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CAPÍTULO 4 AS PRÁTICAS DE LEITURA DO LIVRO ILUSTRADO EM

4.1. Maneiras de olhar os modos de fazer

Toda ordem ou disciplina de pesquisa pode ser gerida, considerando tanto as inúmeras possibilidades e invenções que um fazer oferece quanto as restrições, entendidas aqui como possíveis barreiras que surgem durante o processo de pesquisa. Nos capítulos anteriores, tivemos a oportunidade de citar alguns desafios que convocam o par “possibilidades e proibições”, ao situarmos nossas operações de pesquisa no conjunto de cada assunto abordado, ao invés de optarmos por um capítulo metodológico. Nosso fazer foi se constituindo ao longo do percurso, a cada momento e a cada intenção de pesquisa, compondo uma conexão com nossas descobertas. Sendo assim, como poderíamos separar as operações de pesquisa em um capítulo metodológico e as descobertas realizadas ou novas indagações feitas em outro?

Neste capítulo, trazemos outro foco principal do nosso trabalho, que são as práticas de leitura do livro ilustrado realizadas pelas professoras, em sala de aula. Para tal, entrelaçamos as ações observadas e discutidas, em diálogo. Nessa direção, nos ocupamos em conhecer as práticas de leitura dos livros ilustrados, só que agora a partir das maneiras de fazer de cada professora, consideradas aqui como “manobras” do tipo tático quando colocadas diante do sistema que detém o poder, as quais constituem a arte de dar golpes, revelando as astúcias dos “caçadores” que as empregam. Os golpes subvertem a ordem imposta, sendo, nas palavras de Certeau (2007, p. 47), “[...] vitórias do ‘fraco’ sobre o mais ‘forte’ (os poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem etc.), [...]”. Ressaltamos que as maneiras de fazer também podem ser consideradas como “estratégias” (Certeau, 2007) do professor diante de seus alunos comuns/ordinários.

Realizamos vinte acompanhamentos em sala de aula, entre os meses de agosto a novembro de 2015, sendo dez com olhar direcionado para as práticas de leitura da literatura infantil já existentes nas escolas, e outros dez com um olhar mais direcionado às práticas de leitura dos livros ilustrados. A intenção foi buscar estabelecer relações entre esses tipos de práticas, marcando as operações que se aproximam e as que se distinguem na prática de leitura dos livros ilustrados pelas professoras. Em cada ano do ensino fundamental (1º ao 5º) realizamos quatro acompanhamentos, que foram subdivididos, sendo dois voltados à leitura de um livro de literatura infantil, não necessariamente um livro ilustrado, e dois destinados à leitura específica do livro ilustrado. Nossa intenção, ao enfatizar a repetição de dois acompanhamentos com um mesmo olhar, foi descobrir o que parece marcar as práticas de leitura do ponto de vista de ações que se repetem nas diferentes aulas quanto à forma de ler da

cultura escolar, à organização da classe, ao tipo de intervenção, à interação com o livro e com o outro, pois apenas uma aula poderia não possibilitar nossas descobertas em relação a essa questão.

A observação em sala de aula ocorreu quinzenalmente para as professoras, mas semanalmente para a pesquisadora, que respeitando os horários e as rotinas de leitura de cada classe, adequou sua agenda de trabalho de campo, de modo a não interferir na rotina já estabelecida em cada turma. Assim sendo, os acompanhamentos aconteceram em dias e horários reais das aulas de leitura em cada classe, sem alteração da rotina, aspecto que demandou um cronograma que durou quatro meses entre uma observação e outra. A cada semana, um ou dois acompanhamentos foram realizados em classes diferentes, de forma que o intervalo entre uma e outra aula, na mesma classe, não se tornasse tão distante.

Além disso, tencionamos também observar o que poderia caracterizar a prática de leitura entre um ano e outro, com crianças de diferentes faixas etárias. Neste campo, levantamos como hipótese a ideia de que as práticas se repetem nos diferentes anos, tornando- se muito parecidas, inclusive entre crianças que estudam no 1º e no 5º ano. Diante disso, interrogamos: no caso das duas escolas acompanhadas por nós, as práticas se repetem? Por quê? O que marca essa repetição, caso ela se confirme, nos diferentes anos, sendo que há um programa oficial que é trabalhado por todas e que parece trazer distinção? No interior dessa repetição de práticas, o que podemos encontrar como distinção? Por que os modos de ler, tão singulares fora da escola, parecem buscar uma homogeneidade ou uma uniformidade dentro dela? Afinal, que práticas de leitura vêm sendo produzidas pelas escolas? Tais interrogações nos levam ao nosso maior objetivo, que é conhecer as práticas de leitura com o livro ilustrado, realizadas pelas professoras, em suas salas de aulas.

Nossos encontros de observação das práticas foram entremeados pelo estabelecimento de combinados quanto aos dias e horários em que aconteceriam, bem como em relação ao que seria observado, visto que a pesquisadora tem suas intenções, constituindo- se como um “encontro/confronto marcado”, o que corrobora o que traz Freire, ao afirmar que

Observar não é invadir o espaço do outro, sem pauta, sem planejamento, nem devolução, e muito menos sem encontro marcado... Observar uma situação pedagógica é olhá-la, fitá-la, mirá-la, admirá-la, para ser iluminada por ela. Observar uma situação pedagógica não é vigiá-la; mas sim, fazer vigília por ela, isto é, estar e permanecer acordado por ela, na cumplicidade da construção do projeto, na cumplicidade pedagógica. (FREIRE, 1996, p. 14)

As aulas foram acompanhadas, registradas, filmadas e transcritas, entremeadas pelas mudanças de posições dadas como únicas, tanto na vida pessoal como na vida profissional.

Nas transcrições foram observadas e analisadas não apenas as falas, mas os gestos, as expressões e os movimentos que se tornaram visíveis a partir dos vídeos e gravações em áudio. Buscamos registrar e transcrever a cena que envolvia professoras e alunos nas práticas de leitura, além de todo o movimento que acontecia na classe. Outra escolha que fizemos foi assistir aos vídeos das aulas e selecionar os pontos nos quais, por uma fração de segundo, se marcam tempos, espaços e histórias. Nesse movimento, os trechos selecionados foram transformados em fotos para compor a historicidade das cenas. Essa operação configurou-se como algo desafiador, pois nossa leitura era a do olhar do outro, dos movimentos tênues das mãos, do passar de dedos entre os cabelos, do andar de um lado para outro na classe, de um suspiro mais longo, de gestos mais bruscos, de sorrisos, do balançar da cabeça, entre outros. Para nós, transcrever as aulas era olhar para este conjunto de relações, entremeado ao tom de voz das professoras no momento da transcrição.

Toda essa maquinaria foi fabricada no percurso da operação e não pensada ou planejada anteriormente, pois descobrimos que para acessar as singularidades, precisamos aguçar nosso olhar além das falas (texto verbal) das professoras e alunos. As páginas dos livros lidos foram digitalizadas e/ou fotografadas e inseridas nas transcrições para que tivéssemos a oportunidade de conectar às nossas análises, feitas posteriormente, uma intervenção realizada pela professora, chamando a atenção para o que ela destacava do ponto de vista da relação entre texto e imagem. Com isso, destinamos um tempo para esse momento da pesquisa, até então ancorada no relógio e no tempo cronológico. No entanto, como nos traz Corazza (2002, p. 105), o tempo também se constitui na descontinuidade que lhe é própria, considerando as necessidades específicas que são criadas, o que nos torna responsáveis pelas práticas de pesquisa que utilizamos, “[...] sejam aquelas adotadas como pontos de partida, sejam as que, a partir dessas, vimos inventando” (CORAZZA, 2002, p. 105-106).

Produzimos um movimento de transcrição na bricolagem entre texto e imagem, tanto da aula como do livro lido. Essas duas linguagens não disputaram espaços para informar algo, mas foram geridas a par para contextualizar cenários de falas, tempos e movimentos. Além das transcrições realizadas, as legendas de algumas imagens foram produzidas considerando também as anotações da pesquisadora no diário de bordo. Essas anotações não repetiam as informações dadas pelos vídeos ou pelo dito, mas muitas vezes se constituíam

pelo registro da entonação da professora, um jeito de falar capaz de provocar sentidos outros na leitura, isso porque, “[...] através da entonação, intervêm a voz e seu complemento indispensável, o ouvido” (DAHLET, 2005, p. 249).

Além disso, tais anotações estavam envoltas pelo não-dito e por aquilo que não era evidenciado em cena, mas que constituía o movimento dos corpos e as expressões daqueles que estavam ao lado enquanto o fato principal acontecia; por exemplo, na resposta de uma criança dada à professora, na solicitação de atenção para o momento da leitura, ou seja, enquanto tais ações aconteciam, o que os demais expressavam? O diário de bordo foi produzido com esse tipo de registro, pois “o corpo e a voz são constitutivos do falar” (DAHLET, 2005, p. 249), assim como “[...] a entonação é lugar de memória e lugar de encontro” (DAHLET, 2005, p. 251); lugar de produção de sentidos outros, de novos sentidos.

Após cada aula assistida e registrada havia um momento em que professora e pesquisadora trocavam ideias, impressões, indagações. Um período curto, mas que canalizava a atuação do momento, o pensar posterior do professor sobre sua aula, sua respiração e emoção. Uma "auto avaliação" ou um desejo de aprovação por parte das professoras sobre o seu fazer que extrapolou o "não dito" nas entrevistas nem anunciado nas práticas. As professoras quiseram falar sobre a aula, desejavam ouvir o que o observador tinha a dizer, necessitavam dialogar sobre sua arte de fazer num processo dialógico diante das relações que se estabeleceram entre o eu e o outro.