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3.2 Interlocução discursiva, posições sociais e imaginárias

3.2.1 A noção de lugar de enunciação

Mobilizo a noção de lugar de enunciação para pensar os efeitos produzidos por uma enunciação em relação ao lugar a partir do qual é proferida e, ainda, a relação deste lugar com um mecanismo estrutural do qual retira sua eficácia. Procuro apreender a relação entre funcionamentos enunciativos com o fundamento discursivo da representação política. Com base no trabalho de Zoppi Fontana (2002: 16), compreendo que a problemática abordada através da noção de lugar de enunciação poderia ser resumida como “uma reflexão sobre a divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação, na sociedade” (grifos da autora).

A noção de lugar de enunciação é inserida “no quadro teórico da figura da interpelação e considerando o processo de constituição do sujeito do discurso nas relações de identificação estabelecidas com a forma-sujeito e as posições sujeito definidas nas FD que o afetam” (ZOPPI FONTANA, 2002: 18). Esta noção propicia a reflexão sobre a seguinte questão:

como pensar a “eficácia ideológica” (possibilidade de dizer, efeito do dizer) de um discurso sem cair nas armadilhas de reduzi-la a um puro efeito de linguagem, no seu funcionamento genérico-retórico-argumentativo (apagamento da história) nem descrevê-la como projeção (imediata ou mediada) de uma topografia de lugares sociais institucionalmente definidos

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Sobre as evidências dos sentidos e dos sujeitos, Pêcheux (1975: 139) cita Althusser em Aparelhos ideológicos de Estado: “Como todas as evidências, inclusive aquelas que fazem com que uma palavra ‘designe uma coisa’ ou possua um significado (portanto inclusas as evidências da ‘transparência da linguagem’), a evidência de que vocês e eu somos sujeitos – e que isto não constitua um problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar”.

(apagamento da língua) (Idem: 21).

Os lugares enunciativos fariam parte do processo de constituição do sujeito nas relações de identificação/interpelação ideológica, que seriam definidas não somente em relação aos elementos de saber de uma FD, mas também em relação aos modos de dizer como esses elementos aparecem nas sequências discursivas e, acrescento, às imagens dos interlocutores projetadas na interlocução discursiva. Como venho argumentando, as formações imaginárias produzem uma força argumentativa: do lugar do corpo negro feminino significado como sem voz e raciocínio, como sexo e trabalho, desde posições racistas, os lugares de enunciação das mulheres negras projetam imagens do corpo negro consciente de si, da sua negritude (a consciência negra), em busca de sua identidade (a identidade negra) e liberdade de ser numa potencialidade múltipla.

No caso de nossa pesquisa, se coloca a questão da relação do sujeito enunciador com o enunciado. Como afirma Zoppi Fontana, a partir de Pêcheux (1975), “o sujeito enunciador só tem acesso às operações que constroem as formulações e não aos enunciados do ‘seu’ discurso, isto é, ele só opera (pré)conscientemente com o dito, não com o dizível, e, menos ainda, com o que fica fora desse dizível” (ZOPPI FONTANA, 1997: 36). Deste modo, as correções que o sujeito faz para explicar o que disse, para aprofundar o que pensa, explicitar o que quis dizer, produzem “a fonte da impressão de realidade do pensamento para o sujeito (‘eu sei o que eu digo’, ‘eu sei o que eu falo’)” (PÊCHEUX & FUCHS, 1975: 176). Esta ilusão de realidade do seu pensamento e o acesso parcial às operações de argumentação e organização textual do “seu” discurso fazem com que se represente imaginariamente para o sujeito como uma “tomada de posição” em relação ao enunciado.

Sobre este ponto, contribui a proposta de Rodrigo Fonseca (2013), quem se propõe a pensar o engajamento do sujeito na luta pelos sentidos e a sustentação de posições pelos sujeitos enunciadores. Em busca de uma noção discursiva da práxis mobiliza o que Jacques Rancière (1996: 47) denomina modos de subjetivação: “produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma capacidade de enunciação que não eram identificáveis num campo de experiência”. O autor chama estes modos de subjetivação de palanques enunciativos com o objetivo de ressaltar o trabalho dos sujeitos para se fazerem audíveis e visíveis em meio às relações de força entre os discursos, como uma reação aos efeitos de dominação sem, no entanto, repor o sujeito consciente de suas ações, em um debate sobre o caráter insuficiente das concepções de ideologia e assujeitamento em Althusser para pensar o

sujeito fora das armadilhas das evidências ideológicas.

Na interlocução discursiva, as imagens projetadas no discurso são de lugares sociais já significados pelas posições ideológicas no interior das formações discursivas. Exemplifico: no discurso do movimento de mulheres negras, projeta-se imaginariamente mulher negra como sujeito que se diz identificado com posições feministas e antirracistas. É necessário levar em conta a rede teórica: dizer de uma posição feminista e antirracista quando a projeção imaginária do interlocutor é de uma mulher indígena produz outros efeitos de sentido. Poderia se pensar que isso ocorre porque é constitutivo de posição sujeito antirracista, feminista e indígena projetar imaginariamente a mulher indígena como quem seria a interlocutora privilegiada dessa posição; e que há elementos de saber constitutivos da posição que a distanciam de uma posição sujeito feminista negra.

O que procuro ressaltar, articulando as propostas de Pêcheux de formações imaginárias e de posições sujeito, tendo em vista a proposição de que o sentido das palavras muda de acordo com a posição de quem as emprega, é que essa posição está no interior de uma formação discursiva e também se relaciona às imagens dos interlocutores. Dito de uma forma talvez simplificada, não existem posições ideológicas que não projetem quem as defende, contesta, etc. em uma relação determinada pelas condições de produção de quem está autorizado, tem credibilidade e legitimidade de dizer de uma posição e a credibilidade e legitimidade do que se diz. Esta projeção inclui corpos constituídos historicamente e discursivamente por relações de classe-raça-gênero-sexualidade.