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3.3 Enunciação coletiva: eu e nós políticos

3.3.1 Nós político

Diversos autores discutem a polissemia tanto linguística quanto discursiva de nós. Sob a forma de superfície nós é possível analisar diferentes funcionamentos pelos recortes referenciais que este pronome institui. No número 10 da Revista Mots, de 1985, dedicado exclusivamente aos estudos das variações em torno do nós político, os autores concordavam, com base nos estudos de Benveniste, de que nós não é somatória de “eu+eu” nem nomeia um grupo pré-existente de indivíduos. Para se definir a referência de nós é necessário recorrer à enunciação. Em alguns destes estudos, os autores construíram uma grade referencial do nós em relação aos diferentes funcionamentos dos enunciados no corpus analisado, buscando identificar as formas de representação do locutor no discurso.

Entre os anseios destes estudos estão questões importantes para a ciência e filosofia política sobre o que seria uma enunciação política e como se constitui um sujeito político. Nestes estudos do nós político, não se parte do pressuposto de que uma nova classe social ou um novo coletivo significam um novo lugar de enunciação; percorre-se o trajeto do pronome nós e de toda a série que refere a primeira pessoa do plural, seus recortes referenciais e a relação com um contexto que extrapola o linguístico. Vejamos as contribuições desta publicação para em seguida aproximá-las às nossas questões de pesquisa.

Na apresentação desta revista, Geffroy (1985) retoma o sentimento de evidência com que nós é empregado e o conhecimento que se tem de sua polissemia tanto linguística quanto discursiva. Seu caráter polissêmico, leva ao questionamento sobre que pessoas o nós convoca e para quê, sobre a inclusão de si no discurso bem como sobre um “locutor coletivo”, figura construída na enunciação que não pode ser elucidada facilmente. Se este elucidação não é direta, análises linguísticas (e discursivas) podem contribuir para iluminar seu funcionamento, considerando adjetivações, nominalizações, por exemplo. Sem supor a priori que o emprego de nós implica a constituição de um sujeito político, estas análises auxiliam a refletir sobre as relações entre locutor, laço social, sujeito político e ideologia. A autora apresenta três pontos recorrentes nestes trabalhos: 1) a enunciação de um nós constitui um ato de linguagem, que pode conduzir um pressuposto à força do imperativo; 2) o “nós nacional” é muito recorrente e sólido no século XVIII ou no século XX, tanto à “direita” quanto à

“esquerda”; 3) a coesão do nós é muito frequentemente assegurada pela existência maligna de um terceiro excluído – excluído da alocução, do “grupo-nós”, do universo da linguagem, em uma exclusão criadora do nós.

Landowski (1985), em uma abordagem semiótica, considera que o sistema gramatical e funcional dos dêiticos estudado pelos linguistas, em especial o eu e o nós remetem à construção dos sujeitos individuais e coletivos e à distinção entre público e privado. As oposições entre privado/público e individual/coletivo tomadas frequentemente como equivalentes não se sustentam na diversidade das figuras produzidas pelo cruzamento destas oposições. Estas figuras do nós são submetidas a regimes de visibilidade, pela presença ou ausência de uma “terceira pessoa” na função de observadora. O trabalho deste autor contribui para se pensar a imagem de si no discurso, bem como nos levam a questionar as oposições tomadas a priori do individual e coletivo e do privado e público e sua correlação com as formas linguísticas eu e nós. Eu não poderia significar um coletivo, quando se constrói uma narrativa individual, por exemplo, como expressão de uma trajetória fundamentalmente compartilhada com um grupo?

Para Guilhaumou (1985), a forma nós impõe o alargamento da noção de contexto de um plano estritamente linguístico ao nível das configurações discursivas, o que significaria, para este autor, considerar o horizonte histórico da forma mais ampla possível. Ele propõe que a organização de configurações textuais em torno da série enunciativa “nós/você(s)” dá uma coerência a uma dispersão de enunciados nos arquivos disponíveis sobre a conjuntura estudada, no caso, a festa da união em 10 de Agosto de 1793, considerando a diversidade dos arquivos que relatam ou antecipam este importante acontecimento da Revolução Francesa, a aprovação da Constituição da França. Segundo o autor, em sua investigação prioritariamente de ordem histórica, mas que leva à caracterização de funcionamentos linguísticos, a coerência produzida pela descrição das configurações textuais acerca do pronome nós permitiu uma visão dos fatos bem diferente da apresentada pelos historiadores, em uma reflexão que considera a construção do laço social nos processos revolucionários e a aceitabilidade social dos enunciados.

No texto intitulado Y a-t-il un nous autogestionnaire?, Geneviève Petiot, Benoît Habert e Josette Lefèvre (1985) estudam o funcionamento polissêmico do nós fundado pelos estatutos dos agentes dos discursos em um corpus composto por textos produzidos por grupos e organizações autogestionárias, como o Partido Socialista Unificado (PSU). Os autores propõem como critérios de caracterização destes discursos os modos de elaboração e

circulação de textos, as relações discursivas entre porta-voz, organização e destinatários, considerando que a polivalência e a ambiguidade de nós parecem manifestar e organizar os universos discursivos de vulgarização e popularização das organizações políticas. Os autores compreendem que a polissemia do nós não se limita aos gêneros do discurso ou à reivindicação do discurso por um ou outro grupo social, mas principalmente ao entrelaçamento de diversos nós discursivos, que revelam a heterogeneidade constitutiva do discurso. O que faz um texto parecer singular é o modo como se relacionam esta pluralidade de vozes pelo nós manifestada. Com atenção, sobretudo, aos modos de relação entre o singular, o plural e o coletivo, de um lado, entre o nós e o não-nós (os outros discursivos), de outro lado, os autores localizam como característica constitutiva dos discursos analisados o fluxo de passagens entre o nós singular e o nós coletivo-geral.

O artigo Le Nous de Robespierre ou le territoire impossible, de Geffroy (1985), traz grandes contribuições do ponto de vista das reflexões mais gerais sobre a designação sociopolítica. Nós é considerado como elemento de um sistema de designação sociopolítico, que é ao mesmo tempo linguístico e ideológico; performativo e axiológico. Mais do que isso, este seria o designante sócio-político por excelência, pois é uma unidade linguística arcaica transhistórica, então disponível em todas as histórias e todas as conjunturas, e que é veículo de “personalização” característico da ideologia nacional, forma ancorada na ilusão política. Com base em um corpus do discurso de Robespierre (1789-1794), a autora analisa cerca de 1500 ocorrências de “pontos de enunciação em nós” e aponta que a função central deste termo é delimitar em um universo de pessoas um conjunto de extensão variável associado ao enunciador, sendo que as ocorrências mais representativas em seu corpus são de um nós pseudo-dialógico, que convoca os alocutários, e um nós nacional, que se delimita principalmente a partir do possessivo “nossos” seguido dos inimigos e do tema da guerra. Portanto, a unidade do nós decorre não de uma fusão em comunidade positiva, mas é determinado pela exterioridade, pelo o que fica excluído de nós.

Seu estudo sobre os termos povo e sans-culottes levam-na a pensar que um grupo social é primeiramente nomeado com um termo pejorativo por aqueles que não pretendem dele fazer parte em uma hetero-designação que se dá por um performativo próximo ao insulto. O grupo nomeado pela palavra do outro em geral retoma o nome, de modo que a hetero- designação transforma-se em auto-designação, sendo que este processo é acompanhado por polêmicas definitórias. Retomando a proposição canônica de Benveniste de correlação de pessoa no discurso, reflete que eu é unicamente auto-designativo, enquanto tu/você(s) são

exclusivamente hetero-designativos. Por sua vez, nós, que equivale a “eu mais outras pessoas incluídas a meu propósito” (do eu à humanidade inteira) é auto e hetero-designativo. Esta característica pode ser relacionada com as funções enunciativas de falar por si e de si e falar no lugar de e falar de, o efeito que sobrepõe autorrepresentação e representação, que funde na enunciação política as duas acepções de representação, conforme Spivak ([1985] 2010). A autora ainda aponta que nós é a forma pela qual o sujeito político tenta escapar de suas responsabilidades enunciativas de sujeito em proveito de um coletivo com contornos sempre móveis.

Para finalizar a caracterização problemática do designante nós, Geffroy (1985) aponta o fato de que comumente nós é utilizado como metalinguagem descritiva nas obras de reflexão sobre a política, particularmente naquelas de inspiração psicanalítica e que tratam do “laço social”, sendo o nós considerado o termo fundador do político. Isso não impede que a autora veja nos funcionamentos dos enunciados ideológicos que empregam o nós um reforço da operação fundamental que é a construção de lugares enunciativos entre os quais o propósito ideológico vai se desenvolver. É a existência desses lugares que parece dizer do mistério do “laço social”.

Os saltos enunciativos aos quais nós é apto descreveriam o percurso da enunciação política em que, se as questões fundamentais que se colocam são “quem fala?” e “a quem fala?”, as respostas não se limitam ao real histórico, sobretudo se somamos a elas a questão “em nome de quem se fala?” fundadora do político, que é em si uma subversão de toda fala real. A autora ilustra a inseparabilidade fundamental do enunciado e da enunciação. Esse fato tem consequências para a teoria linguística, mas tem também uma tradução política direta.

Do artigo de Guilhaumou (1985), retenho sua proposição de organização e descrição do corpus em torno do “nós/vocês” como uma forma de propor uma coerência à dispersão de enunciados que é própria do discurso. Entre as diversas formas de entrada de análise na tese, esta é uma das escolhidas para aproximar textos produzidos em diferentes condições de produção. Explicito o procedimento: não parti, por exemplo, de textos produzidos desde um único lugar institucional (como uma determinada ONG de mulheres negras), de um mesmo espaço geográfico, de um período de tempo determinado por uma hipótese de regularidade discursiva ou de deslocamentos na direção da constituição de outros sentidos.

Nas análises que seguem, tenho atenção aos funcionamentos do nós na projeção de coletivos imaginários que se delimitam na enunciação e a força performativa do nós mulheres negras quanto ao dizer do sujeito do/no discurso sobre si. Ainda analiso as relações de inclusão/exclusão deste nós mulheres negras com outros coletivos projetados: brasileiros, mulheres, negros, feministas. Note-se que, apesar de concentrar as reflexões e análises sobre o eu e nós políticos neste capítulo, desde a introdução tenho tratado destes funcionamentos, por sua recorrência e centralidade na construção de um lugar de enunciação de mulheres negras.

Além de realizar recortes discursivos a partir do nós, atento para o você(s) que cada uma das ocorrências do nós institui, refletindo sobre a recorrência de certas representações da interlocução e para a definição/indefinição do outro para quem se dirige o nós. A cada ocorrência nos recortes discursivos de nossa análise do funcionamento do nós, chamo a atenção para o que fica excluído do grupo-nós, percebendo que a reivindicação de um lugar de dizer e de significar no movimento de mulheres negras só é possível pela exclusão de um terceiro.

Pergunto-me se à dispersão do nós na diversidade de situações de enunciação estudadas se sobressalta algum funcionamento discursivo e as implicações desta prevalência. É tentador propor classificações/tipificações do discurso a partir do funcionamento do nós ou supor um funcionamento enunciativo e discursivo do nós calcado na reivindicação do discurso por um grupo social (as mulheres negras). Mesmo que estas classificações se apresentassem como resultantes das análises, se incorreria na ideia de uma identidade fixa, única, imutável, pronta e até mesmo anterior ao discurso dos movimentos de mulheres negras, como se mulheres negras não estivessem em movimento nos processos sempre contínuos de subjetivação nas diferentes modalidades de identificação no/do discurso. E, no caso dos discursos feministas, seria uma projeção no discurso do que se analisa nas práticas organizativas feministas propor que o nós trate por vezes de um discurso que fala do cotidiano das mulheres negras, e, em outras circunstâncias, de um “discurso generalizante”, que unifica a condição das mulheres negras na recorrência desse cotidiano visto por uma posição feminista negra que faz uma análise política e divulga sua análise de forma pedagógica a outras mulheres, com quem se pode formar um coletivo de ação militante pela adesão à análise apresentada. Retomando o trabalho de Landowski (1985), se colocaria em funcionamento uma mecânica de oposições tomadas a priori do individual e coletivo, do privado e público, em certas correlações estabelecidas com as formas linguísticas eu e nós.

A partir de pesquisas como a de Geffroy (1985), reencontramos a temática da relação entre o sentido e posição sujeito, entendido que a significação sempre se dá no interior de formações discursivas e de trajetos históricos dos sentidos, o que faz com que uma palavra não signifique o mesmo se enunciada de diferentes posições no discurso. As polêmicas sobre as palavras do adversário – e não só do adversário principal, mas daqueles que se contesta para afirmar um lugar de dizer e existir politicamente –, recorrentes no campo político, estão no centro de nossas análises sobre os objetos discursivos construídos como alvo das disputas pelos sentidos no discurso de vozes de mulheres negras. O tema dos encontros subjetivos no discurso e na história que produzem laço social e tecem o sujeito político que enuncia é objeto de nossa reflexão sobre a possibilidade do vir a ser outro do discurso e do sujeito em práticas de reprodução-resistência aos sentidos dominantes.

Retomando trabalhos realizados no Brasil sobre o nós político, destacamos o de Indursky (1997), em sua tese de doutorado que trata, entre outros, do sujeito do discurso da ditadura militar brasileira. Por considerar que nós designa conjuntos lexicalmente não- nomeados, entende-o como não-pessoa discursiva. “Ou seja, na interlocução discursiva, a não pessoa discursiva corresponde ao referente lexicalmente não-especificado ao qual eu se associa para constituir nós” (Idem: 67). A ocorrência de diferentes níveis referenciais do nós na mesma sequência discursiva produziria como efeito um “sujeito embaçado de uma enunciação indeterminada e ambígua” (Idem, p.76). Em meu trabalho, reflito sobre o funcionamento do nós enquanto correspondente a um referente lexicalmente não- especificado, mas também nas determinações do nós em nós mulheres, nós mulheres negras, nós negros, nós brasileiros e, principalmente, nos efeitos de sentido e efeitos-sujeito na passagem de um ao outro no interior de uma sequência discursiva.

Além de usar o critério de aparição do nós e toda a série relacionada à primeira pessoa do plural para a composição do corpus, privilegio sequências em que o dizer é tematizado pelas vozes de mulheres negras, ou seja, em que a enunciação, o silenciamento, a infantilização pela negação do acesso à palavra de forma legítima e crível e a luta por dizer sobre si são tópicos nos enunciados de mulheres negras.