os considerados culturais, na referência a divindades femininas; na luta pela representação das mulheres negras nos meios de comunicação e na publicidade em diferentes posições sociais, nas artistas negras que acompanham e são acompanhadas pelo movimento; na divulgação/construção de estéticas negras; na valorização das mulheres negras anônimas trabalhadoras e cuidadoras das famílias, do cotidiano e das novas gerações negras. As diferentes condições de produção e os interlocutores envolvidos na interlocução discursiva (mulheres negras, feministas brancas e negras, mulheres e homens negros, cidadãos brasileiros, etc.) intervêm nestas composições das imagens de si e no que é mobilizado na argumentação na luta pela palavra.

Mulheres negras em primeira pessoa, na primeira pessoa do singular ou na primeira pessoa do plural, na maior parte das vezes, significando mulher(es) negra(s) como coletivo. Há um funcionamento no discurso do movimento de mulheres negras, em especial no que dizem suas intelectuais-ativistas e escritoras literárias, no qual as categorias da tradição gramatical como sujeito e pessoa significam para além do discurso de gramática. O título do livro da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB: 2012) é exemplar deste funcionamento: Mulheres negras na primeira pessoa96. O livro reúne entrevistas sobre as trajetórias de vida de vinte mulheres de organizações de mulheres negras filiadas a AMNB em todas as regiões brasileiras. Nestas entrevistas, ao longo de todo livro, está a primeira pessoa do singular, um eu algumas vezes predicado como eu, mulher negra

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Efeitos de sentido semelhantes se produzem no título do documentário 25 de julho- Feminismo Negro contado em primeira pessoa, de repercussão na mídia nacional e internacinal, exibido em diversos espaços culturais, eventos e cine clubes sobre racismo, machismo e a invisibilidade do 25 de julho, dia da mulher afro-latino- americana e caribenha, do Morro Produções, 2013 https://www.youtube.com/watch?v=J6ev2V-Ee3U; no título da matéria Empoderadas: histórias negras femininas contadas em primeira pessoa, sobre uma websérie feita sobre e por mulheres negras, publicado na plataforma No Brasil, 2015 http://nobrasil.co/empoderadas-historias- negras-femininas-contadas-em-primeira-pessoa/; no título do blog Preta ‘Dotora’ na primeira pessoa, da historiadora feminista negra Giovana http://pretadotora.blogspot.com.br/, para mencionar alguns exemplos.

que se repete e nunca é o mesmo ao longo de todo o livro. A imagem de um rosto de uma mulher negra em primeiro plano também compõe esse efeito de sentido: é uma mulher única, particular, que diz e é (necessariamente) significada como parte do coletivo de mulheres negras, no plural, conforme o título da publicação. Na introdução do livro, as organizadoras Jurema Werneck, Nilza Araci e Simone Cruz escrevem:

Apesar das várias limitações que enfrentamos para superar a força com que o racismo patriarcal busca nos subordinar ou aniquilar, trazemos aqui, neste livro, nossas apostas para o futuro. Mensagens que dirigimos às novas gerações, a meninas negras que nascem agora e um dia nos sucederão. Para elas, estas meninas negras do tempo presente e do futuro, deixamos um legado potente de apostas em mudança, transformação, superação – todos são traços comuns na história das entrevistadas aqui reunidas. Elas falam de nós, por nós, e representam um microcosmo das mulheres negras brasileiras – milhares de outras mulheres negras vão se reconhecer nessa trajetória. Este livro apresenta mulheres reais. Esperamos que você, seja quem for, aprecie a leitura.

Figura 12 – Capa do livro Mulheres Negras em Primeira Pessoa (2012), organizado pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras .

A primeira pessoa do título significa a trajetória de cada uma das entrevistadas e de todas as mulheres negras brasileiras, tendo os funcionamentos do nós papel preponderante para a construção da indeterminação do locutor e de mulheres negras como sujeito e objeto do discurso. O eu, mulher negra se pluraliza e na voz de um nós, mulheres negras que funciona como porta-voz vira elas que “falam de nós e por nós” (a passagem do eu para o nós será mais adiante objeto de reflexão e análise). Vemos irromper um nós que diz das mulheres negras, organizadoras da publicação, das organizações de mulheres negras, das mulheres negras brasileiras representadas e que se reconhecerão nas trajetórias narradas no livro. Enfim, o que funciona e significa é um nós que ainda quando predicado por mulheres negras institui

diferentes recortes referenciais; é dividido, elástico, ambíguo, indeterminado, ao mesmo tempo em que produz efeito de evidência de sentido – todos sabem o que é uma mulher negra, o que são as mulheres negras, retomando o efeito de pré-construído da interpelação ideológica (PÊCHEUX, 1975) que apaga que um objeto discursivo paradoxal é significado no confronto entre memórias diferentes e até mesmo antagônicas, a exemplo daquelas dos movimentos negros e de outros espaços de sociabilidade e resistência do povo negro na diáspora que contestam o racismo e a dominação racial branca, por um lado, e dos discursos da democracia racial brasileira e do embranquecimento, por outro.