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2.4 Mulheres Negras Brasileiras no III Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe

2.4.2 Vídeo do Coletivo Enugbarijo

Analisarei uma sequência discursiva retirada de um vídeo feito por um coletivo autônomo de comunicação dos anos 1980 chamado Enugbarijo. O vídeo está hoje abrigado no site do Acervo Digital de Cultura Negra Brasileira (http://www.cultne.com.br), um projeto que procura disponibilizar o registro de uma “parte da história brasileira (...) que até pouco tempo era escamoteada ou ignorada por grande parte da sociedade”. A internet como arquivo (do) contemporâneo, organiza narrativas histórias de grupos sociais particulares, ao mesmo tempo em que fornece uma massa de informações dispersas pertinentes a uma questão, de modo a desafiar e fragilizar a invisibilização e silenciamento impostos pelo discurso dominante na historiografia e acervos estatais bem como a divisão social da leitura e da interpretação de que fala Pêcheux (1982), em Ler o arquivo hoje.74 A criação de meios para difusão dos processos e personalidades históricas inspiradoras do movimento negro é uma prática dos coletivos que dele participam, sendo a disputa pela memória uma regularidade nos seus discursos. Neste acervo, uma das categorias de vídeos é nomeada mulheres negras, mostrando nesta forma de arquivo uma organização da memória que indexa mulheres negras como tema específico.

O vídeo inicia com a intervenção de Luiza Bairros na plenária do encontro,

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Aqui faço duas ressalvas: não se trata de defender a internet como lugar da possibilidade igualitária de interpretação e circulação de discursos (cf. GARCIA, D. A. ; SOUSA, L. M. A. E. , 2014), nem de negar as lutas e resistências internas à historiografia e presente nos acervos dos documentos do Estado.

ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) entre 2011 e 2014, na ocasião, militante do Movimento Negro Unificado. A seguir, apresento recortes de sua fala, entremeados de análises sobre os modos como o objeto feminismo é disputado em seus sentidos e sobre a dêixis discursiva que constrói o momento como tomada da palavra pelas mulheres negras.

Houve um primeiro momento do movimento feminista manter uma unidade, um certo fechamento, no sentido positivo da palavra, em cima de questões específicas, mas eu creio que chegou o momento da gente começar a olhar o que existe de diferente no movimento, o que existe de aparentemente contraditório [interrupção por palmas da plenária]. E se a gente começar a enxergar isso de frente, acho que vai ter sido dado um salto qualitativo e quantitativo muito importante.

No início da sequência, feminismo é objeto de que se fala, em uma apresentação histórica. Em seguida, a passagem para a primeira pessoa do singular (eu creio) e então para a primeira pessoa do plural (a gente) compromete o eu com a análise apresentada para depois produzir como efeito um coletivo de mulheres feministas. A marcação na enunciação de dois momentos do feminismo – um “primeiro momento de unidade” e o outro, que “chegou”, de “começar a enxergar” a diferença – produzem como efeito a atualidade da disputa pela palavra, pelo reconhecimento e visibilidade política das mulheres negras no interior do movimento feminista.

Basicamente, essa coisa nos vem em função do fato de nós tentarmos trabalhar enquanto mulheres negras certas coisas que nós aprendemos com o feminismo levando em conta nossa especificidade étnica. E a gente não pode de maneira nenhuma esquecer que, na América Latina e no Caribe, a grande maioria das mulheres não são brancas e, por não serem brancas, têm uma forma muito especial de inserção na sociedade determinada por essa condição. [interrupção por palmas]

Nós não diz mais respeito ao conjunto das mulheres feministas, é delimitado por mulheres negras. Na argumentação, o nós se legitima e se autoriza na afirmação do que o delimita; se diz a partir da afirmação do que se é, “enquanto mulheres negras”, na reflexividade metaenunciativa que diz do sujeito da enunciação. O feminismo volta a ser objeto de que se fala, marcando uma relação de exterioridade com o coletivo mulheres negras: as mulheres negras aprendem com o feminismo. Em “a gente não pode de maneira nenhuma esquecer que, na América Latina e no Caribe, a grande maioria das mulheres não são brancas” pode-se supor que há uma retomada do nós feministas do início da fala, podendo ainda significar uma indeterminação que parafraseio por “não se pode esquecer”. As palmas (coletivas) seriam o reconhecimento (o “enxergar a diferença”) do nós/a gente feministas da plateia e/ou também indício da identificação das mulheres que não são brancas da América

Latina e do Caribe com as negras brasileiras que tomavam a palavra de forma inaugural, no efeito de sentido da sequência. Pela afirmação de que a maioria das mulheres não são brancas, há a denúncia dos privilégios da branquitude e do racismo dentro do feminismo.

Ressalto o deslocamento da designação negras para não-brancas em uma conjuntura política da presença no encontro de países com expressiva presença indígena, o que poderia indicar a aliança entre não-brancas. As duas designações (negras e não-brancas) só poderiam funcionar como sinônimas em um apagamento da diversidade étnico-racial do encontro e, em especial, das mulheres indígenas, o que ocorre por vezes como efeito nos funcionamentos polêmicos do discurso dos movimentos de mulheres negras em polarização com os discursos feministas significados como discurso de mulheres brancas. Nestas polêmicas, em alguns casos, somente os polos antagônicos significados como dominante e dominado aparecem: o das mulheres negras e o das mulheres brancas, em um apagamento de outras posições. Neste recorte vemos uma outro modo de construir, nomear e dizer da contradição no discurso. Dito de outra forma: se a polarização é uma regularidade em muitos discursos em polêmica na política, neste recorte ela não se dá entre brancas e negras, mas entre brancas e não-brancas, numa aliança entre diferentes coletivos não identificados com o polo dominante das relações raciais. O dizer como mulheres negras não limita a identificação a este coletivo – a possibilidade de identificação ao coletivo do nós é ampliada às não- brancas.

Disputa-se o sentido de feminismo em um processo contraditório que afirma e nega o pertencimento a ele. A relação de exterioridade com o feminismo e a passagem de mulheres negras para mulheres que não são brancas produz pela negação e pela passagem/reescritura de feminismo para o a gente feminista o efeito de sentido das feministas como brancas. Em outras palavras, a construção discursiva da identidade das mulheres negras se faz em oposição e diferenciação às “feministas” em seu sentido dominante não-dito de “mulheres brancas feministas”, ao mesmo tempo em que disputa um lugar no feminismo para o “nós mulheres negras” e “não brancas”.

Figura 04 – Montagem com imagens do vídeo do Coletivo Enugbarijo do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe (1985). Fala de Luiza Bairros e intervenção das mulheres negras

brasileiras.

Destaco ainda a expressão “especificidade étnica” para falar da “experiência das mulheres negras” – as noções de experiência e especificidade podem ser inscritas na discursividade de vários outros movimentos sociais (os chamados “novos movimentos sociais”). Detenho-me na “especificidade” e na polêmica que percorria os movimentos feministas entre a “luta geral” e as “lutas específicas”. O debate do feminismo fortemente atrelado ao marxismo na América Latina e no Caribe era de pensar o capitalismo como sistema que conjuga exploração de classe a opressões como o machismo, a homofobia e o racismo, por um lado, e os desafios para avançar na luta contra esse sistema complexo, de outro, o que incluía o debate sobre os sujeitos políticos de uma transformação social e sobre os sentidos desta transformação. Havia feministas que argumentavam, então, que somente a “luta geral” (a luta contra a exploração de classe, que tinha como principal sujeito a classe trabalhadora) não resolveria as questões “específicas” (as opressões), sendo as lutas contra as opressões uma luta protagonizada pelos setores oprimidos.

A gente vai agora [mulheres negras começam a ir a frente, juntando-se a Luiza Bairros], a gente que eu digo, além de mim, que faço parte do Movimento Negro Unificado, as mulheres do Agbara, do Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, do Nzinga, Coletivo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, e mais outras companheiras que são do Sindicato das Enfermeiras e universitárias do Rio de Janeiro, a gente vai querer mostrar alguma coisa pra vocês, uma mensagem final nossa, que é um pouco da história das mulheres negras e de seu processo de resistência na luta que o negro desenvolve, que sempre desenvolveu dentro desse país pelo direito de existir como ser humano [palmas].

universitárias, sindicalistas, de coletivos de mulheres negras – para juntar-se a ela. São cerca de 15 mulheres que deslocam-se para frente do público do encontro e cantam em coro, emocionando a plateia que reage com aplausos. Trata-se da adaptação do poema “Salve a mulher negra”, de Oliveira Silveira75

, cantado pelas participantes do encontro76: Luiza Mahin

Chefa de negros livres E a preta Zeferina Exemplo de heroína Aqualtune de Palmares Soberana quilombola E Felipa do Pará Negra Ginga de Angola África liberta

Em tuas trincheiras Quantas anônimas Guerreiras brasileiras

A canção, em sua letra, atualiza a memória das lideranças femininas nos quilombos e nas revoltas contra a escravidão no Brasil (Luiza Mahin, na Revolta dos Malês; Aqualtune, no Quilombo dos Palmares; Zeferina, no Quilombo do Urubu) e em África (Negra Ginga de Angola é uma referência à poderosa rainha africana Nzinga Mbandi no século XVII). Tendo em seu centro a participação feminina, seja de heroínas nomeadas ou de anônimas, há uma filiação da memória do “movimento de mulheres negras” no Brasil a uma história de luta anterior na qual se reconhecem e que se relaciona à organização política na África, é marcada pela colonização, escravidão e resistência a estes processos de dominação. Constrói-se uma trajetória de “guerreiras brasileiras” na qual se inscreve o sujeito da enunciação que inclui as guerreiras africanas pelo funcionamento dos nomes próprios e breves caracterizações (como “Luiza Mahin, chefa de negros livres”), produzindo como efeito uma continuidade temporal sem que para isso se empregue dêixis temporal.

De forma heterogênea, o deslocamento África-Brasil é significado paradoxalmente como interrupção e continuidade para o sujeito dos movimentos de mulheres negras no Brasil. A retomada das trajetórias de mulheres (heroínas, com nome e sobrenome, guerreiras anônimas do cotidiano) ou de experiências organizativas precursoras do movimento de mulheres negras chamadas a compor suas narrativas de origem participa da formulação de uma interpretação de si e da construção histórica e cultural do Brasil.

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Militante e professor, é importante referência de intelectual diaspórico negro na literatura brasileira, sendo também representante fundamental da literatura negra brasileira.

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Tive a oportunidade de perguntar sobre essa música diretamente a Luiza Bairros na ocasião de sua visita à Casa de Cultura Fazenda Roseira (Campinas/SP) em abril de 2014, a quem agradeço por ter me fornecido a referência do poema de Oliveira Silveira.

Neste caso, por efeito, o nós mulheres negras, predicado por guerreiras brasileiras, por efeito do canto coletivo, se amplifica e significa a soma de diferentes vozes que rompem o que é denunciado como silêncio histórico a elas imposto, fazendo ressoar uma memória pouco difundida que disputa com as memórias do feminismo e da construção do Brasil. Neste gesto, diz-se do passado, do presente e projeta-se uma futuridade dos sentidos, pela abertura do possível no acontecimento que também se faz a chance do militante (ZOPPI FONTANA, 2009) na performatividade da palavra comum que aproxima o sujeito de dizer do sujeito histórico da ação política. Mulheres negras em luta na história que atravessa o Atlântico da África ao Brasil são visíveis para si mesmas e para as outras. Estaríamos diante de um acontecimento histórico que rompe o círculo da repetição de modo que o irrealizado formaria novos sentidos?

Figura 05 – Vídeo Enugbarijo (1985). Mulheres negras brasileiras cantam na plenária do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe.

Tomo a descrição que Pêcheux(1982) faz da figura do porta-voz na representação política, que concomitantemente enuncia diante dos seus e representa-os perante outro interlocutor. Nessa perspectiva, seria possível pensar em um funciomento distinto daquele do funcionamento enunciativo da figura clássica do porta-voz. Neste caso, dentre as múltiplas formas de fazer política de mulheres negras, se apresenta um locutor coletivo. A opção por uma canção em lugar da leitura de um manifesto político (pelo poema político cantado em detrimento do manifesto escrito lançado), por exemplo, e a escolha de apresentar diante do público um coletivo de mulheres, no lugar da manutenção exclusiva da figura do porta-voz, podem ser lidas como indícios da irrupção na atualidade do acontecimento de diferentes práticas organizativas e discursivas que desafiam e hibridizam dicotomias de categorizações

que lhes são exteriores, como a de oralidade e escrita, verbal e não-verbal, arte e política, entre outras.

Em síntese, as análises sugerem que a intervenção das mulheres negras brasileiras na plenária do III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe poderia ser entendida como emblemática e mesmo metafórica de muitos funcionamentos dos discursos dos movimentos de mulheres negras no que diz respeito à sua identidade discursiva na inscrição/construção de memórias negras diaspóricas e à sua reflexividade sobre a voz e visibilidade das mulheres negras. Do silêncio, ou melhor, do dizer à margem das posições de maior poder, à assunção da palavra no campo feminista e sua disputa na relação com as mulheres brancas, em busca de um lugar de dizer legítimo, com credibilidade e maior circulação social. De invisíveis ou invisibilizadas, ocupam o espaço para o qual se dirigem os olhares, para “se enxergar a diferença”, passando a uma posição de visibilidade diante de outras mulheres e de um público mais amplo com elementos próprios do seu modo de exist ir e de fazer política.