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As mulheres negras escravas no discurso da democracia racial e do Brasil mestiço

O livro Casa Grande e Senzala (1933) foi escolhido como objeto de análise por seu caráter inaugural e fundador da formação discursiva da miscigenação, por ser repetidamente referido por vozes-mulheres negras em suas denúncias do racismo e do mito da democracia racial e por seu caráter ambíguo e oscilante – entre a superação da antropologia racista e o acobertamento do racismo por uma posição que enxerga relações raciais harmoniosas e doces entre brasileiros miscigenados – que alimenta diferentes leituras ao longo de décadas (ou seja, seu lugar de texto primeiro objeto de comentários que buscam perscrutar ou restituir-lhe os sentidos).

No ensaio freyreano, o clima é de intimidade e cooperação, em uma análise que, para explicar a sociedade patriarcal brasileira, confere centralidade à sexualidade e à “esfera privada”. Vejamos no recorte passagens de Casa Grande e Senzala retomadas pelas intelectuais/ativistas negras116 como insumo em suas denúncias acerca da hipersexualização dos corpos de mulheres negras e sua estereotipia. No recorte do corpus que apresento, há

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Poderia ainda se propor, com os olhos de hoje no movimento contemporâneo das profissionais do sexo, questionar a dicotomia trabalho e sexo, considerando a possibilidade do sexo como atividade profissional, e não necessariamente (ou somente) violência imposta por outrem.

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diferentes imagens destas mulheres escravizadas no espaço da casa grande – em especial das mucamas e das amas de criar – que se relacionam aos estereótipos de mulheres negras em circulação hoje:

Mas aceita, de modo geral, como deletéria a influência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro da casa-grande, devemos atender às circunstâncias especialíssimas que entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema. Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer parte da América.

A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas de casa. Espécie de parentes pobres nas famílias europeias. À mesa patriarcal das casas grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos mulatinhos (FREYRE, 1933 [2005]: 435). “Circunstâncias” que “entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema”. Chamo atenção para o trabalho da ideologia na materialidade do discurso que constrói o nós brasileiros. Houve senhores e escravos, brancos e negros, filhos-família da casa-grande brasileira e amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos, agora há brasileiros somente, em um elogio da doçura das relações que estariam na base da mestiçagem e da influência negra ao brasileiro. Há nesta passagem um efeito de sentido denunciado por aqueles que criticam a representação de negros em parte dos livros didáticos de história: estes aparecem em sua contribuição ao Brasil como trabalhadores escravizados durante a escravidão e, no pós-abolição, são apagados por brasileiros. Também gostaria de destacar a expressão “como se fossem da família”, que ainda hoje anda na boca de patrões e patroas para dizer da relação com suas empregadas domésticas e que encobre de forma perversa a exploração da força de trabalho de mulheres, muitas vezes negras, de uma categoria que segue em luta por direitos trabalhistas igualitários.

Continuemos para a segunda passagem de Casa Grande e Senzala.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boba. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. (FREYRE, 1933 [2005]: 367.).

Novamente, o funcionamento do nós possibilita, do lugar de analista de discurso, perceber diferentes recortes referenciais por ele instituído, sendo que a passagem de um nós

para outro produz o efeito ideológico de inclusão em um coletivo. “Trazemos quase todos as marcas da influência negra” – nós, brasileiros, quase todos miscigenados. A direção do argumento do texto parece indicar uma sequência de exemplos de ações no passado que marcam a influência negra nos brasileiros, mas vejamos um pouco mais detidamente como operam os diferentes recortes referenciais do funcionamento deste pronome no discurso. Na formulação “Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem”, no nós cabem somente os homens iniciados sexualmente por mulatas (conforme formula esta posição sujeito inscrita na FD miscigenante e que será contestada a seguir).

A afirmação da doçura das relações se insere no contexto de outra afirmação, a da corrupção da vida sexual da sociedade brasileira (da influência deletéria da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro), que se dá entre senhores e escravos, em uma argumentação que culpabiliza o escravo ou o sistema social e econômico e desresponsabiliza os que ocuparam posição privilegiada neste sistema. Nesta perspectiva, Gilberto Freyre (1933: 398) contesta a tese de que “a negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família”. Para o autor, “essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia” (Idem: 398) – notemos que em ambos os casos aquela que ocupava posição subordinada no sistema das relações sociais de classe, gênero e raça (as mulheres africanas e indígenas). Portanto, seria “absurdo responsabilizar o negro pelo que não foi obra sua nem do índio, mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanicamente” (Idem: 399). Continuando: “não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a serviço do interesse econômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores. Não era a “raça inferior” a fonte da corrupção, mas o abuso de uma raça por outra. Abuso que implicava conformar-se a servil com os apetites da todo-poderosa” (Idem: 402). Se o apetite e voluptuosidade era dos senhores, por que não propor que a corrupção tenha se realizado através do senhor, já que este ocupava o lugar privilegiado neste sistema? Ou ainda da senhora, em posição vantajosa em relação aos escravizados – homens e mulheres – na imbricação das relações de classe, gênero e raça?

Amplio minhas perguntas, de certo retóricas. Com esta argumentação, haveria, pois, o afastamento da representação da mulher negra como encarnação do pecado por sua sensualidade naturalmente provocante, sentidos presentes no estereótipo da mulata e com raízes na figura da mucama, na argumentação de Gonzalez (1984)? O autor, contestando pela

negação estes sentidos, escreve: “não que fossem as negras que trouxessem da África os instintos, no sangue, na carne, maior violência sensual que as portuguesas ou as índias” (Idem: 516), sendo que “exageram a influência perniciosa da negra ou da mulata”, em uma posição que por fim reitera esta “influência”, explicando-a pela docilidade da escrava. Leiamos a terceira passagem que compõe o recorte:

O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem. Os publicistas e até cientistas brasileiros que se têm ocupado da escravidão é um ponto em que sempre exageram a influência perniciosa da negra ou da mulata: esse de terem sido elas corruptoras dos filhos-famílias. (FREYRE, 1933: 455)

O movimento de escrita do texto, de negação e afirmação, de reescrita (não x, y – para mencionar uma das estruturas das formulações recorrentes) em um jogo de interiorização no discurso de sentidos depreciativos aos negros e negras, para em seguida ponderá-los, negá- los, questioná-los, produz um efeito de ambiguidade, de ser e não ser, de pertencer e não pertencer. Retomando a expressão “quase da família”, o pertencimento não se completa, se está na casa grande, sem a ela pertencer como os senhores. Tratar-se-ia de um não-lugar, do lugar indeterminado atribuído por Osmundo Pinho (2004) para pensar na figura do mestiço? Adentrando o imaginário gendrado e racializado das relações sexuais, são as mulatas passivas e ativas, inocentes e culpadas, dóceis e perniciosas? Desde as vozes-mulheres negras, veremos que sua interpretação não enxerga nesta oscilação ambiguidade de sentidos em torno da sexualidade de mulheres negras escravizadas na formação discursiva da miscigenação – o sentido na obra freyereana é a do imaginário dominante gendrado e racializado das relações sexuais ainda hoje em vigência.

Para explicitar minha colocação, retomo o texto de Gilberto Freyre sobre as mulheres negras na vida sexual da casa grande, com foco nos verbos e locuções verbais: iniciaram no amor físico; nos transmitiram a primeira sensação completa de homem; abriram as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço (não desejo, ordem); facilitaram a depravação com sua docilidade de escravas (não que tenham sido elas as corruptoras dos filhos-famílias). As construções verbais empregadas significam estas mulheres numa posição de sujeito agente: iniciaram, transmitiram, facilitaram, abriram as pernas, enquanto são pacientes – sofrem as ações – o sinhô-moço, os filhos-família, os brasileiros.

Nesta escrita, o lugar de quem enuncia é o do homem, brasileiro, heterossexual, em posição de classe dominante, que olha para o passado para dizer da identidade nacional do presente e se exime da responsabilidade histórica pelo lugar de opressão. Se em uma das

passagens os senhores aparecem na posição de mando, dando ordem, expressões como apetite e ócio voluptuoso apagam ou amenizam a violência sexual e, principalmente, a posição de senhores brancos como estupradores. O foco é na iniciação sexual de sinhôs-moços (e não na violência sexual contra escravas negras e mulatas); na moral sexual da família brasileira (e não se fala em família dos escravizados e na sua moral sexual).

A representação de Casa Grande e Senzala em quadrinhos (2010), com a adaptação de seu texto, explora da mesma forma a exaltação sexual da escrava. Elementos gráficos, como o coração centralizado na página abaixo, dizendo de relações de amor incestuosas, transformam violência em reciprocidade. O destaque ao sexo entre senhor branco e mulher negra no quadrinho (as personagens aparecem em maior tamanho do que nas outras ilustrações), em uma representação, ao meu olhar, de uma relação sexual consensual. Docilidade, passividade, de um lado, a gula da adolescência insaciável, de outro. Ao apetite, desejo, soma-se a gula e a avidez em um elogio ao impulso sexual masculino (branco?) insaciável... e também incontrolável? Algo que iria de encontro aos instintos de violência sensual de mulheres negras, como nega e afirma Gilberto Freyre?

Figura 13 – Imagens livro Casa Grande e Senzala em Quadrinhos.

Noutros vícios escorregava a meninice dos ioiôs. As primeiras vítimas eram os moleques e animais domésticos; mais tarde é que vinha o grande atoleiro da carne: a negra ou mulata. Nele é que se perdeu, como em areia gulosa, muita adolescência insaciável. Fala-nos um cronista anônimo (1817) da “grande lubricidade” dos negros de engenho, mas adverte-nos que estimulada pelos “senhores ávidos de aumentar o rebanho”.

Os corpos de mulheres negras são representados como “grande atoleiro de carne”, “areia gulosa”, apresentados em uma lista que reúne animais e pessoas escravizadas (moleques, a negra e a mulata), em um processo de desumanização que nesta passagem

significa “negros” como parte de um “rebanho”, negando seu status de ser pelo racismo e pela discriminação racial no sistema escravocrata. E vejamos funcionamento semelhante ao que acabo de analisar: “a grande lubricidade dos negros de engenho” não é negada em sua totalidade; faz-se a ressalva (pela adversativa) de que ela era “estimulada pelos senhores”.

Esta publicação foi objeto de inquérito instaurado por meio de representação no Ministério Público de Pernambuco como resultado da luta do Observatório Negro, da Articulação Negra de Pernambuco e da mobilização de diversos ativistas negros e de direitos humanos que apontaram seu caráter racista117. O livro, editado pela Global, foi distribuído entre crianças e adolescentes das redes públicas de ensino por um convênio entre a Fundação Gilberto Freyre e as secretarias de educação do Estado de Pernambuco, até ter sua distribuição interrompida por esta ação política. A argumentação contrária à publicação alegava se tratar de uma “versão deturpada da história da formação nacional brasileira, que adoça o escravismo colonial português e põe a pessoa negra, em especial a mulher, em um lugar naturalizado de coisificação, exploração e subserviência, ocultando o protagonismo e resistência negras contra a violência racial e sexista da escravização”, argumentos que a análise que apresentei endossa.

Trago à tona este episódio por entender que a luta pela representação do povo negro brasileiro é uma luta que inclui a denúncia de sentidos depreciativos cristalizados em estereótipos e sua ressignificação por meio da afirmação da resistência – em oposição aos sentidos de passividade e resignação – inscrita em posições antirracistas. Esta luta se dá pelos ativismos em diferentes esferas, como a produção acadêmica e os embates pelos meios legais em casos específicos de racismo e sexismo, como este. Os estereótipos que constituem mecanismos de invisibilização e representação negativa, que limitam as possibilidades do ser, são vistos por esta posição como “causa de um processo complexo de genocídio contra a população negra”, em uma articulação da luta pelo direito de se dizer e de se significar a outros direitos sociais.

4.3 Na mira, a formação discursiva da democracia racial e a mulher negra significada