• Nenhum resultado encontrado

O que dizem as mulheres negras (de si) para a Análise de Discurso?

Não admitimos as equivocadas análises que fazem de circunstâncias que nos são impostas, tampouco aceitamos limitadas definições do que sejam as mulheres negras. Somente nós mesmas podemos nos definir. Somos as fontes mais genuínas de conhecimento sobre nós; exigimos que estudos que nos tomem por temática tenham como centralidade nossos pontos de vista de mulheres negras (Petronilha SILVA, 1998)11. E quando as palavras das mulheres clamam por serem ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer sua responsabilidade de tirar essas palavras para fora, lê-las, compartilhá-las e examiná-las em sua pertinência à vida. Não nos escondamos detrás das falsas separações que nos impuseram e que tão seguidamente as aceitamos como nossas. Por exemplo: “Não posso ensinar a literatura das mulheres Negras porque sua experiência é diferente da minha”. Entretanto, durante quantos anos ensinaram Platão, Shakespeare e Proust? Ou: “Ela é uma mulher branca, o que ela pode dizer para mim” Ou: “Ela é lésbica… O que vai dizer o meu marido, ou meu chefe?” Ou ainda: “Esta mulher escreve sobre nossos filhos, e eu não sou mãe”. E assim todas as outras formas em que nos abstraímos umas das outras (Audre LORDE, 1977). Em grande medida – mas não exclusivamente – a produção teórica contemporânea sobre os movimentos de mulheres negras, as organizações de mulheres negras ou feminismo negro brasileiro ou no Brasil é também uma produção de autoras que se dizem, se fazem visíveis, audíveis e legíveis como mulheres negras. Em outras palavras, dizer do lugar desde onde se enuncia enquanto mulher negra é uma regularidade nestes trabalhos, o que por vezes expressa uma postura epistemologicamente reflexiva. Nestes casos, a enunciação de si entrelaça-se à denúncia do silêncio de grupos sociorracialmente excluídos da enunciação da produção de saber e ao engajamento para a construção de epistemologias alternativas. Inspirada em Nilma Gomes (2010), compreendo que estas mulheres dizem como intelectuais negras, em uma tomada de posição e questionamento coletivo à produção do conhecimento acadêmico e ao lugar ocupado pelo “outro” e pelas diferenças neste âmbito, bem como a produção, reconhecimento e distribuição social desigual dos conhecimentos.

Desde já, me posiciono de modo a manter este diálogo e, já que falarei delas, também não posso deixar de enunciar o quanto falam para mim e para este trabalho, por isso a proposta de que as mulheres negras falam também para a Análise de Discurso, dada a posição da qual enuncio. A postura reflexiva das pesquisadoras e os debates epistemológicos travados em alguns de seus trabalhos me deram subsídios para meus questionamentos direcionados à

11

Esta citação retirada do texto Chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas é retomada por Núbia Moreira (2007:72) e por Claudia Pons Cardoso (2012: 28).

Análise de Discurso e a meu próprio percurso de análise. Como pode se ler na epígrafe de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, há uma exigência de mulheres negras de que se tenha como centralidade seus pontos de vista quando se constrói conhecimento sobre elas. Estes pontos de vista podem ser associados às vozes e subjetividades de grupos sociorraciais que não são representados nas epistemologias dominantes e que, na maior parte das vezes, aparecem como objetos de pesquisa, e não sujeitos de conhecimento.

Nas palavras de Lélia Gonzalez (1983), intelectual/ativista precursora das posições dos feminismos negros brasileiros, sobre como mulheres negras foram/são nomeadas e significadas historicamente por outras vozes: “O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais” (GONZALEZ, 1983: 225). Uma breve análise nos efeitos de sentido do nós nesta formulação do texto acadêmico demonstra uma escrita subjetivamente posicionada. O nós não é marca do enunciador universal, recurso para indeterminar o sujeito e produzir um efeito de distanciamento do que diz, de objetividade e neutralidade, uma recomendação ainda corrente para a escrita de textos acadêmicos. Mulheres negras são representadas no enunciado na posição de autoras de um texto acadêmico que denuncia e questiona a articulação do racismo e do sexismo, a violência simbólica dos modos de rejeição/integração das mulheres negras no processo de formação cultural brasileira. E mais, dizem sobre elas mesmas – sobre o nós que enuncia – em um gesto de denúncia de outros lugares de enunciação e discursos que não corresponderiam a seus pontos de vista e não dariam conta da complexidade de produzir conhecimento sobre as mulheres negras.

Diferentes intelectuais/ativistas dos feminismos negros apontam para as representações de mulheres negras baseadas no servilismo e na sexualidade que justificaram a exploração masculina branca e, especificamente, a violência sexual na escravidão colonial, perseguindo sua historicidade e mostrando como irrompem na atualidade em uma relação de repetição e deslocamento de seus sentidos dominantes. Em texto sobre as intelectuais negras no contexto dos Estados Unidos, bell hooks (1995) argumenta sobre a não-representação das mulheres negras na posição de intelectuais. Nos discursos dominantes, as mulheres negras aparecem como corpo-trabalho e/ou como corpo-sexo. Conforme bell hooks (1995: 469), em todos os casos, um corpo sem mente e próximo à natureza12. À objetificação dos corpos se

12

hooks (1995) recorre a uma iconografia da escravidão para tratar das representações de mulheres negras significadas pelo corpo, encarnando uma perigosa natureza feminina a ser governada. Este texto é uma referência recorrente na bibliografia sobre as mulheres negras feministas. Os estereótipos de mulheres negras no Brasil e na

opõe à práxis de intelectuais negras, que confrontam estas representações – lembremos que o intelectual muitas vezes é representado como mente sem corpo13 – e a divisão social de enunciação que hierarquiza quem pode dizer sobre determinados temas, com qual legitimidade, efeito de verdade e circulação social.

Cardoso (2012) denuncia o processo de desvalorização e ocultamento da produção intelectual de homens e mulheres negros(as), apresenta a crítica feminista à ciência moderna ocidental, bem como a crítica das feministas negras, indígenas, lésbicas, não-brancas à produção feminista que as exclui. Em contraponto, defende uma epistemologia feminista negra do sul. Para as mulheres negras, a experiência com a intersecção das opressões racial e de gênero será a base para a elaboração de uma epistemologia, em outras palavras, “raça reconfigura a forma como as mulheres negras experienciam gênero em muitas sociedades” (CARDOSO, 2012: 74). Por sua vez, Sueli Carneiro (2005) trata esta violência, a partir de Boaventura de Sousa Santos (1995), como epistemicídio, neste caso uma estratégia de inferiorização intelectual dos negros, um atentado contra sua condição de sujeito de conhecimento e simultaneamente um modo de consolidação da supremacia intelectual da racialidade branca14.

A reivindicação de mulheres negras de que seus pontos de vista tenham centralidade quando se constrói conhecimento sobre elas amalgama a discussão dos efeitos da exclusão das experiências e pontos de vista de grupos sociais na academia, à divisão desigual do direito de enunciar neste âmbito de produção e legitimação de discursos, à pretensão de falar pelo outro na produção acadêmica e às epistemes dominantes na Universidade. Mais do que isso, leva ao centro da produção teórica questões sobre a produção de conhecimento no diáspora, e sua participação no seio de lutas ideológicas por ressignificação, serão tematizados de forma mais detida no quarto capítulo.

13

Quais os efeitos de não dizer do corpo do intelectual? Sugiro que, desde a formação ideológica dominante, muitas vezes significa o corpo que ocupa a posição dominante na hierarquia do sistema de classe-raça-gênero- sexualidade: o corpo do homem cis branco heterossexual da classe dominante.

14

A filósofa Sueli Carneiro (2005:60) diz da versão mais contemporânea do epistemicídio nas universidades brasileiras, em uma reflexão prenhe de questões éticas e políticas para qualquer estudo acadêmico que trate de temáticas envolvendo questões raciais: “Na sua versão mais contemporânea nas universidades brasileiras, o epistemicídio, cuja discussão aprofundaremos posteriormente, se manifesta também no dualismo do discurso militante versus discurso acadêmico, através do qual o pensamento do ativismo negro é desqualificado como fonte de autoridade do saber sobre o negro, enquanto é legitimado o discurso do branco sobre o negro. Via de regra a produção branca e hegemônica sobre as relações raciais dialoga entre si, deslegitimando a produção dos pesquisadores e ativistas negros sobre o tema. Isso é claramente manifesto nas listas bibliográficas utilizadas onde, via de regra, figuram autores negros não-brasileiros, ou no fato de quão poucos intelectuais negros brasileiros alcançaram prestígio nacional e internacional. Os ativistas negros, por sua vez, com honrosas exceções, são tratados, pelos especialistas da questão racial, como fontes de saber mas não de autoridade sobre o tema. Os pesquisadores negros em geral são reduzidos também à condição de fonte e não de interlocutores reais no diálogo acadêmico, quando não são aprisionados exclusivamente ao tema do negro.”

campo das humanidades e o comprometimento político com seu objeto/sujeito, explicite-se ou não a posição a partir da qual se enuncia, as redes de filiações teóricas e epistemológicas, o projeto empreendido e o percurso metodológico. Nesta perspectiva, uma postura reflexiva na produção do conhecimento envolve uma tomada de posição diante do embate entre o político e o teórico, entendendo que prática política e prática teórica se relacionam, mas não se equivalem.

De acordo com Elsa Dorlin (2008), o feminismo negro criou um eletrochoque no pensamento feminista ao longo de toda década de 1980. Assim, o movimento reflexivo sobre o que parecia evidente no nós de nós mulheres (e a crítica à mulher como sujeito político do feminismo) foi feito por um grupo de intelectuais brancas que, mais do que isso, buscou se descentrar de sua posição dominante antes entendida como “neutra”, elucidando a posição a partir da qual falava, em nome de quem falava e quais eram seus silêncios. No entanto, não basta – defende Dorlin (2008), com quem eu concordo – dizer de onde se fala, pois isso seria confundir nossas diferenças com nossas “posições de poder”. A questão não seria de elucidação de um lugar de dizer privilegiado (pela classe, gênero, raça, orientação sexual, religião, idade, etc.), mas a necessária reflexividade sobre os próprios valores, ferramentas políticas e cognitivas. A autora, em sua crítica, diz dos prelúdios intimistas que tomam conta das intervenções acadêmicas e militantes de feministas brancas e que se encerram neles mesmos. Em outras palavras, a enunciação de si na produção acadêmica no campo feminista não implica a reflexividade na produção do conhecimento ao mesmo tempo em que enunciar sobre si neste âmbito é efeito dos processos de interpelação (portanto de ilusão subjetiva) e das lutas internas ao campo, pois resulta da vitória (ou ao menos polêmica) da posição que defende não ser possível, sem a manutenção (e expressão) dos privilégios de um grupo dominante de mulheres, enunciar por todas as mulheres ou mesmo por todas as feministas.

O se dizer mulher negra em uma afirmação de identidade em que gênero e raça são constitutivos, assim como na denúncia do sexismo e do racismo, projeta imaginariamente perguntas na interlocução discursiva: “qual posição você ocupa na divisão social da enunciação para dizer de mim?” e, mais ainda, “na divisão social racializada e gendrada da enunciação?” A denúncia do privilégio de determinados lugares de enunciação na produção do saber no campo dos feminismos, recai sobre as mulheres brancas e seus privilégios pelo lugar simbólico da branquitude15. bell hooks (1984: 46) critica mulheres brancas que se

15

Faz parte dos efeitos da branquitude a falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais. O foco da discussão no negro – somente ele é estudado, dissecado, problematizado – e o silêncio do branco (que aparece como modelo universal de humanidade) integram um mesmo processo que atribui exclusivamente ao

dedicam a publicar ensaios e livros sobre como “desaprender o racismo” para um público branco, centrando na mudança de atitudes, ao invés de situá-lo politica e historicamente. Estas mesmas mulheres brancas se mantêm condescendentes e com atitudes paternalistas quando se relacionam com mulheres negras, convertendo-as em “objeto” de seu discurso privilegiado sobre a raça, sendo que nesta posição as mulheres negras continuam sendo “diferentes” e “inferiores”. A autora continua dizendo que parte destas mulheres se situam “en el lugar de las “autoridades” que deben mediar entre las mujeres blancas racistas — ellas, naturalmente, se ven a sí mismas libres de racismo — y las mujeres negras furiosas a las que consideran incapaces de mantener un discurso racional.” A autora finaliza seu argumento com a conclusão de que o sistema de racismo, classismo e elitismo da educação deve permanecer como está para que também se mantenha a posição de autoridade da academia branca. Ou seja, condescendência e mediação da palavra (dizer por – pelas outras diferentes) são práticas desde uma posição que defende seu lugar de privilégio e não compreende a interdependência das opressões de sexo, raça e classe, além de não se engajar pela transformação da academia.

Lélia Gonzalez (1979: 15-16), tratando do feminismo brasileiro, anos antes denunciava que o discurso das mulheres negras quando explicitam sua super-exploração era considerado por diferentes setores feministas como “uma forma de revanchismo ou cobrança” ou “sua fala como sendo ‘emocional’”. A intelectual/ativista reflete sobre esta emoção, apontando que ela “está muito mais em quem nos ouve”.

Na medida em que o racismo, enquanto discurso, situa-se entre os discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não como sujeito. Consequentemente, é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele. E ele diz o que quer, caracteriza o excluído de acordo com seus interesses e seus valores. No momento em que o excluído assume a própria fala e se põe como sujeito, a reação de quem ouve só pode se dar nos níveis acima caracterizados. O modo mais sutilmente paternalista é exatamente aquele que atribui o caráter de “discurso emocional” à verdade contundente da denúncia presente na fala do excluído. Para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam numa renúncia à razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão (GONZALEZ, 1979: 15-16). No argumento de ambas as autoras, ficam patentes as lutas pela palavra, nas quais instituir um outro, desqualificar sua fala (como furiosa, emocional e não-racional) são táticas para se manter um lugar de dizer privilegiado sobre este outro. De modo análogo, denunciar o lugar de enunciação das mulheres brancas feministas na academia é um dos gestos que negro o problema das desigualdades raciais em uma espécie de pacto entre brancos de não se reconhecerem como parte essencial da permanência destas desigualdades e dos seus privilégios (BENTO, 2002).

constitui o lugar de enunciação de mulheres negras num mesmo campo. Suas análises contribuem fortemente para se pensar as lutas pela palavra, pelo direito à voz própria e as posições de privilégio na divisão social da enunciação, que se beneficiam da hierarquização de conhecimentos e discursos bem como do silenciamento de certos lugares de enunciação, lugares de fala ou pontos de vista. Compreendo que seria fundamental para pessoas brancas que se propõem a relações de aliança com os feminismos negros – como é meu caso – reconhecer e discutir politicamente o protagonismo das vozes de mulheres negras bem como engajar-se em lutas que transformem os sistemas de educação, produção e divulgação científica, a exemplo das políticas de cotas raciais para a garantia e ampliação do acesso ao ensino superior, além de abrir-se para a diversidade de modos de conhecimento.

Na construção desta reflexão acerca do ponto de vista desde a AD, do qual participaram algumas pesquisadoras do Mulheres em Discurso, cito um comentário da colega de grupo de pesquisa Mônica Cruvinel sobre as epistemologias do ponto de vista e a analista de discurso que não compartilha do ponto de vista dos sujeitos de suas pesquisas, mas que é afetado por ele16. Ela afirma, inspirada no livro Diante da Dor dos Outros, de Susan Sontag (2003), que, ao “tirarmos uma foto”, ocupamos uma posição que embora não seja a mesma daquele(a) que fotografamos tem uma perspectiva e um enquadramento”, sendo que “a forma como fazemos este enquadramento pode centralizar os pontos de vistas daqueles que fotografamos-olhamos-interpretamos-dialogamos”, inclusive havendo momentos em que somos capturados por outras lentes e estamos enquadradas junto destes sujeitos para quem antes direcionávamos nosso olhar. Lembro-me de fotos em que estou com estas mulheres em espaços de encontro, luta, formação, socialização, celebração – nas ruas, nas rodas de capoeira e de jongo, nos terreiros, nas casas de cultura, em auditórios de sindicatos, em congressos acadêmicos...

Esta metáfora da fotografia é produtiva quando se toma o processo de seleção do objeto (aqui sujeito) da pesquisa, o modo como dele se tratará, as questões formuladas, a posição de quem pesquisa. Nas imagens de ouvir e ver estão duas questões políticas candentes em torno da luta de mulheres negras pelo reconhecimento e contra o racismo/sexismo: a luta pela palavra e contra o silenciamento, na qual o escutar sua voz que vem de longe é central, e a luta por visibilidade, contra imagens estereotipadas ou invisibilização, para que sejam vistas na diversidade de suas existências. Busco, então, ouvir estas vozes de mulheres negras,

16

Refiro-me ao comentário de Monica Cruvinel ao meu texto Por uma tomada de posição feminista e antirracista na Análise de Discurso, disponível em https://mulheresemdiscurso.wordpress.com/2015/03/10/uma- tomada-de-posicao-feminista-e-antirracista-na-analise-de-discurso/#comments.

contribuir para sua circulação e considerar suas contribuições desde diversas disciplinas acadêmicas e de produções interdisciplinares para a AD no que tocam seu interesse histórico pelos discursos políticos de resistência. Além disso, desde a AD, produzo análises que pretendem contribuir para se pensar as relações entre enunciação, discurso, história e processos de subjetivação no campo dos estudos das relações raciais e de gênero.

1.3 Os pontos de vista das mulheres negras na academia: chegou a hora de darmos a luz