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2.6. Fontes e jornalistas: “um casamento de conveniência” 33

2.6.4. Mídia versus política 46

Um dos exemplos mais prolíficos da relação jornalista-fonte é o que ocorre entre os políticos e a mídia. Já no século XVII, o rei Luís XIV, da França preocupou-se em disseminar sua imagem de "soberano excepcionalmente dedicado aos negócios do Estado e ao bem-estar de seus súditos" (Burke, 1994, p. 73). Para isso, o monarca garantiu espaço regular para divulgar suas atividades no periódico Gazette de France. A representação dos indivíduos

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nos meios de comunicação passou a constituir uma preocupação legítima. O sociólogo canadense Erving Goffman define representação como

(...) toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre eles alguma influência (Goffman, 2004, p. 29).

Na época de Luís XIV, certamente a imprensa não podia optar entre publicar ou não os feitos de seu soberano. Mas já era possível notar que a força da mídia não passava despercebida pelas autoridades. O cientista político Luís Felipe Miguel (2002), da Universidade de Brasília, comenta o papel estratégico da mídia para os políticos:

A mídia é, nas sociedades contemporâneas, o principal instrumento de difusão das visões de mundo e dos projetos políticos; dito de outra forma, é o local em que estão expostas as diversas representações do mundo social, associadas aos diversos grupos e interesses presentes na sociedade (Miguel, 2002, p. 163).

O pesquisador português Nelson Traquina corrobora essa visão:

(...) no contexto da comunicação política, o campo jornalístico constitui um alvo prioritário da ação estratégica dos diversos agentes sociais, em particular, dos profissionais do campo político. Um objetivo primordial da luta política consiste em fazer concordar as suas necessidades de acontecimento com as dos profissionais do campo jornalístico. (Traquina, 2001, p. 24)

Na disputa sobre quem tem mais influência sobre a opinião pública - jornalistas ou políticos -, Dominique Wolton defende que os primeiros levam vantagem. O autor afirma que os atores políticos vivem uma contradição: "[...] as mídias são necessárias para valorizar sua ação mas, ao mesmo tempo, sublinham a escassez de sua margem de manobra" (Wolton, 2004, p. 204). De acordo com o sociólogo francês Pierre Bourdieu, essa vulnerabilidade

É o que faz com que o homem político esteja comprometido com o jornalista, detentor de um poder sobre os instrumentos de grande difusão que lhe dá um poder sobre toda a espécie de capital simbólico (o poder de “fazer ou desfazer reputações”, de que o caso Watergate deu uma medida) [...] (Bourdieu, 2009, p. 189)

O jornalista, por sua vez, trava com o político “uma relação de profunda ambivalência que o leva a oscilar entre a submissão admirativa ou servil e o ressentimento pérfido, pronto a

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exprimir-se ao primeiro passo em falso dado pelo ídolo para cuja produção contribuiu” (Bourdieu, idem).

O pesquisador norte-americano Dean E. Alger (1989) também defende que mídia e autoridades de governo têm uma relação ambígua. Alger dá o exemplo dos presidentes norte- americanos. Para conseguirem agir, eles precisam fazer coalizões, que incluem barganhas e trocas, longe dos olhos do público. Ao mesmo tempo, os presidentes usam os veículos de comunicação para angariar apoio da população em questões específicas. “Essa confiança na mídia tem se tornado uma parte importante dos esforços dos presidentes para gerar governabilidade e fazer o governo agir sobre os problemas”17 (Alger, 1989, p. 155, tradução da autora).

A mídia, por outro lado, quer publicar as notícias, de preferência, as que sejam interessantes do ponto de vista dos critérios jornalísticos, e furar a concorrência. O objetivo é saber o que acontece por trás das portas fechadas, desvendar os conflitos, etc. Os jornalistas também se vêem como watchdogs, principalmente depois de Watergate. “O governo quer seu retrato tirado em sua melhor pose, de seu ângulo mais favorável. A mídia, contudo, quer tirar fotos espontâneas, mostrando o governo em poses esquisitas e desprevenido”18 (idem, p. 156, tradução da autora).

Em suma, políticos e jornalistas precisam um do outro para alcançar seus objetivos. E eles não só reconhecem isso e costumam tolerar suas diferenças, como cooperam uns com os outros de várias formas, tanto no que diz respeito à cobertura noticiosa quanto no uso direto da comunicação pelas autoridades. Alger (id. ib.) ressalta que a população dos Estados Unidos tem confiado cada vez mais na mídia para obter informações e impressões sobre candidatos (em época de eleições), autoridades e políticas públicas.

O pesquisador afirma que tem-se observado um declínio no papel dos partidos no sistema político, principalmente por incoerências programáticas (Alger, 1989, p. 157). O

17 Such reliance on the media has become an increasingly prominent part of presidents’ efforts to provide

leadership and move the government to act on problems.

18 Government wants its portrait taken in its Sunday best, from the most flattering angle. The media, however,

want to take candid shots, showing government in awkward poses and off its guard.

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presidente, por sua vez, tem ido cada vez mais sozinho a “público” para angariar apoio popular para aprovação de leis e políticas públicas. O que se vê, portanto, é a personalização da figura do presidente norte-americano, cujas estratégias centrais são discursos e aparições cobertas pelas mídia – a semelhança com o que acontece no Brasil é notável.

Alger (idem) lista cinco funções da relação mídia-governo que podem ser aplicadas a presidentes da República, a membros do Congresso e de outras instituições, em diferentes níveis:

1. A mídia como meio para contar para o público como a presidência está sendo conduzida e inseri-la no contexto institucional e dos processos de governo como um todo;

2. a mídia como forma de o presidente e outras autoridades se dirigirem diretamente ao público;

3. a mídia como canal para o presidente se comunicar com outras autoridades;

4. a mídia como canal de feedback dos outros atores políticos e da população em geral (a resposta política às ações do presidente e/ou autoridades);

5. a mídia como forma de transmitir aos presidentes e autoridades informação sobre eventos e seus desdobramentos – muitas vezes as autoridades ficam sabendo das notícias mais rapidamente pelos meios de comunicação do que pelos canais oficiais. O ex-secretário de comunicação da presidência dos Estados Unidos, George Reedy, resume de forma clara a relação mídia-governo:

O impacto significativo da imprensa sobre o presidente não reside em suas reflexões críticas, mas na capacidade de mostrar-lhe o que está fazendo visto por outros olhos (…) a realidade é que um presidente não tem problemas de imprensa [isto é, eles não tem problemas em ter toda a atenção da mídia que querem], mas [um presidente] tem problemas políticos, todos eles refletidos em sua forma mais aguda pela imprensa19 (Reedy apud Alger, 1989, p. 158, tradução da autora).

19 The significant impact of the press upon the president lies not in its critical reflections but in its capacity to tell

him what he is doing as seen through other eyes (...) the reality is that a president has no press problems [that is, they have no problems getting just about all the media attention they want], but [a president] does have political problems, all of which are reflected in their most acute form by the press.

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O pesquisador norte-americano Richard R. Fagen, da Universidade de Stanford, afirmou que, à primeira vista, poderíamos nos surpreender com a quantidade de pessoas envolvidas na produção, coleta, processamento e disseminação de notícias e opiniões sobre política (Fagen, 1971, p. 65). São secretários de imprensa, relações públicas, repórteres, colunistas, redatores, oficiais encarregados da informação pública, entre outros. Uns trabalham para o governo, outras para agências noticiosas, TVs, rádios e jornais. Apesar da aparente confusão, Fagen ressaltou que os especialistas interagem a partir de procedimentos- padrão.

Reuniões diárias são realizadas para ligar os centros oficiais de informação na Casa Branca e no Departamento de Estado aos repórteres que fazem a cobertura desses setores. Além disso, através de entrevistas coletivas com a imprensa, os funcionários mais graduados se põem à disposição para interrogatório direto, contornando os funcionários encarregados das informações que normalmente se postam entre os funcionários mais graduados e a imprensa atuante. Também notaríamos que os que se especializam na coleta de notícias e no fornecimento de opiniões desenvolvem procedimentos padronizados de pesquisa, talhados para as suas necessidades de informação. Através de contatos pessoais, incluindo contatos com outros membros da imprensa atuante, o jornalista político cultiva as fontes informais das quais depende grande parte de seu trabalho (Fagen, 1971, p. 66)

A relação de cooperação diária a que se referem Neveu (2006), Pinto (2000) Alger (1989) e Fagen (1971) é mantida por meio de códigos de comportamento, convenções, confidências, acordos verbais e tabus, que permitem que autoridades e funcionários de governo convivam com jornalistas especializados na cobertura política. Fagen também elaborou uma tipologia para caracterizar o uso da mídia pelo governo, mas alertou que o sistema é “complexo” demais para que uma tipologia “simples” consiga explicá-lo.

Foram três as utilidades relacionadas pelo pesquisador, que guardam certa semelhança com as elencadas por Alger: 1) como índice do que e de quem é importante, merece notícia ou é politicamente relevante; 2) como instrumento para aferir a opinião pública; 3) como recurso para os que têm planos, problemas ou ambições (a exemplo da tática do “balão de ensaio” - um político coloca à prova na mídia um plano de ação para testar a reação popular antes de defendê-lo oficialmente).

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Mas é possível dizer que a mídia tem impacto na elaboração de políticas públicas? Alger (1989) defende que o simples fato de uma questão receber grande atenção da mídia e, logo depois, virar política pública não prova a relação de causa e efeito. Mas a impressão de funcionários e autoridades governistas parece ser essa. Um estudo conduzido por Martin Linsky e pesquisadores da Kennedy School of Government, da Universidade de Harvard, constatou que 60% dos funcionários federais formuladores de políticas sentiam que a mídia tinha “efeito substancial nas políticas federais” e 10% disseram que a imprensa tinha um “efeito dominante”. Em uma entrevista em profundidade, um servidor chegou a dizer que altos funcionários perguntavam freqüentemente como determinada medida ficaria no jornal da noite ou na primeira página de um impresso.

Os pesquisadores relacionaram dois tipos de impacto nas políticas públicas que se destacaram: uma cobertura substancial da mídia acelera o processo de decisão das autoridades. Mas essa rapidez também pode afetar a qualidade das medidas tomadas. Além disso, uma cobertura substancial, principalmente negativa, dos atos da administração, tende a empurrar a tomada de decisão para esferas mais altas do poder. Portanto, o principal impacto é no processo de elaboração de políticas públicas. Mas, às vezes, o conteúdo delas também pode ser afetado de forma bastante direta, como quando políticas são revistas por causa da cobertura da mídia. O trabalho também mostrou que a cobertura negativa é a que mais causa impacto nos elaboradores de políticas públicas.

Sobre esse assunto, Luís Felipe Miguel defende que há uma tendência dos teóricos da comunicação em superestimar o valor da mídia na delimitação das estratégias políticas. "Mídia e política formam dois campos diferentes, guardam certo grau de autonomia e a influência de um sobre o outro não é absoluta nem livre de resistências; na verdade, trata-se de um processo de mão dupla" (Miguel, 2002, p. 13).

Wilson Gomes (2004) também alerta que reduzir a política a um espetáculo midiático não esclarece o “jogo político regular”, aquele que acontece nos gabinetes e nos bastidores da cena política e inclui complexas negociações, alianças, barganhas, retaliações e demais práticas que costumam ficar longe dos holofotes e do alcance do público em geral. O sistema de práticas estabelecido na disputa de imagem entre os atores políticos e os mecanismos para constar na agenda do público são, portanto, apenas um dos domínios da pesquisa em comunicação política.

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