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O silêncio ruidoso chamado racismo e as lutas pela palavra

Que palavras ainda lhes faltam? O que necessitam dizer? Que tiranias vocês engolem cada dia e tentam torná-las suas, até asfixiar-se e morrer por elas, sempre em silêncio? Talvez para algumas de vocês hoje, aqui, eu represento um de seus medos. Porque sou mulher, porque sou negra, porque sou lésbica, porque sou eu mesma – uma poeta guerreira negra fazendo seu trabalho. Pergunto: vocês, estão fazendo o seu? [...] O fato de estarmos aqui e que eu esteja dizendo essas palavras, já é uma tentativa de quebrar o silêncio e estender uma ponte sobre nossas diferenças, porque não são as diferenças que nos imobilizam, mas o silêncio. E restam tantos silêncios para romper! (LORDE, 1977). Como podemos compreender o silêncio de que falam as mulheres negras em sua luta pelas palavras e pelos sentidos? Como compreender as lutas do sujeito para se significar na relação com os processos históricos de silenciamento? Retomando as análises já realizadas até aqui, há a denúncia do silêncio da historiografia sobre a participação de mulheres negras na construção do Brasil e das lutas negras, de sua trajetória própria desde a África. Um silêncio que se relaciona à invisibilidade ou à supervisibilização, que seria mostrar o mesmo, o repetido, o estereótipo (na historiografia, na publicidade, na televisão, no cinema, na literatura...) na tensão nunca estável de reprodução dos sentidos dominantes. Um silêncio, portanto, que não é a ausência total de palavra; é a ausência de determinadas palavras significadas de um modo com o qual se identifiquem as mulheres negras em luta. É presença menos audível de palavras de mulheres negras; é presença maciça de palavras proferidas desde a posição de dominação. É presença menos audível de sentidos produzidos desde posições sujeito de resistência à dominação ideológica; é presença maciça de sentidos produzidos desde posições sujeito racistas patriarcais heterossexistas e cissexistas.

Para contribuir com esta reflexão, recorro ao estudo fundamental sobre o silêncio na Análise de Discurso. Trata-se do livro As formas do silêncio – no movimento dos sentidos, de Eni Orlandi ([1992] 2007). Tendo como fio condutor do livro a apresentação dos sentidos do silêncio, a autora já na introdução de seu livro assinala que

o mais importante é compreender que: 1) há um modo de estar no silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há silêncio nas palavras; 2) o estudo do silenciamento (que já não é silêncio, mas “pôr em silêncio”) nos mostra que há um processo de produção de sentidos que nos faz entender uma dimensão do não-dito absolutamente distinta da que se tem estudado sob a rubrica do “implícito” (ORLANDI, [1992] 2007: 11-12).

A primeira característica corresponde à proposta da autora de produzir uma teoria positiva do silêncio; não do silêncio como falta, ou como algo que complemente a linguagem ou precise ser transformado em linguagem verbal para significar e sim como condição do significar. A segunda, que a princípio é mais produtiva para meu trabalho, liga o não-dizer à história, à ideologia e detém-se na política do silêncio, no silenciamento como limitante do sujeito no percurso de sentidos, como modo de apagar sentidos, de produzir o não-sentido onde ele mostra algo que é ameaça. O silenciamento é visto como alargamento da noção de censura, uma “estratégia política circunstanciada em relação à política dos sentidos: é a produção do interdito, do proibido” (ORLANDI, 1992: 75), sendo que se proíbem palavras com o objetivo de se proibirem sentidos.

No caso das classes e grupos dominantes no Brasil e sua relação com o Estado, não está estabelecida uma política do silêncio direcionada às mulheres negras diretamente definida pela censura89, pela interdição do dizer instituída e regulamentada. Entretanto, há uma política do silêncio pelo fato de os discursos dominantes apagarem sentidos possíveis e indesejáveis para o rompimento do status quo, de seus privilégios de classe-gênero-raça assim como a divisão social e material da enunciação não possibilita que todos ocupem os mesmos lugares de poder-dizer, seja na universidade, no legislativo, nos meios de comunicação, na literatura etc. A exclusão do não-dito constitutiva do dizer, no discurso dominante (que domina a circulação), apaga os sentidos de formações discursivas que não componham a formação ideológica dominante. Seguindo com a autora, “como, no discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo, ao se proceder desse modo se proíbe ao sujeito ocupar certos “lugares”, ou melhor, proíbem-se certas posições do sujeito” (ORLANDI, 1992: 76). Nesta perspectiva, penso ao menos duas facetas do silenciamento de mulheres negras: a

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Esta afirmação não apaga gestos de censura efetiva pelo Estado, a exemplo do poema Quadrilha, de Lívia Natalia, que foi publicado em outdoor em Itabuna-BA, como parte integrante do projeto “Poesias nas Ruas” (aprovado pelo Fundo de Cultura do Estado da Bahia) e censurado em seguida por criticar os assassinatos perpetrados pela polícia militar. Cf. A gente não suporta chacina. A gente quer poesia, justiça e liberdade, de Cidinha da Silva (2016), em http://www.revistaforum.com.br/2016/01/15/a-gente-nao-suporta-chacina-a-gente- quer-poesia-justica-e-liberdade/

da interdição de que ocupem certos “lugares” legitimadores dos discursos e a da profusão de ditos de outros que as superexpõem e simultaneamente invisibilizam-nas como sujeitas de dizer pela formulação e circulação de imagens que não correspondem àquelas com que mulheres negras se identificam em posições de resistência aos discursos dominantes.

Em uma síntese de resultados de um estudo sobre os lugares de brancos e negros na mídia brasileira, Paulo Vinicius da Silva e Fúlvia Rosemberg (2008) apresentam o silenciamento como uma de suas particularidades, ao lado da negação ao direito à existência do negro com a eleição do branco como representante da espécie e da estereotipia na representação do homem e da mulher negra. O silenciamento dos discursos dominantes acerca das desigualdades raciais é interpretado como uma constante, sendo que “o silêncio exerce duplo papel: o de negar os processos de discriminação racial, buscando ocultar a racialização das relações sociais, ao mesmo tempo em que propõe uma homogeneidade cultural ao brasileiro” (SILVA, ROSEMBERG, 2008:82), ou seja, apaga pela afirmação do nacional as diferenças e desigualdades étnico-raciais. Pode-se pensar que esta política do silêncio nos diversos veículos midiáticos se repete em outros campos, como os discursos da história, a literatura e outros que constroem a imagem de Brasil como país da democracia racial, apesar das iniciativas dos movimentos negros, indígenas e de outras vozes que denunciam as desigualdades étnico-raciais. Voltarei ao tema da estereotipia e das lutas por ressignificação dos discursos dominantes e de defesa de outras rotas de sentidos desde a África no próximo capítulo.

No quadro da discussão sobre o político na linguagem, Orlandi detém-se acerca do silenciamento: “Aí entra toda a questão do “tomar” a palavra, “tirar” a palavra, obrigar a dizer, fazer calar, silenciar etc.” (ORLANDI, [1992] 2007: 29). Prosseguindo em sua reflexão, compreende que, em face de sua dimensão política, o silêncio pode ser considerado na relação da retórica da dominação, da opressão, e da retórica do oprimido, da resistência. Portanto, tomando os discursos dominantes da historiografia sobre a construção do Brasil e da brasilidade, em contradição com os discursos dos movimentos feministas e antirracistas nos quais se inserem os lugares de enunciação de mulheres negras que analiso na tese, penso seus discursos como retórica da resistência. Nesta retórica da resistência, o silêncio é tematizado como falta de voz e de sentidos próprios ou legítimos para a posição desde a qual se quer romper o silêncio, tomar a palavra, apropriar-se da palavra. Faço um empréstimo de expressões da linguagem corrente para tematizar as relações silêncio-palavra, citadas pela autora para deixar de pensar o silêncio como falta e passar a pensar a linguagem como

excesso, considerando que nosso imaginário social destinou um lugar subalterno ao silêncio. Para ela, tais expressões significam a palavra como excesso, dado que se opõem a estar em silêncio, guardar o silêncio, ficar em silêncio (ORLANDI, [1992] 2007: 31, grifos da autora). Compreendo que, na retórica da opressão, em geral o silêncio é oposto à linguagem e à ação, e estas são significadas como positivas em oposição ao primeiro.

Ana Josefina Ferrari (2008) contribui para uma reflexão sobre a resistência às políticas do silêncio em sua tese de doutorado que toma como corpus anúncios de fuga de escravos publicados em jornais de Campinas entre 1870 e 1876. A analista do discurso e semanticista mostra, com especial atenção para o nome próprio e para a descrição, como através da voz do dono de escravos se forma uma imagem pública e singular do escravizado. Ela afirma o caráter inesperado e contraditório dos anúncios, pelos processos discursivos que constituem o escravo como objeto da propriedade do dono que o reclama ao mesmo tempo em que o constituem como sujeito singular, em suas relações consigo mesmo e com outros membros de sua comunidade. “Esses anúncios informavam o nome do fugitivo e descreviam suas características físicas e pessoais. Em alguns casos, os que nos ocupam, mencionavam outro nome próprio: aquele que o escravo dava a si mesmo” (FERRARI, 2008: 24).

A autora, bem como outros teóricos e teóricas acionados nesta tese, se opõe à historiografia tradicional que apresenta os negros e negras escravizados como passivos. Definindo a fuga como resistência na perspectiva de Foucault, observa a articulação das relações de poder e do processo de subjetivação dos escravos em uma sociedade que os considera objeto de direito no discurso da lei e argumenta que esse processo de subjetivação se discursiviza na imprensa por meio do anúncio de fuga. Em suas palavras:

Os senhores submetiam os escravos ao seu poder, através de diferentes modos de controle e elaboravam-se estratégias para a manutenção desse sistema, porém os escravos resistiam e procuravam não serem sujeitos AO dono e sim sujeitos à sua própria identidade, e uma das estratégias para atingir tal fim era a fuga. A fuga que era escrita nos jornais pelos próprios donos. Paradoxalmente, chega-nos até hoje, relatada pela boca do dono através da escrita no jornal, a constituição do escravo como sujeito à própria identidade. Chega até nós à escrita (descrita) de uma estratégia de resistência tenaz (FERRARI, 2008: 242).

Na concepção de Ferrari (2008), em cada pequeno anúncio, uma história sobre gestos cotidianos de liberdade que dizem não somente sobre o escravo que fugiu, pois muitas outras singularidades não apreendidas e inapreensíveis fugiram com ele. “Aqueles que foram condenados ao silêncio sem juízo prévio não conseguiram ser silenciados. A força de sua luta transparece a cada linha, em cada anúncio de fuga” (FERRARI, 2008: 258). E o que escapou

à dominação permite entender movimentos de sentido – nos enunciados e nos silêncios – na atualidade, quando remontamos sua historicidade, os trajetos de sentidos e as continuidades e rupturas das políticas de silêncio instituídas desde a dominação.

Seu trabalho reforça a afirmação de que a reprodução das classes, ideologia e discursos dominantes se dá em luta, com as resistências, os deslocamentos, o que falha, os sentidos que não podem ser apreendidos e escapam. O silenciamento, portanto, nunca é total. Diz-se diferentemente, se diz depois, se diz escondido, se diz e se guarda o dito. Os silêncios também significam e têm sua historicidade, podendo irromper em palavras no futuro do dizer ou em outras formas de linguagem, nos corpos, nos cabelos, nas roupas, na percussão, na dança, teatro, performances, nos cantos religiosos, entre outros.

Afirmar sobre os discursos de mulheres negras sobre o silêncio, como retórica da opressão, e negar o silenciamento total, não implica negar a resistência silenciosa, individual e coletiva; o silêncio tático ou a cumplicidade do silêncio no encontro dos olhares, o não dizer quando se espera resposta, o calo agora, mas te pego no momento certo – para citar alguns exemplos. Não implica negar os sentidos do silêncio enquanto matéria significante diferente da linguagem verbal e não verbal, conforme propõe Orlandi (1992: 31-33). Nem tampouco ficar presa ao efeito de evidência do silêncio, seja ele produzido desde a retórica da resistência – quando se diz do silêncio do passado ou do silêncio a se romper – ou dos discursos que objetificam os negros e negras, atacando sua humanidade, em imagens repetidas do seu silêncio e de sua dor. Enfim, busco uma posição que considere a resistência e trajetória histórica dos dizeres e saberes de mulheres negras, apesar da violência da dominação desde o colonialismo e o escravismo aos dias de hoje.

O texto principal no qual me apoio para a reflexão sobre o discurso de mulheres negras acerca do silêncio é a importante contribuição de Audre Lorde (1977): A transformação do silêncio em linguagem e ação90. Escrito para uma comunicação em um painel intitulado “Lésbicas e literatura”, depois da poeta ter vivido a experiência de um tumor de mama e tomar “consciência da própria mortalidade”. Ela aborda, então, o silêncio em oposição ao medo e à dor, medo da autorrevelação e da visibilidade implicadas no dizer e no agir, quando a história é de invisibilização ou de distorção da visão por conta dos efeitos de

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A versão do texto que cito não está paginada. Ela foi publicada em 2015 no portal da organização Geledés e também está disponível em blogs de outras organizações de mulheres negras, o que mostra sua circulação ainda na atualidade e sua referência para determinadas mulheres negras em luta nos dias de hoje (disponível em:

http://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e- acao/#gs.3166ad574ee04f4db647097658ad93a7).

despersonalização do racismo (LORDE, 1977). Deve-se romper e quebrar o silêncio significado como não-linguagem ou como não-dito visto desde a linguagem, em consonância com uma visão de primazia do verbal, e então transformá-lo em linguagem e ação. Seria, portanto, o silêncio a matéria prima que se transforma em resistência sussurrada, gritada, discursada em encontros políticos, escrita em versos...?

Em várias passagens do texto, se diz desde um eu sobre a experiência individual – do silêncio, da tentativa da palavra, da doença e de sua superação, dos valores da celebração de Kwanza em sua casa, do diálogo estabelecido com sua filha sobre o tema de sua comunicação. O silêncio é ativo, movimenta-se, faz-se incômodo, violenta quem o abriga dentro de si. Acompanhemos este diálogo:

minha filha, quando falei de nosso tema e de minhas dificuldades, me disse: “Fala para elas de como nunca se é uma pessoa inteira se guardas silêncio, porque esse pedacinho fica sempre dentro de ti e quer sair, e se segues ignorando-o, ele se torna cada vez mais irritado e furioso, e se nunca o deixar sair um dia diz: basta! e te dá um soco dentro da boca” (LORDE, 1977).

Parafraseio o texto de Lorde (1997) no que trata do silêncio como excesso de forma a personificá-lo: quando guardado, quer sair e torna-se furioso e irritado. Não se pode ignorá-lo. O silêncio diz basta e dá um soco dentro da boca! Ele está dentro de cada uma das mulheres. Neste texto, diz-se menos dos processos de silenciamento do que de como é vital transformá-lo em linguagem a favor das mulheres silenciadas.

Voltemos às primeiras frases do texto:

Muitas vezes penso que preciso dizer as coisas que me parecem mais importantes, verbalizá-las, compartilhá-las, mesmo correndo o risco de que sejam rejeitadas ou mal-entendidas. Mais além do que qualquer outro efeito, o fato de dizê-las me faz bem (LORDE, 1977).

Dizer, verbalizar e compartilhar é preciso. Falar verdades fortalece, a despeito dos mal entendidos e rejeições das palavras ditas. Por sua vez, o silêncio não protege, mesmo que se morra com ele. Não dizer é estar quieta, emudecida, calada como se engarrafada. Dito pela autora, desde um múltiplo eu poeta negra lésbica que instaura vocês, outras mulheres, e diz de nós, mulheres, nos sobrepondo a nossas diferenças, pois para ela, mais do que as diferenças, o que divide as mulheres é o silêncio:

Meus silêncios não tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês. Mas cada palavra que tinha dito, cada tentativa que tinha feito de falar as verdades que ainda persigo, me aproximou de outras mulheres, e juntas examinamos as palavras adequadas para o mundo em que acreditamos, nos sobrepondo a nossas diferenças. [...] Podemos nos sentar num canto e

emudecer para sempre enquanto nossas irmãs e nossas iguais são desprezadas, enquanto nossos filhos são deformados e destruídos, enquanto nossa terra está sendo envenenada, podemos ficar quietas em nossos cantos seguros, caladas como se engarrafadas, e ainda assim seguiremos tendo medo (LORDE, 1977).

O silêncio é estar com o medo, em nossos cantos, sozinhas (“No silêncio, cada uma de nós desvia o olhar de seus próprios medos”) e se contrapõeao compartilhar as palavras adequadas para o mundo que acreditamos, que não é aquele do desprezo, deformação, destruição dos nossos irmãos, irmãs, de nossa terra. A utopia coletiva – o mundo que acreditamos – precisa das palavras comuns. Não adianta se trair e esperar que outras falem (“Só havia traído a mim mesma nesses pequenos silêncios, pensando que algum dia ia falar, ou esperando que outras falassem”). Cada uma deve romper o seu silêncio, o seu medo, para sua autorrevelação, que é nossa: das mulheres negras e de todas as mulheres (neste texto de Audre Lorde). A intelectual-ativista-poeta diz então de um compromisso compartilhado com a linguagem e com o seu poder, concluindo: “Na transformação do silêncio em linguagem e em ação, é de uma necessidade vital para nós estabelecer e examinar a função dessa transformação” (LORDE, 1977).

Como já disse, a tematização da relação com a palavra e com o silêncio atravessa décadas dos discursos de mulheres negras. E o silêncio não é significado de uma só maneira nestes discursos, apesar de regularidade de que se deve rompê-lo, de que ele foi imposto, de que ele se opõe à liberdade de dizer, de ser, de significar. Muitas vezes, dizer é significado como existir de forma plena, exercer a autorrepresentação, saber quem se é, ter uma identidade. O chamado a dizer é o chamado à organização política e à insurgência. O dizer é a política, a política é a arena da disputa entre palavras. O silêncio é a não-participação desta arena, a não representação, o jugo.